Renata Wirthmann

Especial para o Jornal Opção

Neste texto de hoje daremos continuidade à investigação sobre os impactos do distanciamento social e outras questões da pandemia para as crianças e os adolescentes. No último texto miramos nos bebês coronials, neste texto de hoje vamos pensar nas crianças que atingiram a idade escolar na pandemia, ou seja, que nos anos de 2020 e 2021 se encontravam na faixa etária entre 4 e 8 anos. São crianças em fase de alfabetização. Fase de confirmação do mundo simbólico, a apropriação das letras e dos textos. Esse processo extremamente importante, que ficou restrito ao desafio de alfabetizar através de uma tela e a convivência, quase exclusiva com os pais e parentes mais próximos, sem a importante abertura para os novos grupos sociais que costumam se formar na escola e em outras atividades extracurriculares.

Temos assistido uma enorme dificuldade das crianças no processo de alfabetização e de adaptação às escolas que tem levado a encaminhamentos com queixas que parecem ser singulares da criança, mas pela frequência que tem ocorrido apontam para algo bem maior, da cultura.

Para compreender esse fenômeno nesse período de pós distanciamento social é fundamental, antes de mais nada, compreender o que é a criança. A criança nem sempre existiu. Sem dúvida o organismo humano sempre se desenvolveu, desde a concepção até a idade adulta e, portanto, sempre atravessou um período de imaturidade, entretanto, a nomeação da infância como especificamente uma etapa da vida individual, foi um resultado da ciência moderna e da revolução francesa. A Revolução francesa propõe, ao lado da ciência, uma nova definição para o que é um cidadão. A concepção de que um cidadão é livre, maior e responsável faz surgir também a criança, dependente, menor e em formação, submetida, portanto, aos especialistas da ciência e da educação. Diante desse rápido percurso, qual o lugar da criança hoje?

Primeiramente, algumas observações. Começaremos com a constatação de que nossa sociedade, a cada ano, tem projetado mais e mais seus ideais coletivos nas crianças. Uma vez que esses ideais são impossíveis e a criança não os cumpre, ela começa a receber seus primeiros rótulos: inquieta, distraída, desobediente, entre outras. Isso pode ser visto, de modo muito explícito, na explosão de diagnósticos nessa faixa etária ou, dito de outro modo, a partir das etiquetas patológicas do DSM, em amplo crescimento entre as crianças e os adolescentes. 

Outro dado importante para nossa análise de hoje: as famílias, nos últimos anos têm tido cada vez menos filhos e esses filhos únicos passam cada vez mais tempo na frente de telas. Não digo com isso que deveriam ter mais filhos mas, certamente, estou questionando o uso excessivo de telas e a repetida justificativa de que a criança está sozinha e entediada e, não tendo com quem brincar, lhe cedem, sem limites, as telas. Todas essas telas olham para essa infância, cuidam desta infância e instalam nessa infância uma dependência de um gozo imediato que poderá deslocar na adolescência para o gozo imediato encontrado nas drogas, por exemplo.

Essa criança, objeto de ideais dos pais e da sociedade, sofre um peso terrível e estamos assistindo as consequências. Há um ideal particularmente enlouquecedor que eu gostaria de destacar: o da saúde mental. Paradoxalmente podemos dizer que existe hoje uma loucura especial em relação às crianças no que diz respeito à chamadas psicopatologias da infância tanto que temos assistido um salto no número de crianças com transtornos como o autismo e TDAH.

No texto anterior apontei sobre a necessidade de um tempo de ver, de um tempo de elaborar, e de um tempo de concluir em relação ao diagnóstico mas esse não é parece ter sido o funcionamento daqueles profissionais fiéis ao DSM. Percebemos um excesso de diagnósticos e de medicações. Tratamentos cada vez mais agressivos e iniciados cada vez mais cedo.

Esses elementos nos levam a apontar para a necessidade de proteger as crianças do delírio das instituições, do delírio da sociedade e, ainda, proteger a criança do delírio familiar. Essa tem sido nossa bússola como psicanalistas. Trata-se do analista apontar para o fato de que o sujeito neurótico tenta se completar através desse sintoma familiar:  De ter o filho como objeto preenchedor.

A psicanálise tem que navegar com a bússola no objeto a, não nos ideais dos pais ou da sociedade. Essa bússola no objeto a permite se separar das tentativas de impor, à criança, esse lugar impossível. A clínica com crianças se organiza em torno da concepção de que uma criança, para um analista, é um sujeito que não fala como um adulto neurótico, mas fala. E essa fala é, também, uma manifestação do inconsciente a medida em que o analista se dispõe a interpretá-la. Por não serem abordáveis como os adultos, se criou uma técnica especial (o brincar), mas não muda o fato de que o objeto da psicanálise de crianças é o sujeito, ou seja, o inconsciente, atemporal e estruturado como linguagem. Assim, a psicanálise atende crianças (para isso usa o brincar), mas aponta para o sujeito, que não tem idade, mas tempos.        

A clínica com crianças também sabe que para um pai ou uma mãe, uma criança é equivalente a uma falta, o que equivale dizer que uma criança condessa, para quem a deseja, uma expectativa que exige satisfação e que convida o sujeito a ocupar muito cedo o lugar do objeto preenchedor. Por isso é imprescindível levar os pais em consideração, são eles que trazem e tiram a criança da análise. É deles também que virão as primeiras queixas e os primeiros sintomas. Compreendemos que A criança é o sintoma dos pais e, claro, da cultura. Os pais, a escola e a sociedade localizam, na criança, sintomas que, por serem seus também, aparecem amplificados no filho.

Eis o acontecimento da contemporaneidade que aparece de modo ainda mais explicitado pelo distanciamento social: o mundo tem assumido um rumo marcado por excessos. Excesso de consumo, de telas, de velocidade, de informação, de contudo, de tarefas. Escolas que aplicam “vestibulinho” em crianças em período de alfabetização. Um desespero de imiscuir (antecipar) na criança expectativas adultas que leva, ao final, a uma crise do controle da infância da qual a própria escola, os pais e a sociedade se queixam.

Renata Wirthmann é psicanalista e professora associada do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB) e mestrado em Psicologia pela UnB. É colaboradora do Jornal Opção.