A conexão da Enel com o livro Assassinos da Lua das Flores, que deu origem ao filme de Scorsese

22 outubro 2023 às 00h01


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No início do século 20, o governo dos Estados Unidos retirou os índios osages de suas terras e os deslocou para Oklahoma. Por certo, pensava-se que, em terras aparentemente improdutivas, deixariam os indígenas em paz.
Entretanto, descobriram petróleo na região e os osages se tornaram riquíssimos — “as pessoas com maior renda per capita do mundo” nos anos 20.
A riqueza dos osages era cobiçada por uma elite branca, que, articulada como uma espécie de máfia poderosa e letal, começou a matá-los.


A história dos osages está registada no excelente e terrível livro “Assassinos da Lua das Flores — Petróleo, Morte e a Criação do FBI” (Companhia das Letras, 385 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra), do jornalista e escritor David Grann, da revista “New Yorker”.
A pesquisa de Grann é rigorosa, mas há dúvida a respeito do número de mortes dos osages. O repórter investigou cerca de 24 assassinatos, mas é possível que dezenas ou centenas de indígenas tenham sido mortos pelos empresários, fazendeiros e pistoleiros que organizaram o Reinado do Terror. Médicos, juízes e xerifes ajudaram a encobrir os crimes.
O governo americano cometeu um equívoco ao indicar pessoas — brancas — para tutelar os índios. Tais indivíduos se uniram para roubar os bens dos osages.


Os osages eram mortos basicamente de duas formas — baleados por pistoleiros ou envenenados. Chegaram a explodir a casa de uma família, matando todos.
Um dos destaques do livro é a história da osage Mollie e de seu marido, o branco Ernest Burkhart. Ele tinha filhos com Mollie e parecia gostar de sua mulher, mas conspirou para matá-la (ela escapou) e sua família. O capo mafioso era William (Bill) Hale, que, poderoso, colocava a Justiça e o xerife aos seus pés. Ele criou uma organização para assassinar e tomar os bens dos osages (a maioria morria jovem).
Como a corrupção dominava em Oklahoma, inclusive na polícia e na Justiça, J. Edgar Hoover — o FBI ainda não existia — enviou um agente federal para coordenar as investigações. O policial, Tom White, trabalhou bem, enfrentando vários obstáculos, inclusive ameaças, e chegou aos culpados, que eram liderados por William Hale, até então um homem acima de qualquer suspeita.


Abnegado, competente e corajoso, Tom White conseguiu prender William Hale e, deste modo, desmontou a máfia assassina serial de Oklahoma.
Grann mostra que os assassinatos dos osages era uma operação sistêmica, que envolvia parte significativa da sociedade dos brancos. William Hale era o chefe de uma máfia — quiçá a principal. Mas havia ao menos um banqueiro envolvido no esquema de matar os ricaços do petróleo. “A maldade de Hale não era uma anomalia”, sublinha o repórter. Era a regra em Oklahoma.


O jornalismo investigativo de Grann é de alta qualidade e ele conta a história tão bem que, por vezes, o leitor se pega, provavelmente, achando que está lendo uma obra de ficção. Mas a história é real e muito bem documentada.
Martin Scorsese filmou a história, com os atores Lily Gladstone (Mollie Burkhart), Leonardo DiCaprio (Ernest Burkhart), Robert de Niro (William Hale) e Jesse Pelmons (Tom White), e manteve o título do livro.
A desconexão entre os osages e a Enel
Há uma história no livro de Grann que, possivelmente, escapará à imprensa patropi — mais interessada no filme do brilhante Martin Scorsese e no núcleo da história (a morte dos indígenas). Trata-se do “envolvimento” da Enel — empresa italiana que, até pouco tempo, atuava em Goiás, depois de comprar a Celg, a companhia de energia elétrica do Estado — com os osages.


(A Enel, por sinal, vendeu a empresa para a Equatorial, que, como a anterior, presta um serviço de baixa qualidade aos goianos. Porém, é bem possível que a múlti da terra de Italo Calvino e Natalia Ginzburg tenha repassado destroços à sucessora — que, justa ou injustamente, levará a culpa por tudo que foi feito, ou melhor, não foi feito. A Enel investiu pouco e mal na recuperação do sistema de fornecimento de energia elétrica aos povos do Cerrado. Numa espécie de neocolonialismo, arrancou dinheiro de Goiás e enviou para a Itália.)
De cara, é preciso esclarecer: a Enel e os italianos nada têm a ver com os assassinatos dos osages. Na verdade, os indígenas foram massacrados, de maneira brutal, por americanos — todos brancos.


Em 2016, seguindo o conselho da osage Kathyn Red Corn, Grann decidiu visitar a Nação Osage, em Oklahoma. O petróleo não tem mais importância, descobriu o repórter. Agora investe-se num parque eólico, em 3 mil hectares, que produz “eletricidade para 45 mil casas em Oklahoma”.
Os osages não estão satisfeitos, pois veem a energia eólica — com suas torres e pás — “como uma ameaça a sua reserva subterrânea”.
Kathryn Red Corn disse para Grann: “Essa empresa [Enel] chegou e ergueu as torres sem nossa permissão”. É como se as terras dos osages fossem terras de ninguém.
De acordo com Grann, “o governo federal, em nome da Nação Osage, abriu um processo contra a Enel, conglomerado italiano de energia e dono do parque eólico”.
“Citando os termos da Lei de Loteamento de 1906, o processo alegava que, como a empresa tinha escavado calcário e outros minerais ao construir as fundações para as turbinas, precisava de autorização dos osages para dar prosseguimento à operação. Caso contrário, estaria violando soberania dos indígenas sobre a reserva subterrânea”, registra Grann.


“A Enel insistiu que não se tratava de mineração, e portanto não precisava da cessão dos osages”, frisa Grann. “Não alteramos a propriedade mineral”, declarou a empresa italiana.
A justiça americana deu ganho de causa à Enel, apesar de que a empresa havia instalado a usina eólica em propriedade privada dos osages — onde vivem e estão enterrados seus mortos — sem autorização expressa dos indígenas. O tribunal de Justiça disse, na síntese de Grann, “que, embora a interpretação dada pelo governo à Lei de Loteamento sem dúvida beneficiasse os osages, os ‘réus não comercializaram nem venderam minérios, nem se envolveram de algum modo em exploração mineral. Assim, não é obrigatória a concessão de licença’”.
Na década de 1920, o Estado, por meio do antecessor do FBI, protegeu os osages, evitando novas mortes. No século 21, o Estado, representado pela Justiça, ficou ao lado dos ricos, a Enel, e contra os indígenas (talvez seja possível sugerir que a própria Justiça atuou contra os osages e o Estado). O capitalismo às vezes não parece ser selvagem, porque amparado na lei, que em tese representa a civilização, mas faz o diabo para derrotar aqueles que não têm as mesmas forças (money) dos megaempresários. O fato de os osages terem familiares enterrados na área onde está instalado o parque eólico não representa nada para a Enel, que só quer faturar dólares e enviar seus lucros para os acionistas (como fez com a Celg, em Goiás). Porém, para os osages, há toda uma história (uma cultura) a ser respeitada.