A comoção na morte de Cristiano Araújo: uma análise do infeliz texto de Zeca Camargo
04 julho 2015 às 13h16

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Noves fora o joguinho de “mocinho versus bandido” das redes sociais, a crônica do jornalista sobre o fenômeno envolvendo o cantor peca do começo ao fim. Mas, para observar isso, é preciso “ler” o que ele disse

Zeca Camargo teve uma semana bem atribulada. Sua crônica sobre a morte do cantor Cristiano Araújo, feita no fim de semana para o “Jornal das 10”, da Globonews, ganhou as redes sociais e o prendeu como uma armadilha: o jornalista parece ter se expressado com toda liberdade — não foi um texto “encomendado pela Globo”, como alertaria alguma teoria conspiratória —, mas tocou em um tema de fundo emocional e do qual não tinha total conhecimento. Acabou por produzir uma crônica com argumentos fracos para sustentar o que propunha: explicar a “comoção nacional” por alguém como Cristiano Araújo.
Entre todos os que comentaram o que Zeca disse, boa parte, talvez a maioria, não viu o vídeo nem procurou outras opiniões. Basearam-se no que tinham “ouvido falar” de outro alguém que, provavelmente, também não estava inteiramente informado. Infelizmente, é assim que se propagam a má informação e as fúrias virtuais.
De qualquer forma, o material de Zeca Camargo veio na hora fatal para reacender uma polêmica que estava no fim com as matérias do “Fantástico” de domingo passado. E aí, por seu texto, deu voz a um gueto “oprimido” até então: as pessoas que se colocaram entre as perplexas com a onda de comoção. Estas, então, concordaram com o texto de Zeca Camargo pelo mesmo motivo com que os fãs de Cristiano Araújo se enfureceram: não por seu conteúdo, mas pelo posicionamento que expressa. E aí, o mais grave: houve a repetição de uma metonímia perigosa, que toma a parte (o texto) pelo todo (Zeca Camargo). De críticas ao produto, passou-se rapidamente para ofensas ao autor do produto. É um fenômeno grave, cada vez mais comum nas interações dos últimos tempos.
Noves fora o joguinho de mocinho x bandido das redes, o texto de Zeca Camargo peca do começo ao fim. Para observar isso, é preciso antes ver o vídeo ou “lê-lo” (o texto, na íntegra, está no box desta matéria). Vamos a isso.
Ao contrário do que Zeca escreve, Cristiano Araújo não era um artista longe do “radar da grande mídia”. Era praticamente um colega: artista contratado da Som Livre — braço musical da organização da família Marinho — o goiano apareceu mais de uma dezena de vezes só na TV Globo: foi ao “Domingão do Faustão”, ao “Mais Você”, à “TV Xuxa”, ao “Encontro com Fátima Bernardes”, ao “Estrelas”, ao “Altas Horas”, ao “Esquenta”, entre outras inserções. Talvez tenha faltado o “Vídeo Show” para Zeca Camargo localizá-lo no “radar” da grande mídia em que trabalhava.
Um pouco mais de pesquisa faria bem para ele e os demais jornalistas que estranharam o fenômeno. Principalmente porque, além de existir música consumida fora do Eixo Rio–São Paulo, há também uma novidade deste século chamada internet e um subsetor dela, “redes sociais”, que se pauta longe dos estúdios das emissoras. Falemos da “pequena mídia”, então: só no YouTube, o canal de Cristiano Araújo tem mais de 250 milhões de visualizações. Dá mais de uma visualização por terráqueo que fala português, do Brasil ao Timor Leste.
No Facebook, são 7,6 milhões de curtidas em sua fan page. O “Rei” Roberto Carlos tem 5,6 milhões, 2 milhões a menos. No Instagram, Cristiano Araújo tinha (e tem) 1,8 mil fãs. É mais do que a soma de todos os de Michel Teló (876 mil) Zezé di Camargo & Luciano (721 mil) e Chitãozinho & Xororó (107 mil). No Twitter, são 387 mil seguidores do cantor contra 292 mil de Roberto Carlos, 236 mil de Caetano Veloso tem e 149 mil de Chitãozinho & Xororó, por exemplo. Com esses números ficaria mais fácil entender — e não se “surpreender” — com a “comoção nacional”.
A coisa piora no texto de Zeca Camargo quando ele se aventura em comparações. A primeira é uma medida de importância de funerais. Ele solta um “mas, Cristiano Araújo?” para em seguida dizer, em outras palavras, que comover-se com a morte de uma princesa britânica, uma banda pop brasileira e um tricampeão de Fórmula 1 tinha justificativa. Fazer o mesmo para uma “figura relativamente desconhecida” — volte ao parágrafo anterior para observar que realmente era algo bem relativo mesmo — foi como mostrar que estamos, nós brasileiros, em pleno retrocesso cultural.
E suas analogias chegam ao ápice da pobreza argumentativa quando dá, como prova desse passo atrás na evolução intelectual nacional, a febre dos livros de colorir. Zeca coloca como um absurdo o fato de alguém comprar um livro para colorir — como se o fato de ter um hobby com os lápis de cor anulasse a possibilidade de o mesmo sujeito se deliciar com um Marcel Proust ou um Gabriel García Márquez. Ou como se em outros tempos esse consumo de grandes escritores fosse algo disseminado. Avançando na infeliz comparação — a despeito de ele justapor um cantor atingido por uma tragédia a um objeto de lazer —, mesmo que Cristiano Araújo fosse o “livro para colorir” dos dias atuais, ao qual as pessoas se devotam diante de uma “pobreza da atual alma cultural brasileira”, será que as “fortes referências culturais” ausentes do nosso País são Cazuza, Mamonas Assassinas e Ayrton Senna?
Para Zeca, a massa formada por “robôs coloristas” doidos para usar suas “tintas da emoção” se agarrou à morte de Cristiano Araújo por catarse e acreditamos (a massa somos nós) “estar comovidos com a perda de um grande ídolo”. Em primeiro lugar, ninguém “acredita” estar comovido: ou se comove ou não se comove. Em segundo lugar, os brasileiros não se emocionaram necessariamente “por” perder um grande ídolo, assim como os Mamonas não eram “grandes ídolos” quando seu avião caiu. Ambas as tragédias foram com artistas conhecidos (sim, Zeca, Cristiano era conhecido) na plenitude de sua vida e no auge de seu sucesso. A receita é básica: a morte súbita nessas condições vai gerar uma cobertura massiva — que Zeca considerou “insana”, mas que o Ibope achou acertada — que vai desaguar em comoção coletiva, até de quem não era tão fã assim do trabalho da vítima. Teorias da comunicação explicam, gostem ou não.

Ao lançar a frase “todos sabemos que não é bem assim” para negar o título de “grande ídolo” a Cristiano Araújo, Zeca Camargo se apropria da visão coletiva e deixa inferir que grande ídolo é aquele que já alcançou o (re)conhecimento de uma turma que não são esses milhões e milhões que se comoveram.
É o fenômeno da bolha cultural, que está muito bem explicado em um artigo do “El País”, assinado por Felipe Betim e com o pertinente título “Cristiano Araújo, o cantor que ninguém conhecia, exceto milhões”. Um trecho: “Para uma parte do Brasil — a que não conhecia Araújo até esta quarta-feira (24) —, a música brasileira ainda se resume a clássicos como Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. São cidadãos que vêm das classes médias tradicionais, dos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, e que vivem dentro de uma bolha cultural.”
Zeca prova estar bem acomodado nessa bolha logo a seguir, em seu texto, ao falar em “revelações de uma música só”. O “Bará Bará” que integrou a trilha sonora da novela global “Salve Jorge” foi apenas o start de uma carreira nacional. Cristiano “qualquer um” Araújo, no caso, já fazia sucesso Brasil afora (fora a bolha) havia mais de três anos, com vários hits.
Já caminhando para o fim da crônica, o jornalista lamenta o fato de hoje não haver mais “ídolos de verdade”, pelos quais valeria a pena “chorar de verdade”, com eles no palco ou no funeral. Não para ele — que, aos 52 anos, que talvez devesse se penalizar por razões existencialistas mais profundas —, mas para milhões de jovens e adolescentes fora do quintal eixocentrista, a morte de Cristiano foi uma grande perda, sim. Ele era “ídolo de verdade”, até porque a visão de um ídolo se encontra na individualidade. Ídolo é diferente de ícone, aquele que se torna uma referência de valor, seja de paz (Gandhi) ou de terror (Osama bin Laden), de caridade (Madre Teresa de Calcutá) ou de atrocidade (Hitler).
Como que a apontar um horizonte, já que não vê nada “em volta”, o cronista diz que precisamos ter uma meta para mudar a realidade do mundo pop: “Precisamos, sim, de um outro herói, um novo herói”. E aqui, a confusão vira deseducação: então, para Zeca, esses citados e que tiveram um alvoroço em torno de suas mortes trágicas — Michael Jackson, Ayrton Senna, Lady Di, Mamonas, Kurt Cobain, Cazuza — foram figuras heroicas?
É verdade que toda palavra é também um mundo. Bakhtin, pensador e linguista russo, ao usar o termo “polifonia” para definir a presença de outros textos dentro de um texto (o que equivale a dizer outros “textos” para a mesma palavra), abriu a brecha para essa heterogeneidade nos termos. No caso de “herói”, uma definição encontrada, entre várias: “figura arquetípica que reúne em si os atributos necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica”. Mas, mesmo com toda a polifonia bakhtiniana, fica difícil entender qual o desafio (“problema”) superado de forma excepcional, em sua trajetória, por um artista, um piloto ou uma princesa que era plebeia.
E assim Zeca Camargo — como seu colega Pedro Bial, com quem às vezes pode ser confundido por suas funções midiáticas, incluída aí a de fazedor de minicrônicas para entretenimento — banaliza o significado nobre. Coloca os Mamonas Assassinas tão heróis quanto os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e iguala Cazuza a Betinho. Este, como aquele, morreu de aids, mas investiu os últimos anos de vida de hemofílico na luta contra a fome no Brasil.
O próprio Zeca Camargo não deve acreditar que os nomes que citou sejam “fortes referências culturais” ou algum dia tenham sido “heróis”. Como jornalista dos mais viajados da Rede Globo e nascido em Uberaba, no Triângulo Mineiro, ele conhece do interior do Brasil aos continentes do mundo. É um cosmopolita. Não queria dizer o que pareceu dizer. Mas disse, ao escrever um texto ruim e que pode ser interpretado tranquilamente dessa forma.
A polêmica (e frágil) crônica de Zeca Camargo:
Muita gente estranhou a comoção nacional diante da morte trágica e repentina do cantor Cristiano Araújo. A surpresa maior, porém, não é o fato de ele ser ao mesmo tempo tão famoso e tão desconhecido. O Brasil felizmente tem um punhado de artistas que não passam pelo radar da grande mídia nem são um consenso popular, mas que levam multidões para seus shows.
Essa é uma consequência natural do talento que nós temos para a música cruzado com o tamanho e a diversidade do nosso território. O que realmente surpreende nesse evento triste da semana foi a comoção nacional. De uma hora para outra, na última quarta-feira, fãs e pessoas que não faziam ideia de quem era Cristiano Araújo, partiram para o abraço coletivo, como se todos nós estivéssemos desejando uma catarse assim, um evento maior que nos unisse pela emoção.
Nós sempre precisamos disso. Grandes funerais públicos vêm em ciclos, expurgar nossas dores, como se tivessem uma capacidade purificadora. É só lembrar de despedidas que, dependendo da sua geração, ainda estão na sua memória: Cazuza, Kurt Cobain, Ayrton Senna, Mamonas Assassinas, princesa Diana, Michael Jackson.
Mas, Cristiano Araújo? Sim, Lady Di, Mamonas, Senna, todos esses eram, guardadas as proporções, ídolos de grande alcance. Como então fomos capazes de nos seduzir emocionalmente por uma figura relativamente desconhecida? A resposta está nos livros para colorir! Sim, eles mesmos. Os inesperados vilões do nosso cenário pop, acusados de, entre outras coisas, destacar a pobreza da atual alma cultural brasileira.
Não vale a pena aqui discutir o verdadeiro valor desses produtos – se é que ele existe. Mas eles vêm calhar para que a gente faça um paralelo com a ausência de fortes referências culturais que experimentamos no momento. A morte de Cristiano Araújo e a quase insana cobertura de sua despedida vestiu a carapuça de um contorno de linhas pretas no papel branco, só esperando a tinta da emoção das pessoas para ganhar tons e, quem sabe, um significado.
Como robôs coloristas, preenchemos esses desenhos na ilusão de que estamos criando alguma coisa. Assim como, ao nos mostrarmos abalados com a ausência de Cristiano, acreditamos estar de fato comovidos com a perda de um grande ídolo. Todos sabemos que não é bem assim. O cantor talvez tenha morrido cedo demais para provar que tinha potencial para se tornar uma paixão nacional, como tantos casos recentes.
Nossa canção popular é hoje dominada por revelações de uma música só, que se entregam a uma alucinada agenda de shows para gerar um bom dinheiro antes que a faísca desse sucesso singular apague sem deixar uma chama mais duradoura. E nesse cenário qualquer um pode, ainda que por um dia, ser uma estrela maior.
Teria isso esse o caso de Cristiano Araújo? O mais inquietante de tudo isso é que nosso pop não precisa ser assim. Nossa história musical, e mesmo o passado recente, prova que temos tudo para adorarmos ídolos de verdade, e para chorar de verdade, seja pela presença deles no palco ou na saudade da perda. Mas agora, olhando em volta, parece que não vemos nada disso.
Não precisa ser assim. Contradizendo o famoso refrão de Tina Turner, “we do need another hero”: precisamos, sim, de um outro herói, de mais heróis. Mas está todo mundo ocupado pintando jardins secretos.”
Zeca Camargo