Há quem postule que a Catalunha não faz parte da Espanha e protestos são frequentes pela independência. A rivalidade se estende ao futebol e os catalães torcem pelo Barcelona contra o Real Madri dos “espanhóis”.

Os catalães são espanhóis, mas, acima de tudo, se consideram catalães. Inclusive têm sua própria língua — o catalão — e têm orgulho dela. Porque é um divisor de águas, uma afirmação de identidade, de distinção.

Em março, os jornais espanhóis, como “Abc” (do qual sou assinante), “El Mundo” e “El Español”, entre outros, deram farta cobertura à jornalista e escritora Júlia Bacardit, autora do livro “Un Dietari Sentimental” (“Um Diário Sentimental”).

Nascida em Barcelona, Júlia Bacardit publicou o livro (de não-ficção) pela Editora Medusa e exigiu, por contrato, que não deve ser traduzido para o espanhol. A autora quer que a obra seja lida pelos espanhóis em catalão, sua língua.

Julia Bacardit: polêmica escritora e jornalista de Barcelona | Foto: Carlos Baglietto

A proibição de que o livro seja traduzido para o espanhol chocou vários leitores — que passaram a atacar Júlia Bacardit nas redes sociais. Chegaram a chamá-la de “supremacista”, o que a autora afirma que não é, de “caipira”, “oportunista” e “patética”. É uma questão “mais pessoal” do que política. Ela trata por “covardes”, não só os que a atacam, mas também aqueles, da Catalunha, que não fazem a defesa da autonomia da própria língua.

Aos 32 anos, Júlia Bacardit é uma autora polêmica e se considera anarquista, mas não professa nenhuma militância. “Un Dietari Sentimental” é uma miscelânea. A escritora fala de sua vida, divulga resenhas de suas leituras e faz reflexões sobre vários assuntos (em geral ocorridos entre 2018 e 2021). A base do meu texto é a reportagem “No quiero que se lea más en español: Júlia Bacardit insiste en que no traducirá su libro del catalán”, de “El Español”. Consultei também as matérias de “Abc” e “El Mundo”.

Ao diário digital “ElNacional.cat”, a escritora revela que proibiu a tradução para o espanhol por um único objetivo: “Não quero contribuir para a bilinguização da literatura catalana”. Ela menciona um trecho do livro: “A língua e este desejo de preservá-la e este medo de perdê-la e o medo de querê-la demasiado, o medo de ter tanto medo de extinguir-me, tudo isso me preocupa”.

O Preço de Ser Mãe, de Júlia Bacardit | Foto: Divulgação

Há na sua profissão de fé um componente sentimental, não originário de uma posição política, de acordo com a escritora. “Esta decisão, esta negativa, é uma coisinha pequena que nós, escritores, podemos fazer com nossa língua.” Trata-se de uma pequena vitória de quem quer ser lida em catalão pelas amigas que falam espanhol.

O livro anterior de Júlia Bacardit, “El Precio de Ser Madre” (“O Preço de Ser Mãe”), publicado em 2020, foi traduzido para o espanhol

Júlia Bacardit, em tempos de cancelamentos, é uma mulher de coragem. Chega a sugerir que tem um “miedito” da reação pública, mas não parece. Ela sabia, ao tomar a decisão, da polêmica que provocaria.

Há até quem acredite que se trata de uma estratégia de marketing para chamar atenção para seu livro. Mas a autora contesta: a obra saiu com uma edição de 500 e, depois, mais 800 exemplares — o que não é uma grande tiragem. E, como não será traduzido para o espanhol, tende a não se tornar um best-seller. Frise-se que o livro pode ser publicado em quaisquer outras línguas.

Rafa Lahuerta escreveu livro em valenciano | Foto: Reprodução

Jornalista, escritora e editora, Júlia Bacardit diz que o catalão está se “encurtando”. Por causa da hegemonia do espanhol, uma língua, de algum modo, “invasora”, as pessoas estão lendo e, também, falando menos o catalão — uma “língua pequena”.

A escritora enfatiza que não gostaria de se tornar uma ativista linguista. Mas acabou se tornando, “por desgraça”. Júlia Bacardit insiste que sua motivação é afetiva, uma defesa da importância de sua língua materna, e não resulta de um comportamento político.

“Minha relação com o catalão é familiar. De fato, aprendi a falar o castelhano bastante tarde, o que não é tão comum na Catalunha”, afirma Júlia Bacardit.

Para conservar e propagar o catalão, Júlia Bacardit começou a ensiná-lo. Trata-se, assinala, de um “voluntariado pela língua”.

Juan Marsé: um dos mais importantes escritores da Catalunha | Foto: Reprodução

Embora apaixonada pela crítica literária, Júlia Bacardit optou por estudar Jornalismo. Porém, seus textos são menos factuais e mais narrativos — o que revela a mão da escritora, ou do jornalismo, digamos assim, literário. Ela escreve para jornais da Espanha, sobretudo da Catalunha, e para a revista “Branca”, da qual é cofundadora.

Como repórter, Júlia Bacardit aprecia cobrir as minorias, como mulheres africanas que moram em Barcelona e personagens anônimos do Líbano. O feminismo está sempre no seu horizonte. Escreve críticas literárias e criou o podcast mensal “Les Golfes”, no qual comenta atualidades internacionais, problemas imobiliários de Barcelona, as novidades editoriais ou o poder — sempre em catalão.

As turbulências políticas a respeito da causa catalã deixam Júlia Bacardit com “preguiça”. Ela diz que está “farta” e que não milita nos partidos políticos. “Sou mais anarquista”, insiste.

Júlia Bacardit afirma que gosta de ter ao seu lado filmes, fanzines e discos e se afasta de “discursos engravatados”.

A luta pelo catalão é vista pela escritora como “pequena”, mas necessária. Talvez para despertar o “país”, quer dizer, não a Espanha, ciosa de sua língua, e sim a Catalunha, que se considera uma nação à parte. Júlia Bacardit admite que não vai ser “salvadora de nada”, mas lamenta o fato de que os jovens estejam falando menos catalão, rendendo-se à hegemonia do espanhol.

Quando um livro está editado em espanhol e em catalão, de acordo com Júlia Bacardit, os leitores tendem a ficar com a primeira opção. Por isso, ao não permitir a tradução para o castelhano, ela quer incentivar — obrigar — a leitura em catalão. A jornalista diz que comumente um livro sai primeiro em espanhol e só depois em catalão — o que fortalece o primeiro idioma e deprecia o segundo.

O objetivo final de Júlia Bacardit é fortalecer tanto a língua quanto a literatura catalãs. É sua guerra particular. Será vencida? É provável. Mas a autora está colocando seu “dedo” na história, firmando a cultura de seu povo.

Pode-se firmar que Júlia Bacardit é intransigente? Talvez não. Tanto que admite que, adiante, pode pensar numa tradução de “Un Dietari Sentimental” para o espanhol.

Irene Solà, Rafa Lahuerta e Juan Marsé

Júlia Bacardit cita um exemplo que aprova: o livro “Canto yo y a montaña baila” (“Eu Canto e a Montanha Baila”), de Irene Solà, saiu simultaneamente em catalão e em espanhol. “Inspirado em lendas narradas nos Pireneus, a obra ganhou o prêmio Anagrama de Ficção em catalão, em 2019”, informa “El Español”.

O livro se tornou best-seller e, enfatiza Júlia Bacardit, “sem prejuízo para a língua original”, o catalão.

O catalão Juan Marsé optou por escrever sua obra diretamente em espanhol. Mas falava catalão. Seus romances “O Feitiço de Xangai” (li numa edição portuguesa, com tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra), “Rabos de Lagartixa”, “Últimas Tardes com Teresa” e “Caligrafia dos Sonhos” (os três publicados no Brasil, com traduções de Wladir Dupont, Paulina Wacht e Ari Roitman, e Luís Carlos Cabral) são literatura de primeira linha.

“Noruega”, de Rafa Lahuerta, é narrado em valenciano. O livro relata fatos ocorridos nas ruas de Valencia e saiu em 2020. Premiado com o Lletraferit, o livro vendeu 15 mil exemplares. Depois, foi traduzido para o espanhol. Júlia Bacardit considera seguir pelo mesmo caminho. Ou seja, firmar primeiro “Un Dietari Sentimental” em catalão e só depois vertê-lo para o castelhano. O que ela quer é que sua obra tenha uma trajetória primeiro em catalão.

O protesto de Júlia Bacardit é simplesmente uma forma de “lutar pela cultura catalã”. Mais do que marketing, como assinalam alguns, trata-se de um ato de coragem e de afirmação de uma cultura por meio de determinar que a língua é uma questão crucial.