A brava luta de editor para publicar o romance O Amante de Lady Chatterley nos Estados Unidos
01 junho 2021 às 16h17
COMPARTILHAR
A luta pela liberdade às vezes é de poucos, mas o direito à liberdade, conquistado, é todos. A história consagrou D. H. Lawrence como poeta e prosador brilhante
Resenha publicada em março de 2014
Uma das virtudes do excelente livro “A Hora Terna do Crepúsculo — Paris nos Anos 1950, Nova York nos Anos 1960: Memórias da Era de Ouro da Publicação de Livros” (Biblioteca Azul, 574 páginas, tradução de Cid Knipel), do editor norte-americano Richard Seaver (1926-2009), é o reconhecimento do talento e da coragem de Barney Rosset, dono da Grove Press, que, enfrentando moralistas dos setores privado e público, teve coragem de publicar “O Amante de Lady Chatterley”, de David Herbert Lawrence, “O Trópico de Câncer”, de Henry Miller, e “O Almoço Nu”, de William Burroughs.
Em 1959, Barney, ao convidar Seaver para ser editor da Grove Press e da revista “Evergreen Review”, disse-lhe que pretendia publicar “O Amante de Lady Chatterley”. O livro, proibido na Inglaterra, pátria de D. H. Lawrence, era apontado como “maldito” por donos de editoras em várias partes do mundo. O filme baseado no romance chegou a ser proibido em Nova York. “Parece empolgante”, sugeriu Dick Seaver. “Por que você não se junta à empolgação?”, inquiriu Barney. Seaver aceitou o convite e ganhou o apoio do amigo Samuel Beckett.
Ao noticiarem que iriam publicar “O Amante de Lady Chatterley”, os editores da Grove Press passaram a ser rotulados de “maníacos sexuais”. Barney avaliava que a publicação do romance consagraria a editora, mas sabia que, por ser considerado “obsceno”, provocaria uma guerra. Os Estados Unidos, apontados como defensores da liberdade, sempre foram conservadores e moralistas. Tanto que a Alfândega e o Departamento dos Correios haviam proibido a entrada do livro no país.
Arrojado, Barney decidiu lançar “O Amante de Lady Chatterley” numa tiragem de 25 mil cópias, gigante para uma editora de médio porte como a Grove Press. O romance, “com suas cenas descaradas de atividade sexual e um uso inédito de ‘palavrões’ anglo-saxônicos”, no registro de Seaver, estava destinado a provocar polêmica. Editores disseram a Seaver que a publicação era “um ato de loucura”. Acreditava-se, entre os editores, que, no lugar de tornar a liberdade mais elástica no país, a publicação provocaria mais censura. “Severas leis antiobscenidades já estavam em rigor na maioria dos Estados”, nota o editor da Grove. Apesar disso, não havia, na Grove, ninguém cauteloso e com medo. O mais destemido era Barney, aquele que, se condenado, teria de pagar indenizações e sofrer com as perdas de exemplares recolhidos. Mas o editor, que sabia que quem transpira medo fortalece o adversário, não hesitou um minuto.
“Os livros começaram a ser despachados para as lojas no início de abril [de 1959]”, conta Seaver. “As primeiras reações eram favoráveis: várias resenhas citavam a importância do romance e o elogiavam como uma contribuição importante para a literatura contemporânea, que havia muito devia ter sido publicada na forma pretendida pelo autor. (…) o livro havia passado pelas malas postais sem obstrução, e as vendas nas lojas que receberam exemplares eram informadas como ‘rápidas’, em consequência tanto das resenhas como do boca a boca.”
O político mineiro Pedro Aleixo disse sobre o AI-5, ao não aprová-lo, que o perigo não era o general, e sim o guarda da esquina. Isto na ditadura. Na democracia americana, ao menos em 1959, um delegado de polícia comportou-se como o guarda da esquina. Em Washington, a capital da nação de Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt, um delegado de polícia ligou para a livraria Brentano’s e, sem nenhum mandado judicial, apreendeu as cópias de “O Amante de Lady Chatterley”. A Grove moveu um processo contra o policial.
Mas o “alerta” moralista havia sido dado. O gerente dos correios de Nova York, Robert Christenberry, apreendeu, sem autorização judicial, várias caixas com exemplares de “O Amante de Lady Chatterley”. “Foi a primeira vez que soube que as autoridades postais podiam atuar como judiciário”, afirma Seaver. O Correio de Nova York marcou uma sessão para julgar o ato. Estranho? O advogado da Grove Press disse “que, embora as decisões pudessem ser revistas pelos tribunais, o Correio tinha esses poderes quando envolvesse postagem”.
No julgamento, o advogado do Correio, Saul Mindel, disse, embora tenha admitido que Lawrence era um escritor “de prestígio”, admirado pela crítica especializada e acadêmicos, que, para “a comunidade em geral”, era uma espécie de pornógrafo. “Lady Chatterley” apelava para “interesses prurientes”. Mindel estava sugerindo que o romance era lascivo e que isto era ruim para os bons costumes.
Barney, como primeira testemunha de defesa, disse que a Grove era uma editora respeitável e que havia publicado vários escritores importantes. “Ocorreu-me que seria incompreensível se este livro fosse publicado hoje que o público ficasse chocado, ofendido ou levantasse algum protesto contra ele; mas em vez disso que o acolheria como a republicação, a devolução à vida, de uma de nossas grandes obras-primas”, sugeriu o editor.
Em seguida, foram convocadas mais duas testemunhas, os importantes críticos Malcolm Cowley e Alfred Kazin. O primeiro “estabeleceu de modo bastante convincente dois pontos chaves: a posição inquestionável de Lawrence na literatura inglesa moderna, e a evolução dos gostos, a mudança no nível de tolerância do público leitor nos últimos trinta anos”.
O depoimento de Kazin, segundo Seaver, foi impressionante. “Rembar levou Kazin a concentrar-se na variação dos gostos e tendências literárias, ‘a crescente tolerância e aceitação de áreas cada vez mais amplas da experiência humana discutidas na literatura’, concentrando o argumento na ideia de que aquilo que uma geração pode rejeitar, uma nova pode aceitar ou abraçar”.
Como o Correio procrastinava sobre a liberação dos livros apreendidos, a Grove decidiu processar Christenberry. O juiz Frederick van Pelt Bryan, de “mente aberta”, estava preparado para enfrentar a onda conservadora. O advogado Rembar disse, no tribunal: “Depende de vocês decidir se D. H. Lawrence era um autor ou um pornógrafo”. Decisão do juiz, na síntese de Seaver: “O pedido da Grove por julgamento sumário foi aprovado e Christenberry foi advertido a não negar aos correios nem o livro nem o boletim informativo do Readers’ Subscription”. O governo recorreu. Mas a Justiça decidiu que “‘Lady Chatterley’s Lover’ podia ser enviado em segurança pelos correios americanos”.
Em março de 1960, “aproximadamente um ano depois de o livro ser lançado”, “a corte de apelações ratificou a decisão do juiz Bryan”. Enquanto os donos da moral espumavam de raiva, “Lady Chatterley” fazia sucesso entre os críticos e os leitores de praticamente todos os Estados do país. O resultado é que o livro foi para o topo das listas de best-sellers dos jornais. Grove ganhou dinheiro, é certo, mas gastou muito para defender o direito de publicar o notável romance de Lawrence.
Depois que a Grove venceu os conservadores, uma vitória dura e quase solitária, outros editores, percebendo o filão que era o romance de Lawrence, decidiram publicá-lo em brochura (a edição inicial da Grove era em capa dura, com o exemplar vendido a 6 dólares). A Simon and Schuster, por meio de sua série Pocket Books, solicitou a Barney os direitos para lançá-lo em brochura. Pedido negado, Mac Schuster e Leon Shimkin, contrariados, lançaram uma edição em brochura por 35 centavos. Para não perder vendas, a Grove também lançou sua brochura. Outras editoras lançaram o livro e ganharam muito dinheiro. “Ao todo, bem mais de 6 milhões de exemplares foram vendidos dos vários livros de capa mole. Se fossem todos da Grove, as crises financeiras dos anos futuros nunca teriam acontecido”, anota Seaver. (A Inglaterra publicou “Lady Chatterley”, finalmente sem cortes, apenas em 1960. O romance foi lançado pela Penguin Books.)
A luta pela liberdade às vezes é de poucos, mas o direito à liberdade, conquistado, é todos.
Brasil conta com quatro edições de Lady Chatterley
O Brasil é um país afortunado, pois conta com (pelo menos) quatro traduções de “O Amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence. A edição da Ediouro, com tradução de Fernando B. Ximenes, foi publicada em 1973 e republicada pela Publifolha em 1998. A Editora Graal lançou uma edição em 1997, com tradução de Glória Regina Loreto Sampaio.
A edição da Best Seller, com tradução de Rodrigo Richter, saiu em 2007. Trata-se da mesma versão da Civilização Brasileira, de 1964. No prefácio, “Um livro perseguido que sobrevive aos fariseus”, o editor Ênio Silveira escreveu: “No Brasil, quando lançamos em plena ditadura a primeira edição em língua portuguesa, os Goebbels caboclos do famigerado DIP também não perderam tempo: determinaram a apreensão da obra”.
A tradução mais recente (2010), feita por Sergio Flaksman, é a da Companhia das Letras & Penguin. A nobelizada Doris Lessing é a autora de uma excelente introdução. A versão é anotada e no final, assim como na edição da Ediouro & Publifolha, há o texto de Lawrence “A Propósito de ‘O Amante de Lady Chatterley’”.
1º parágrafo exibe a beleza de “O Amante de Lady Chatterley”
Primeiro parágrafo do romance “O Amante de Lady Chatterley”, de David Herbert Lawrence:
“Nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a vê-la tragicamente. O cataclismo já aconteceu e nos encontramos em meio às ruínas, começando a construir novos pequenos habitats, a adquirir novas pequenas esperanças. É trabalho difícil: não temos mais pela frente um caminho aberto para o futuro, mas contornamos ou passamos por cima dos obstáculos. Precisamos viver, não importa quantos tenham sido os céus que desabaram.”
O romance é de 1928. (Companhia das Letras & Penguin, tradução de Sergio Flaksman, página 45)
Somos transmissores
D. H. Lawrence
Somos, ao viver, transmissores de vida.
Quando deixamos de transmitir vida, ela a vida também deixa
de fluir em nós.
Parte do mistério do sexo, isto é um fluxo à frente.
Gente assexuada não transmite nada.
Mas se chegamos, trabalhando, a transmitir vida ao trabalho,
a vida, ainda mais vida, se lança em nós compensando, se mostrando
disposta a tudo
e pelos dias que vêm nos encrespamos de vida.
Mesmo que seja uma mulher fazendo um simples pudim, ou um homem
fazendo um tamborete,
se a vida entrar nesse pudim ele é bom
bom é o tamborete,
contente fica a mulher, com a vida nova que a encrespa,
contente fica esse homem.
Dê que também lhe será dado
é ainda a verdade da vida.
Mas não é assim tão fácil. Dar vida
não quer dizer passá-la adiante a algum bobo indigno, nem deixar que os
mortos-vivos te suguem.
Quer dizer acender a qualidade da vida onde ela não se encontrava,
mesmo que seja apenas na brancura de um lenço lavado.