A anarquia dos poderosos

14 junho 2020 às 00h01

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Em transe por conta de uma tripla crise, sanitária, econômica e política, o Brasil está ameaçado de se ver frente à dupla face da anarquia, semeada de dentro dos palácios
Arnaldo Bastos Santos Neto
Especial para o Jornal Opção
A coalizão formada pelos EUA para derrotar Saddam Hussein não teve dificuldades no cenário militar. Entre o início da invasão em 20 março de 2003 e a tomada de Bagdá transcorreram apenas algumas semanas. O exército iraquiano e sua famosa Guarda Republicana não puderam fazer frente ao poderio de uma coalização multinacional equipada com a melhor tecnologia bélica disponível.
Mas no mesmo mês em que tomou Bagdá, os EUA a perdeu. A derrocada do Exército iraquiano foi também acompanhada pelo desmoronamento de sua Administração Pública. Entregue a uma profunda anarquia, os saques e a violência tornaram Bagdá um inferno e os novos senhores pouco fizeram para evitar o caos. A destruição do acervo do Museu de Bagdá, com o roubo de aproximadamente 10.000 peças de arte, ocorrida entre os dias 10 a 12 de abril de 2003, é o exemplo mais eloquente da provação iraquiana. A dilapidação de um patrimônio simbólico inestimável foi a gota d’água para indispor de vez os iraquianos contra os seus pretensos libertadores.
Se a anarquia dos governados assusta pelo seu potencial de barbárie, não devemos, todavia, deixar de refletir sobre o outro lado da anarquia, faceta mais perigosa e destrutiva que a primeira. Digo mais destrutiva e perigosa porque a anarquia dos governados é geralmente debelada após certo tempo. As marcas da explosão de violência, por vezes motivada pelo cometimento de uma injustiça extrema por parte dos governantes, certamente ficam, mas os surtos de anomia geralmente são breves. Uma sociedade democrática deve aprender a lidar com tais fenômenos sem que isso abale a legitimidade das instituições.
O outro lado da anarquia, o mais mortífero, é a anarquia dos governantes, a outra face da desordem. Esta não precisa de um surto de violência para se instalar. Pode ocorrer aos poucos, devagar, corroendo as bases da autoridade por dentro. Na ideia grega de degeneração das formas de governo, temos uma percepção de como as coisas acontecem, transmutando uma ordem em outra, de uma forma boa em outra má. Entre as formas representativas do mau governo está a tirania, o governo opressivo de um só. A tirania nada mais é que a anarquia dos governantes.
Trazendo o exemplo para nossos dias, podemos ver como a anarquia toma conta da ordem estabelecida, solapando o respeito às leis e ao Estado de Direito. Quando um governante lança a discórdia entre todos e até mesmo entre os seus, desautoriza os agentes do próprio Estado, hostiliza abertamente os demais poderes e governantes dos entes federativos e ao mesmo tempo incentiva ações ilegais e violentas, estamos assistindo não a um fortalecimento do Estado e da ordem democrática, mas tão somente sua degeneração.
Assim como o sultão não tinha limites a seus caprichos e apetites (inclusive sexuais), o tirano também reivindica o papel de implantar uma nova desordem, travestida sobre a forma autoritária, onde seus desejos são os desejos do próprio Estado. O caos é o ambiente propício para tal metamorfose. A incapacidade de autocontenção do tirano revela a anarquia de sua alma, sua incapacidade de lidar e controlar as paixões que revolvem em seu íntimo. O tirano, segundo Platão, busca sempre eliminar os que ousam lhe falar livremente e o criticam, até não deixar ninguém dentre amigos e inimigos que tenha alguma valia. Homem furioso, tem sempre necessidade de provocar guerras. E quando tomado por tais acessos de fúria destrói qualquer opinião ou desejo prudente que tenha dentro de si. Acorrentado aos seus temores e a paixões de todo tipo, o tirano também vive evitando a razão e a lei. Assim como a ordem na alma dos indivíduos é condição para a ordem na cidade, a desordem interior dos governantes é a receita para a destruição das bases da vida civilizada. A alma tirânica conduz inevitavelmente à cidade tirânica e esta é infeliz e empobrecida.
Quando a ideia da lei, este traço distintivo da vida civilizada, é substituída pelo capricho do governante sempre insatisfeito, o corolário será a perda da liberdade, que pode durar décadas, conforme a experiência dos povos. As múltiplas regras de justiça que caracterizam uma cidade bem ordenada vão pouco a pouco se resumindo a uma só fórmula: “a cada um de acordo com sua obediência”. Por vezes, tão desnaturada fica a sociedade tiranizada, acostumada a sempre obedecer, que nem mesmo a morte do governante é suficiente para dar fim à tormenta. Um novo tirano é posto em seguida, como que por força de um hábito adquirido.
Numa dialética inevitável, a desordem na alma do tirano irá gerar a desordem dos governados, que surge como busca de um antídoto desesperado para um organismo enfermo. A cidade, lugar onde a lei é comum a todos, dissolve-se na anomia de um revivido estado de natureza.
Em transe por conta de uma tripla crise, sanitária, econômica e política, o Brasil está ameaçado de se ver frente à dupla face da anarquia, semeada de dentro dos palácios. Os homens livres, aqueles que somente podem viver numa cidade livre, não podem aceitar a degeneração da democracia.
Arnaldo Bastos Santos Neto é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG).