1
À Procura da Própria Coisa — Teresa Montero

Feliz do país que conta com três biografias excepcionais da escritora Clarice Lispector. “À Procura da Própria Coisa — Uma Biografia de Clarice Lispector” (Rocco, 752 páginas), de Teresa Montero, é um trabalho exemplar, tanto pelas revelações quanto pela pesquisa exaustiva. Ela explicita, por exemplo, que, ao voltar a Recife, depois de muitos anos ausente, a autora “ganhou” o tema para o romance “A Hora da Estrela”. O livro contém fotografias inéditas. No capítulo “Clarice pela lente dos fotógrafos”, a pesquisadora revela a autoria das imagens e conclui que suas fotos colaboraram, de alguma maneira, para o estabelecimento de sua mística nacional e internacional. Outra biografia de excelente qualidade é “Clarice — Uma Vida Que Se Conta” (Edusp, 656 páginas), de Nadia Battella Gotlib. “Clarice” (Companhia das Letras, 576 páginas), de Benjamin Moser, é uma biografia de qualidade, mas acabou “vendida” como a melhor, o que não é. Inclusive, Teresa Montero (antes da atual, havia estrito outra biografia) e Nadia Gotlib foram, isto sim, as pioneiras no levantamento das principais informações a respeito da escritora ucraniana-brasileira. Mas, claro, o americano Moser é mais midiático (por sinal, fez um bom trabalho de divulgação da obra de Lispector no exterior, notadamente nos Estados Unidos).

2
João Cabral: Uma Biografia — Ivan Marques

O livro “João Cabral de Melo Neto — Uma Biografia” (Todavia, 557 páginas), de Ivan Marques, exibe a excelência do pesquisador patropi. O autor esquadrinha, de maneira tão rigorosa quanto vigorosa, a obra e a vida do poeta pernambucano. Mostra que começou como “aprendiz” de Carlos Drummond de Andrade (apreciava sua ironia, sua falta de sentimentalismo), se tornou um par e, adiante, passou a acreditar que havia “superado” o mestre. A pesquisa exibe a história e abre espaço para o leitor decidir, se quiser. A interpretação da obra, amparada na bibliografia e na fortuna crítica de qualidade, é valiosa. O professor da USP situa-a, à perfeição, no contexto cultural do país e do exterior (por exemplo, a conexão com a poesia de Paul Valéry e a arquitetura de Le Corbusier). A narrativa de como escapou ao domínio dos concretistas, que o queriam como mestre, é deliciosa. O registro de um João Cabral múltiplo (poeta, quase-toureiro, crítico, jornalista, editor, tradutor, jogador de futebol) é um dos pontos fortes da obra. Ivan Marques relata os anos finais do autor de “A Educação Pela Pedra” com tanta elegância, sugerindo que era tão “humano” quanto qualquer um de nós, que não mancha a história do poeta. O drama da depressão, do alcoolismo e da cegueira — um fim terrível — é registrado com presteza e delicadeza. Vale ler acompanhado da “Poesia Completa” (Alfaguara, 895 páginas). A edição foi organizada por Antonio Carlos Secchin.

3
Vietnã: Uma Tragédia Épica — Max Hastings

“Vietnã: Uma Tragédia Épica — 1945-1975” (Intrínseca, 847 páginas, tradução de Berilo Vargas), de Max Hastings, é um livro extraordinário. A do Vietnã não foi, como sublinha o autor, apenas uma guerra americana no Oriente. Os franceses também estiveram por lá. “A luta pelo Vietnã durou três décadas e custou algo entre duas e três milhões de vidas.” O historiador britânico frisa que, “durante sua última fase, a guerra capturou a imaginação, provocou o horror e até a repulsa de centenas de milhares de ocidentais, destruiu um presidente dos Estados Unidos [Lyndon Johnson], e contribuiu para a queda de um segundo” (Nixon). Hastings diz algo que raros estudiosos da luta mencionam: “Só os mais simplórios da direita ou da esquerda política ousam sugerir que no Vietnã qualquer dos lados tinha o monopólio da verdade”. Não há dúvida de que os Estados Unidos excederam na região. Mas o pesquisador apresenta outra dimensão: “Hanói não divulgava instantâneos comparáveis [ao ataque napalm, em 1972, pelos americanos] de células que executavam opositores locais sepultando-os vivos, nem de vietcongues tombando em assaltos fracassados. (…) O que o Politburo de Hanói e a Frente de Libertação Nacional deram ao povo sul-vietnamita foi apenas a oportunidade de trocar a opressão de chefes militares e proprietários de terra pela sujeição, ainda mais dura, a discípulos de Stálin”. O relato de Hastings confere nuance, uma história não unidimensional, à guerra que galvanizou a opinião pública sobretudo entre as décadas de 1960 e 1970. Um livro crucial.

4
O Capitalismo Mundial — Salatiel Correia

O engenheiro Salatiel Pedrosa Soares Correia, mestre pela Unicamp, escreveu um livro valioso que pode nos ajudar a entender que a crise energética do Brasil não tem a ver tão-somente com fatores climáticos (escassez de chuvas, por exemplo). “O Capitalismo Mundial e a Captura do Setor Elétrico na Periferia” (Appris, 280 páginas) resulta de uma pesquisa exaustiva, que deu suporte a uma interpretação notável a respeito de como as potências capitalistas, notadamente os Estados Unidos (e inclusive a Itália), capturaram o mercado de energia elétrica para si, arrancando-o do controle do Estado. Líderes locais (alguns deles intelectualizados, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso), como determinados governadores, parecem que sequer compreenderam que, portando-se como agentes, foram, sobretudo, joguetes do império do jogo dito liberal. Poderiam ter reagido? Em alguns casos, é possível que sim. Mas, no geral, aderiram alegremente ao discurso de que o Estado era incapaz de gerir as empresas de energia do país. Privatizado o setor, com amplo apoio da imprensa — que comprou o discurso privatista sem avaliar com precisão o real interesse público —, o serviço de energia, longe de melhorar, piorou. É o caso da Enel, que, se na Itália, é estatal, no Brasil é privada. Soares Correia não faz “discursos” na sua excelente obra. Pelo contrário, expõe com rigor o que aconteceu e, também, continua ocorrendo. O mercado é, por assim dizer, um “assaltante” das criações dos Estados-nações.

5
Como a Covid Abalou a Economia Mundial — Adam Tooze

“Portas Fechadas — Como a Covid Abalou a Economia Mundial” (Todavia, 380 páginas, tradução de José Geraldo Couto), de Adam Tooze, é um desses livros brilhantes que deveriam provocar debates, mas, no geral, são esquecidos depois de algumas resenhas na imprensa. O autor é professor da história na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, e estudioso da economia internacional (por sinal, tem acertado mais sobre as crises do capitalismo do que muitos economistas). O ex-mestre de Cambridge e Yale destaca que, “no registro histórico do capitalismo moderno, nunca houve um momento em que cerca de 95% das economias mundiais sofreram uma contração simultânea do PIB per capita como ocorreu na primeira metade de 2020. Mais de 3 bilhões de adultos foram dispensados de seus empregos ou arranjaram um jeito de trabalhar em casa. Cerca de 1,6 bilhão de jovens em todo o mundo tiveram sua educação interrompida. O Banco Mundial estimou que a perda de rendimentos ao longo da vida por conta de capital humano perdido pode chegar a 10 trilhões de dólares. (…) Para enfrentar a crise, o que necessitávamos era de uma sociedade que priorizasse a assistência”. Os Estados Unidos, sob o ex-presidente Donald Trump, não priorizou o social. O “mercado” entrou em parafuso e, mais uma vez, o Estado foi chamado para “salvá-lo”. “Enxergar 2020 como uma crise abrangente da era neoliberal ajuda-nos a encontrar nosso rumo histórico.” Os pobres? Continuam sendo deixados para trás. O presidente Jair Bolsonaro — visto como “machão” — sai mal do relato de Tooze. Pode-se sugerir que, no caso da Covid-19, a China saiu-se melhor do que potências ocidentais? Tooze diz que sim. Por que é uma ditadura? Também. Mas não só. O Estado assistiu com eficiência a todos, não apenas aos ricos, e evitou-se o negacionismo.

6
Fernando, João, Marcelo — Iúri Rincon Godinho

“Fernando, João, Marcelo e a Geração Que Fez da Música Goiana Sucesso Popular” (Contato Comunicação, 245 páginas), de Iúri Rincon Godinho, conta a história extraordinária de artistas que, nascidos em Goiás, conquistaram o Brasil (a partir de novelas globais). Por vezes, se diz que a música popular produzida no Estado é de qualidade, mas não alcança o país. O pesquisador mostra que, pelo contrário, o trabalho de Fernando Perillo, João Caetano, Marcelo Barra e do maestro José Eduardo Morais conquistou o país. E exatamente pela qualidade. E, mais, não faltou ousadia aos artistas (e aos letristas essenciais, como Tavinho Daher e Nasr Chaul). É provável que, se tivessem cedido ao populismo de determinados diretores da televisão brasileira — tentaram folclorizar João Caetano, que, prontamente, disse “não” —, poderiam ter obtido mais sucesso comercial. Optaram pela manutenção da qualidade. Hoje, não mais garotos, continuam gravando músicas sofisticadas e, ao mesmo tempo, retratando seu Estado (descobre-se o universo a partir da aldeia, teriam dito Púchkin e Tolstói) e a, digamos, “alma humana”. Um disco recente de João Caetano, no qual homenageia o (excelente) falecido parceiro Tavinho Daher, é de uma beleza musical e poética rara.

7
Poesia Completa — Emily Dickinson

Héracles é brasileiro? Em termos de tradução, é. Adalberto Müller, munido de duas armas, coragem e competência, decidiu traduzir toda a “Obra Completa” (UnB/Unicamp, 883 páginas) da poeta americana Emily Dickinson. Deu-nos até agora, numa edição bilíngue, o volume 1. A perícia do tradutor é visível. Sua versão nada fica a dever a mestres como Augusto de Campos, José Lira, Aíla de Oliveira Gomes e Idelma Ribeiro de Faria. É um par deles e de outros, com a diferença de que traduziu mais poemas. Dickinson é — ao lado de Walt Whitman, Hart Crane, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, Wallace Stevens e William Carlos Williams — uma das maiores poetas americanas.

Emily Dickinson

O crítico Harold Bloom especializou-se em “descobrir” pais fundadores e aqueles que deram seguimento à tradição, por vezes reinventando-a. Mas, a rigor, quem é mesmo o predecessor de Dickinson? O bardo britânico Shakespeare, Whitman? Ela certamente leu muito, assimilou o que quis de vários autores, mas tudo indica que tenha se inventado como poeta, com uma dicção tão única que dificilmente pode ser mimetizada. Para além da fortuna crítica, o que se deve fazer é publicar toda a arte de um poeta, para que possa ser avaliada no conjunto. Um exame das traduções de Müller sugere que a média da poesia é alta e que, na diversidade, há uma certa unidade. Um tradução (página 725): “O Suspense — é mais hostil que a Morte —/ A Morte — por Maior que seja,/É só Morte, não cresce mais —/O fim do Suspense — não há quem veja —// Mas morre — pra viver de novo —/ Só para de novo morrer —/Aniquilação — disfarçada de/Imortalidade —” (o uso do travessão para pontuar, como se não estivesse pontuando, parece idiossincrasia, mas, na verdade, era sua maneira de poetar).

8
O Espião e o Traidor — Ben MacIntyre

John le Carré disse sobre o livro “O Espião e o Traidor — O Caso de Espionagem que Acelerou o Fim da Guerra Fria” (Sextante, 351 páginas, tradução de Simone Reisner), de Ben MacIntyre: “A melhor história verídica de espionagem que eu já li”. Difícil discordar. Há várias histórias impressionantes do espião Oleg Gordievsky, do KGB, que, a partir de certo momento, por discordar da ideologia comunista da União Soviética, decidiu espionar para o MI6, o serviço de inteligência britânico. Conto uma delas. Certa feita, dadas algumas operações militares, a URSS de Leonid Brezhnev, secretário-geral, e Yuri Andropov, presidente do KGB, acreditaram que seu país sofreria um ataque nuclear da Otan, notadamente dos Estados Unidos.

Oleg Gordievsky

Alarmados, criaram a Operação Ryan e estiveram perto, para evitar a ofensiva capitalista, de promover um ataque nuclear maciço. Gordievsky alertou o MI6, que, transmitiu as informações a Margaret Thatcher e a primeira-ministra inglesa repassou-as ao presidente Ronald Reagan, dos Estados Unidos. Os dois, baseados nas informações precisas do espião, mudaram sua conduta e deixaram claro que não pretendiam atacar o país comunista. Relato mais uma história: denunciado pelo americano Aldrich Ames, espião da CIA a serviço do KGB, Gordievsky acabou nas garras da turma da Lubyanka. O MI6 articulou uma hábil operação de extração do agente, de Moscou para a Inglaterra, e conseguiu salvar sua vida.

9
Churchill: Caminhando Com o Destino — Andrew Roberts

Fascinado pela Segunda Guerra Mundial e seus personagens centrais, Andrew Roberts é um dos mais notáveis historiadores britânicos. “Churchill — Caminhando com o Destino” (Companhia das Letras, 1200 páginas, tradução de Denise Bottmann e Pedro Maia Soares) resulta de uma pesquisa exaustiva e original (o pesquisador obteve acesso, com exclusividade, aos arquivos da família real). O autor teve uma sorte extraordinária ao contar com pesquisas anteriores de alta qualidade, como as de Roy Jenkins, Martin Gilbert e, entre outros, John Keegan. Tudo (ou quase tudo) que o leitor quiser saber sobre o primeiro-ministro inglês, que arrancou os ingleses da posição quase ajoelhada ante a Alemanha nazista de Hitler, levantando-os com palavras candentes — verdadeiras, otimistas e terríveis (cortantes) —, operou para atrair o presidente Franklin Roosevelt para a batalha e acatou uma aliança contra Stálin (que detestava), está devidamente anotado neste livro de rara excelência. É uma verdadeira bíblia sobre este grande homem (e sobre o século 20, e parte do século 19), que, como mostra Roberts, nem sempre acertou. O lugar-comum sugere que hagiografias nada valem. Pode ser. Mas há uma hagiografia de qualidade, escrita por Paul Johnson (o primeiro-ministro da Inglaterra). Trata-se de “O Fator Churchill — Como um Homem Fez História” (Planeta, 461 páginas, tradução de Renato Marques). Quando se termina a leitura, não há como não concluir: é um livro sobre um deus. Vá lá: deus, não; quem sabe, semideus.

10
As Raízes Profundas do Jequitibá — Rildo Bento de Souza

O professor da Universidade Federal de Goiás Rildo Bento de Souza escreveu um livro notável, “As Raízes Profundas do Jequitibá — O Processo de Construção Mítica de Pedro Ludovico Teixeira” (Trilhas Urbanas, 395 páginas). Como se sabe, políticos fortes, que ficaram muito tempo no poder, tendem a “apagar” a história anterior, tornando seus personagens secundários (Getúlio Vargas, por exemplo, praticamente “soterrou” Washington Luís). De fato, o construtor de Goiânia era um grande homem, mas, nos 15 anos que governou Goiás de maneira ininterrupta — depois, voltou ao poder no período democrático —, o que se construiu, inclusive (e talvez sobretudo) com o apoio da imprensa, foi um personagem gigantesco, quase sem contradições e dissonâncias. Sem se preocupar em destruir seu personagem, Bento de Souza o examina cuidadosamente, com uma paixão distanciada. O personagem continua “grande”, porém dimensionado, situado. Resta o detalhe de que o pesquisador escreve muito bem. O livro resulta de sua tese de doutorado, mas felizmente o autor fez o que pôde, ao levar a história para o formato de livro, para expurgar a linguagem acadêmica. Permanece, é claro, o rigor. O livro é um portento. Uma prova da excelência da pesquisa na UFG.

11
A Rosa de Ninguém — Paul Celan

Na biografia “Paul Celan — Poeta, Superviviente, Judío” (Editorial Trotta, 458 páginas, tradução de Carlos Martín e Carmen González), John Felstiner, professor de Stanford, assinala que se trata do “poeta europeu mais significativo do pós-guerra”. Acrescenta que é um “poeta de memória plena”. “Celan se converteu em um poeta exemplar do pós-guerra porque insistiu em registrar em alemão a catástrofe ocorrida na Alemanha. (…) Na medida em que era uma língua que havia sido danada, poderia ser que seu verso reparasse o dano”. O leitor brasileiro acaba de ganhar dois livros, com traduções esmeradas (e apresentações esclarecedoras), de sua poesia: “Ar-Reverso” (Editora 34, 205 páginas, tradução de Guilherme Gontijo Flores) e “A Rosa de Ninguém” (Editora 34, 191 páginas, tradução de Mauricio Mendonça Cardozo). Eis o poema “Salmo”: “Ninguém nos molda outra vez de terra e barro,/ ninguém encanta nosso pó./ Ninguém.// Louvado seja você, Ninguém./ Por ti queremos/ florescer./ De encontro/ a ti.// Um nada/ éramos, somos, continuaremos/ sendo, florescendo:/ a rosa do nada, a/rosa de ninguém.// Com/ o estilete almaclaro,/o estame celestiárido,/ a corola rubra/ do nosso canto que palavra purpura/ sobre, ó por sobre/ o espinho” (tradução de Mendonça Cardozo). Há outras versões de Celan em português, como “Cristal” (Iluminuras, 190 páginas, tradução de Claudia Cavalcanti). A Editora Antígona, de Portugal, publicou “Tempo do Coração” (458 páginas, tradução de Claudia J.Fischer e Vera San Payo de Lemos), correspondência de Ingeborg Bachmann e Paul Celan. Sobrevivente do Holocausto, o poeta se matou, em 1970, aos 49 anos. Afogou-se no Rio Sena, em Paris

12
Contos Completos — José J. Veiga

A Companhia das Letras acertou a mão ao adquirir os direitos de publicação da literatura do escritor goiano José J. Veiga. Seus romances e, sobretudo, contos são de excelente qualidade e receberam análises de críticos do porte de Antonio Candido, Silviano Santiago e José Castello. A edição de “Contos Reunidos” — por exemplo, “Os Cavalinhos de Platiplanto”, “A Estranha Máquina Extraviada’ e “Objetos Turbulentos” —, com posfácio da escritora Socorro Acioli, é primorosa. Permite verificar que, se há contos excelentes, que se destacam, como “Os Cavalinhos de Platiplanto”, a média de sua literatura é alta. “José J. Veiga precisa ser lido no lugar justo de um de nossos melhores prosadores. Um contista exemplar. Veiga tem muito a ensinar ao nosso tempo”, afirma Socorro Acioli. No dizer de Antonio Candido, “são contos marcados por uma espécie de tranquilidade catastrófica”. José Castello assinala: “José J. Veiga desmonta a identificação mecânica entre o fantástico e o alheio, mostrando, ao contrário, que o fantástico não só está entre nós como é um efeito da constituição humana — um traço fundamental do próprio humano”. Sobre “Os Cavalinhos”, Silviano Santiago postula que a história “consegue equilibrar a violência que domina o mundo real com a nostalgia do paraíso que se perdeu, somando à saudade do passado a realização do desejo”.

13
Morte Certa — Dau Bastos

O crítico americano Edmund Wilson, leitor compulsivo, ficava impressionado como escritores com menos formação intelectual do que ele escreviam uma literatura excepcional. Era o caso de Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Vladimir Nabokov era um caso à parte, dada sua formação tão ampla quanto a do crítico (chegaram a brigar por causa da tradução de “Eugênio Onêguin”, de Púchkin). Aos poucos, Wilson decidiu desenvolver sua própria literatura. De fato, é muito bem escrita, mas o que lhe falta sobrava nos escritores sobre os quais escrevia: imaginação literária. Pois no caso brasileiro há exceções, como Dau Bastos. Depois de escrever brilhantemente sobre o francês Céline e o patropi Machado de Assis, que biografou com excelência, decidiu publicar literatura, e de qualidade. “Morte Certa” (Patuá, 272 páginas) certamente é tributário da literatura brasileira anterior, de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, mas sobrevive como imaginação livre, sem peias da influência. O certo é que, além de escrever bem, Bastos arquiteta e imagina bem. Sua linguagem parece simples, à primeira vista, porque não é rebuscada, mas isto é um engano: a prosa é altamente refinada (mas nada pomposa). Um trecho: “Tenho vontade de gritar para o vale que minha missão é derrubar os novos limites e devolver a fazenda às antigas medidas. Mas já soltei berros desesperados ontem à noite e temo que a repetição passe por loucura”. Mas loucura mesmo é não ler Dau Bastos.

14
1922: A Semana Que Não Terminou — Marcos Augusto Gonçalves

A Semana de Arte Moderna se tornará centenária em fevereiro de 2022. Parte de seus criadores, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, continua sendo lida. O segundo Andrade, apropriado pelos concretistas, ficou com a pecha de mais, digamos, “modernista”. Outros, como Graça Aranha, foram devorados, se foram, pela poeira corrosiva do tempo. Quem permanece consagrado são os “filhos” — rebeldes ou não — da SAM. Na prosa, ganharam status de escritores seminais, assim como Machado de Assis — que, morto em 1908, não participou da Semana paulista, mas era, com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, modernista —, o alagoano Graciliano Ramos, o mineiro Guimarães Rosa e a ucraniana-brasileira Clarice Lispector. Na poesia, os pais da Semana foram “superados” pelos filhos, como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar. Para entender o que foi, é e não foi a SAM há vários livros. Um deles não tem perfil acadêmico, mas é esclarecedor: “1922 — A Semana Que Não Terminou” (Companhia das Letras, 362 páginas). A família Prado, culta e rica, bancou a Semana de 22. Na página 184, informa-se: “O primeiro membro da família Prado a desembarcar no Brasil partiu de Portugal, no início do século 18, movido pelo sonho de descobrir ouro. Chamava-se Antônio, e, depois de se estabelecer comerciante e pequeno proprietário de terra no interior de São Paulo, foi garimpar pelo sertão de Goiás”. O livro “Em Busca da Alma Brasileira — Biografia de Mário de Andrade” (Estação Brasil,543 páginas), de Jason Tércio, é um trabalho meticuloso de compreensão de um dos próceres (homem e obra) da Semana. O que resulta da pesquisa é um indivíduo e criador artístico mais complexo e nuançado do que se imaginava (sua vida era, em livro, praticamente um tabu, dada sua homossexualidade, ou, como quer Tércio, bissexualidade).

15
A Noite Belga — Halley Margon

O livro “A Noite Belga” (7 Letras, 405 páginas) é um livro quase inclassificável. Os textos são, na verdade, ensaios — alguns deles pequenos, mas densos. O que o escritor Halley Margon faz, com uma prosa ágil e irônica, é uma crítica corrosiva do liberalismo, do mercado (o que parece moderno e progressista, sugere o crítico, é, na verdade, reacionário; quando se fala em mudança o que se quer não é promover, mas sim conter exatamente a mudança real, a que, em tese, deveria beneficiar todos, mas nunca beneficia). É uma crítica de esquerda, engajada, o que não significa que seja imprecisa, ou meramente ideológica. As análises mostram conhecimento de causa, percepção ampla para o detalhe. Sobretudo, como discípulo rebelde de Joyce e Beckett, Halley Margon escreve muito bem (e escrever bem não é ser pomposo, quase parnasiano), por vezes de maneira fragmentária, afiada, cortante. Nos seus melhores momentos, nota-se, de cara, a força da inteligência examinando os fatos, dando-lhe os nomes devidos, sem tergiversações. Em nome da salvação do mercado os poderes tudo fazem, tudo podem fazer. Quando o mercado “cai”, por suas falhas, que antes eram apontadas como “perfeições” (quase forças da natureza), o Estado, sempre ele, é chamado para resolver o pepino. O resultado é que os pobres continuam muito pobres e os ricos permanecem muito ricos (e choramingando recursos do Estado; na verdade, da sociedade). Halley Margon mostra isto, com graça, leveza, profundidade e, sim, ira. Observe o leitor que há uma unidade sólida (o caráter fragmentário é, no geral, ilusório) neste livro importante e que precisa ser lido por aqueles que efetivamente querem um mundo mais justo para todos.

16
Recurso Final — Paulo Markun

A imprensa erra. A polícia erra. Quando todos erram, o somatório dos erros acaba se tornando gigante e, para piorar, “inconsertável”. Quando se diz que uma pessoa é corrupta, com espetacularização em toda a imprensa, mesmo sem provas cabais e sem processos finalizados por juízes, desembargadores e ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, acabou: mesmo que seja inocentada, meses ou anos depois, ficará como condenada aos olhos do público. Tal aconteceu com o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, da Universidade Federal de Santa Catarina. Sob suspeita de corrupção, sem acusação formal provada, com indícios amplos, o professor foi preso. Ao ser solto, envergonhado, tanto pela prisão quanto pela injustiça, o mestre se matou, dentro de um shopping — como se quisesse chamar a atenção para a tragédia de um indivíduo (lembrando histórias de Kafka) —, em 2017. No caso de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, a Polícia Federal errou, talvez por açodamento e não má intenção, e a imprensa, no geral, errou junto. Lembro-me que poucos jornais e revistas publicaram reportagens nuançadas. Posteriormente, a revista “Veja”, e talvez uma ou duas outras publicações, “reabriu” o caso e mostrou os erros cometidos. Mas era tarde. O mestre já havia se matado, deixando enlutada a sua família. Agora, quatro anos depois, o jornalista Paulo Markun conta a história, de maneira detalhada, no livro “Recurso Final — A Investigação da Polícia Federal Que Levou ao Suicídio de um Reitor em Santa Catarina” (Objetiva, 304 páginas).

17
Pantagruel e Gargântua — François Rabelais

“Pantagruel e Gargântua” (Editora 34, 447 páginas, tradução de Guilherme Gontijo Flores), de François Rabelais, é um clássico francês e da literatura global. Chega ao Brasil com tradução bem-cuidada, apresentação e notas de qualidade. No texto “Testando o relé: Rabelais em vida, obra e tradução”, Gontijo Flores assinala: “Esta é a primeira tradução integral em língua portuguesa das obras de François Rabelais (1483?-1553) que nos chegaram.” A obra do escritor sairá em três volumes (o primeiro contém “Pantagruel” e “Gargântua”). “Mais do que traduzir Rabelais como certeza autoral, traduzo certa tradição rabelaisiana que permite sua presença ou movência . (…) O presente experimento tradutório tem dois desejos. O primeiro, e maior de todos, é recuperar toda a potencialidade” da “linguagem carnavalizada, apresentando a possibilidade de convívio entre formas eruditas com neologismos importados de outras línguas e o vocabulário rápido, ágil e mesmo sujo das ruas, das feiras, dos bares, ao mesmo tempo que busco recriar o sem-fim de trocadilhos, jogos sonoros, conceituais, geográficos, os trechos em verso rimado, toda a verdadeira pirotécnica verbal, quase sempre sob a égide do riso. (…).”

Rabelais

“Em segundo lugar, há o desejo de tornar Rabelais mais compreensível para o leitor moderno. Ele não era fácil nem para seus contemporâneos, porque estava explorando possibilidades ainda inauditas em francês; mas, mesmo assim, muito do riso estava em jogos bem compreensíveis para quem vivia a mesma época, os mesmos dilemas históricos, as mesmas personas políticas”. Portanto, Rabelais chega, mais do que rechega, ao Brasil o gigante que é, e reverbera aqui e acolá (Machado de Assis e o irlandês Laurence Sterne talvez sejam seus filhos ou netos), numa edição de alta qualidade, devidamente anotada e explicada. Um dos principais lançamentos de 2021, o que prova que, em termos culturais, o ano não foi tão ruim assim.

18
Brimos — Diogo Bercito

“Brimos — Imigração Sírio-Libanesa no Brasil e Seu Caminho Até a Política” (Fósforo, 269 páginas), do jornalista Diogo Bercito, mestre em estudos árabes pela Universidade Autônoma de Madri e pela Universidade Georgetown, é desses livros interessantíssimos que, se a gente deixar, passa batido. “Entre 1880 e 1969, 140 mil árabes imigraram para o Brasil, a maior parte deles libaneses e sírios. Entre essas hordas estava Habib al-Haddad, o combativo padre do vilarejo de Ain Ata, avô do ex-prefeito [de São Paulo] Fernando Haddad. Viajou também Nakhul Temer, que abandonou uma casinha de pedra no povoado de Btaaboura — seu filho, Michel Temer, em poucas décadas se mudou para o Palácio do Jaburu. Já os pais de Gilberto Kassab descendiam do santo Nimatullah Kassab al-Hardini, tão honesto que uma vez se puniu por ter comido o grão-de-bico da plantação de outra pessoa.” Parte significativa dos chegantes se tornou mascate. Veja-se um caso. A família Belém — possivelmente, no início, Bethlém (ou Bethlem) — seria de origem sírio-libanesa, tendo chegado ao Brasil no século 19 e, em seguida, se espalhado pelo Rio de Janeiro, Minas Gerais (parte teria se instalado em Araguari e Patrocínio, segundo a história familiar contada por meu pai, Raul de França Belém), Goiás (na região de Pindorama, hoje Tocantins) e Ceará. Tudo indica que eram mascates — daí as andanças pelo país.

19
Nossa Parte de Noite — Mariana Enriquez

Para quem gosta de histórias de terror, os livros da escritora, biógrafa (de Silvina Ocampo) e jornalista argentina Mariana Enriquez são uma ótima opção. Apreciadora de Stephen King, a escritora conta histórias possíveis de ocorrerem na realidade, com um toque do sobrenatural. Excelente contista, seu livro de contos publicado em 2017 “As Coisas Que Perdemos no Fogo” (Intrínseca, tradução de José Geraldo Couto, 192 páginas) traz histórias impressionantes, com enredos da vida cotidiana. O conto que dá nome ao livro causa horror exatamente por mostrar que o que acontece é uma possibilidade real. “Nossa Parte de Noite” (Intrínseca, tradução de Elisa Menezes, 544 páginas) traz o sobrenatural para tratar de um tema caro aos argentinos — a ditadura militar que ocorreu entre 1966 e 1973. Neste livro, a história da ditadura apenas tangencia a “verdadeira” história do livro. Uma seita satanista que precisa de um médium para invocar a escuridão encontra em Juan Peterson o mais poderoso de todos os tempos. A cada capítulo a história é mostrada a partir de um personagem, construindo-se um quebra-cabeça da vida do personagem principal. Os militares aparecem como pano de fundo auxiliando a encobrir os horrores que a seita faz com as pessoas. Assim, Enriquez encontra uma maneira de tratar desse período de horror da recente história argentina por meio do terror sobrenatural.

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A Vida de Vernon Subutex, volume 1 — Virginie Despentes

A francesa Virginie Despentes é daquelas pessoas que somente sua vida já vale vários romances — vide “Teoria King Kong” (N-1 Edições, 128 páginas, tradução de Márcia Bechara). “A Vida de Vernon Subutex”, volume 1 (Companhia das Letras, 336 páginas, tradução de Marcela Vieira) é uma história tão bem narrada que parece que somente quem viveu uma vida como a de Despentes poderia tratar com tanta intimidade do submundo. Neste primeiro volume, infelizmente os outros dois volumes ainda não foram traduzidos para a língua portuguesa, conhecemos a história de Vernon, desde quando tinha uma loja de discos em Paris — para os apreciadores de rock a história é um prato cheio, pois Despentes sabe escrever sobre o assunto, até sua degradação socioeconômica. A escritora traz vários personagens para a cena que monta e sabe articular suas histórias com mestria. Vale a pena ler e esperar que os dois outros livros que compõem a trilogia sejam logo traduzidos.

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A Superindústria do Imaginário — Eugênio Bucci

“A Superindústria do Imaginário — Como o Capital Transformou o Olhar em Trabalho e se Apropriou de Tudo Que É Visível” (Autêntica, 446 páginas), do professor da USP Eugênio Bucci, é um livro que perscruta os tempos atuais de maneira poderosa. Na apresentação, o professor da USP nota que a big techs, como Apple, Amazon, Alphabet (dona do Google), Microsoft e Facebook valem 5 trilhões de dólares. Sozinha, a Apple vale 2,3 trilhões de dólares (superando o PIB brasileiro). O “novo petróleo” é, no dizer da “The Economist”, são os dados pessoais. As legislações nacionais, por mais que os Estados sejam operosos, não conta de controlar tais empresas. O capitalismo mudou, e muito. “O que assumiu o lugar de destaque, ou primeiro plano, foi outra espécie de mercadoria, que não tem corpo físico palpável: os signos, sejam eles imagens, sejam palavras. O capitalismo dos nossos dias é um fabricante de signos e um mercador de signos — as coisas corpóreas não são mais o centro do valor. (…) Em lugar de produzir apenas objetos físicos (sapatos, automóveis), o capital aprendeu a fabricar discursos: uma marca, uma grife, um apelo sensual que faz de uma mercadoria ordinária um amuleto encantado. O mais incrível é que as imagens, os signos e os discursos têm valor de troca. São mercadorias, mas não mercadorias quaisquer: são as mercadorias dominantes. (…) O capital, além de explorar a força do trabalho, aprendeu a explorar o olhar — o capital explora o olhar como trabalho, compra o olhar em função daquilo que o olhar produz, e não apenas em função daquilo que o olhar pode ver”. O mundo está sob a hegemonia da Superindústria do Imaginário. (…) Todas as imagens acessíveis se tornaram mercadorias e são fabricadas industrialmente, ou, melhor, superindustrialmente. Impregnados de valor de troca, esses produtos atravessam a imaginação das pessoas. (…) No nosso tempo, o tempo da Superindústria do Imaginário, os mecanismos para enredar e saciar a demanda desejante foram monopolizados pela mercadoria. (…) As tais ‘gigantes da internet1 não fazem outra coisa que não seja capturar o olhar mediante anzóis libidinais (que interpelam o desejo), comercializar esse olhar e retroalimentar o circuito de sedução e comércio indefinidamente. Tudo o que se vê é uma fabricação da Superindústria do Imaginário”.

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Amoroso: Uma Biografia de João Gilberto — Zuza Homem de Mello

O músico e cantor João Gilberto precisava de uma biografia escrita por um pesquisador que realmente entendesse de música — de sua música original e complexa. Zuza Homem de Mello era o especialista certo. Escreveu a vida do amigo, de quem era admirador, e logo depois morreu. Parece que seu corpo havia “entendido” que o cérebro havia cumprido sua última e maior missão: explicar o homem e a música que os brasileiros tentam, mas talvez tenham dificuldade de entender. No primeiro capítulo, intitulado “Amizade”, Zuza relata suas intermináveis conversas telefônicas. Telefonar era, para JG, uma maneira de visitar. Confira um trecho da obra: “Ouvir João Gilberto era um prazer para ouvidos exigentes. O mesmo rigor com a emissão vocal de quando cantava se percebia nos telefonemas de madrugada. Não se perdia uma vogal ou consoante. Não era só que João cantava como falava: ele também falava como cantava, articulava cada palavra com dicção perfeita, sem gritar, não se perdia nada do que dizia, mesmo se a gente afastasse um pouco o ouvido do telefone. Sua preocupação com a emissão de voz sempre foi uma constante exercitada exaustivamente”. A biografia, publicada no fim de 2021, sugere que, apesar de tudo, o ano não foi tão ruim assim, apesar de tantas mortes provocadas pela Covid e pelo descaso do governo do presidente Jair Bolsonaro.

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Ermos e Gerais — Bernardo Élis

Bernardo Élis escreveu romances e contos de alta qualidade e seus livros precisam circular em edições caprichadas, assim como tem sido publicada a obra de José J. Veiga, pela Companhia das Letras. “Ermos e Gerais”, que tanto agradou os intelectuais e escritores do país, como Monteiro Lobato, Antonio Candido e Guimarães Rosa, contém alguns dos melhores contos do escritor, como “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá” (quiçá mais um “estudo” do comportamento das pessoas do que meramente o registro de uma cheia), “André Louco” (prato cheio para psicanalistas, por exemplo), “A mulher que comeu o amante”, “Papai Noel ladrão”, “O louco da sombra”, “O diabo louro” e, entre outros, “As morféticas”.

Bernardo Élis

Há quem acredite que literatura é como corrida, ou seja, que um escritor “supera” o outro, anulando sua literatura. Papo furado. Depois de Guimarães Rosa, passou-se a pensar, em certos círculos, que a literatura anterior não tinha importância, que havia sido superada. Nem o próprio Rosa, por sinal, pensava assim. É hora, portanto, de redescobrir autores de qualidade como Hugo de Carvalho Ramos, José Lins do Rego, Erico Verissimo e Bernardo Élis — tanto bons quanto Rosa, ainda que, é certo, menos inventivos.

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História da Riqueza no Brasil — Jorge Caldeira

O livro “História da Riqueza no Brasil — Cinco Séculos de Pessoas, Costumes e Governos” (Estação Brasil, 621 páginas), de Jorge Caldeira, é um esforço, raro e bem-sucedido, de reinterpretar a história do país, demolindo certos mitos (no período colonial havia um mercado interno relativamente sólido, o que revela que a economia não era voltada tão-somente para a exportação; em certo período do século 19, o Brasil chegou a ser mais rico do que os Estados Unidos). “Ao longo dos 75 anos entre 1889 e 1964 a economia brasileira foi uma das que mais cresceu no mundo. Além de crescer, distribuiu os frutos desse crescimento de forma razoavelmente equilibrada.” É provável que o nacionalista Jair Bolsonaro acredite que determinados militares, como Ernesto Geisel (de quem não gosta), eram liberais. Não eram, claro. “A grande mudança do regime militar foi promover uma forte estatização, expandindo a presença do governo federal na economia. Em apenas três anos, a instância central de poder passou a abocanhar uma fatiada riqueza nacional 43% maior. (…) Ante de 1964 havia 12 estatais; em três anos tornaram-se 44. (…) A criação de empresas estatais virou prática corriqueira: era, em média, mas do que uma empresa nova por semana; ao final da gestão havia nada menos de 440 novas empresas estatais”.

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Roberto Marinho: O Poder está no Ar — Leonencio Nossa

A Companhia das Letras é uma grande editora e, em tese, uma defensora da liberdade de expressão. Mas a direção da empresa luta, na Justiça, para impedir a circulação do livro “Roberto Marinho: O Poder Está no Ar — Do Nascimento ao Jornal Nacional” (Nova Fronteira, 576 páginas), do jornalista, escritor e pesquisador Leonencio Nossa. Ao mesmo tempo, para confrontá-lo — uma espécie de vingança editorial —, lançou recentemente um ensaio biográfico, de autoria de Eugênio Bucci, sobre o último grande magnata da imprensa e do entretenimento no Brasil. O livro de Bucci não é ruim, mas é bem aquém do texto de Leonencio (é provável que este tenha sido sua fonte básica). A obra de Leonencio resulta de uma pesquisa exaustiva — que resultou tanto numa biografia quanto num valioso estudo da história do Brasil no século 20. Roberto Marinho aparece de corpo inteiro, com virtude e defeitos — suas contradições são expostas com rigor e sem tergiversações —, o que não o diminui. Pelo contrário, o personagem, exibido de maneira matizada, ganha sua dimensão (grandeza) real. O livro soube avaliar pela média (mas sem fazer média) o homem que tornou o jornal “O Globo” e a TV Globo veículos de comunicação poderosos e se tornou uma eminência parda, em termos políticos, da República. Porém, ao contar a história de um banqueiro, que quis comprar (ou “tomar”) a Globo, Leonencio criou uma espécie de maldição para sua excelente obra. Tanto que, processado por um suposto campeão da liberdade, o editor Luiz Schwarcz, Leonencio decidiu parar a escritura do segundo volume. Lamentável.

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Real, Simbólico e Imaginário no Ensino de Jacques Lacan — Michele Roman

Para quem tem interesse pela psicanálise — como diletante ou praticante —, um livro que auxilia a compreender os três registros propostos pelo psicanalista francês é “Real, Simbólico e Imaginário no Ensino de Jacques Lacan” (Toro Editora, 56 páginas), de Michele Roman Faria. O livro, fruto de mais de dez anos de pós-doutorado, é um resumo de seu projeto no Instituto de Estudos Linguísticos (IEL) da Unicamp, sob supervisão de Nina Virgínia de Araújo Leite. Michele Faria, psicanalista e escritora, é reconhecida pela maneira didática como explora temas complexos da psicanálise lacaniana.

Jacques Lacan

Seus estudos rigorosos possibilitam que escreva com simplicidade — sem perda da complexidade —, e auxilie o leitor a compreender o hermetismo de alguns conceitos lacanianos. Para ela, faz parte da formação de um psicanalista a escrita e, além de seus outros livros, “Constituição do Sujeito e Estrutura Familiar” (Editora e Livraria Universitária), “Introdução à Psicanálise de Crianças: o Lugar dos Pais (Toro Editora), é organizadora de “O Psicanalista: na Instituição, na Clínica, no Laço social, na Arte (Toro Editora), em três volumes, contribuindo para a formação de vários psicanalistas no Brasil.

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A Fraude e Outras Histórias — Nikolai Leskov

O escritor russo Nikolai Leskov (18310-1895), embora pouco conhecido no Brasil, tem grande reconhecimento por autores como Liev Tolstói — que o considerava um escritor do futuro —, Maksim Górki (para quem Leskov era um mestre da palavra, tão bom quanto Tolstói, Gógol, Turguêniev e Gontcharov) e Walter Benjamin, que lhe dedicou o ensaio “O Narrador”. O filósofo alemão considerava Leskov como um grande narrador, que sabia utilizar de sua experiência e da formação que tinha para o trabalho com as palavras. Felizmente, a Editora 34 lançou dois livros de Leskov de contos traduzidos direto do russo — “Homens Interessantes e Outras Histórias, tradução de Noé Oliveira Policarpo Polli (também autor de um posfácio) e “A Fraude e Outras Histórias”, traduzido por Denise Sales (autora do posfácio, e há um ensaio de Elena Vássina). O autor é comparado a Anton Tchékhov na arte da escrita desse gênero literário. E a Editora Jabuticaba lançou a novela “Vontade de Ferro”, com tradução de Francisco de Araújo.

Nikolai Leskov

A respeito dos contos de “A Fraude”, além da história que dá nome ao livro, vale a pena ler “Kótin, o Provedor, e Platonida” e o conto fantástico “Águia Branca”. Comento a respeito de “Kótin”, uma história surpreendente sobre um rapaz criado como menina até os 12 anos, que se refere a si mesmo no feminino. Ao ficar órfão, decide cuidar de duas primas pequenas também órfãs e se torna reconhecido na cidade por seus talentos com habilidades manuais — consertos de objetos, costuras. No enredo, após a ocorrência do que Freud nomeou como “Das Unheimliche”, “O infamiliar” ou “O incômodo” — traduções brasileiras de uma palavra alemã impossível de tradução exata para a língua portuguesa, a história dá um giro, com um final inesperado. Leskov trata da alma do povo russo, dos mujiques, dos pobres, com uma beleza ímpar e seus contos têm uma graça e força impressionantes. Vale a leitura.

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Pássaros na Boca — Samanta Schweblin

Samanta Schweblin, de 43 anos, é uma grande escritora argentina contemporânea. Com contos e romances que têm como limite o fantástico, a autora nega que escreva nesse gênero. Explica que suas histórias são passíveis de acontecer, como o conto que dá nome ao livro: “Pássaros na Boca”. Nele, uma menina começa a comer pássaros vivos, gerando incômodo e resignação em seus pais, por não compreenderem seu comportamento e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer com a situação. Um trecho do diálogo entre pai e filha: “— Comés pájaros, Sara — dije. — Si, papá. Se mordió los lábios, avergonzada, y dijo: — Vos también. — Comés pájaros vivos, Sara. — Si, papá.”

Samanta Schweblin

Uma interpretação possível seria como os pais contemporâneos se assustam com seus filhos adolescentes e se sentem incapazes de lidar com suas questões. Samanta tem uma habilidade impressionante ao transitar por questões familiares que nos parecem infamiliares e que geram profundos incômodos.  A edição comentada é “Pájaros en la Boca — e Otros Cuentos” (Random House, 186 páginas). O livro saiu no Brasil com o título de “Pássaros na Boca” (Benvirá, 224 páginas, tradução de Joca Reiners Terron) — encontrável em sebos, mas por preços impraticáveis (275 reais).

Candice Marques de Lima, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), colaborou na elaboração da lista com cinco textos: sobre as argentinas Mariana Enriquez e Samanta Schweblin, o russo Nikolai Leskov, a francesa Virginie Despentes e a brasileira Michele Roman Faria.