O golpe civil-militar completa 60 anos no dia 31 de março de 2024. Pouco mais de meio século. Não há o que comemorar. Ou melhor, em 2025, aí, sim, se terá o que comemorar: os 40 anos do fim do regime discricionário.

Se não há o que comemorar, ao menos vale a pena relatar histórias sobre o período. Nesta semana, o Jornal Opção conta a história do sequestro de um avião no Uruguai, em 1º de janeiro de 1970, que foi levado para Cuba.

Dois goianos participaram do sequestro — James Allen Luz, o comandante da ação, e Athos Magno Costa e Silva.

James Allen Luz morreu em 1973, em Porto Alegre. Tarzan de Castro, no livro “Vida, Lutas e Sonhos” (Kelps, 357 páginas), suas memórias, conta, na página 229, que o guerrilheiro foi “assassinado pela ditadura no caminho entre Porto Alegre e São Paulo”.

Outros autores sugerem que pode ter morrido num acidente automobilístico, sem interferência de policiais e militares. O Relatório da Comissão Nacional da Verdade registra que “há responsabilidade do Estado Brasileiro na ocultação do cadáver de James Allen da Luz”.

Militares e policiais haviam “jurado de morte” aqueles que participaram do assassinato do delegado Otávio Gonçalves Moreira, no Rio de Janeiro. Integrante da Operação Bandeirante (Oban) e um dos fundadores do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), em São Paulo, Otavinho era apadrinhado pelo delegado Sérgio Fleury e pelo major Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontados pela historiografia do período como torturadores contumazes. James Allen havia participado do atentado contra Otavinho e, por isso, figurava na lista mortal da ditadura.

Athos Magno: o goiano morou na Alemanha Ocidental, fez mestrado e doutorado e se tornou professor da PUC-Goiás | Foto: Reprodução

Athos Magno deu aulas na PUC-Goiás e está vivo. Depois de morar na Alemanha Ocidental (a capitalista. Ele disse ao Jornal Opção na segunda-feira, 4, que não conheceu a Alemanha Oriental), voltou ao Brasil e se tornou um intelectual gabaritado, tendo feito mestrado e doutorado. Militou no PT e chegou a ser deputado estadual.

Em 1º de janeiro de 1970 — há 54 anos —, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) decidiu sequestrar um avião, no aeroporto de Carrasco, em Montevidéu.

Marília Guimaraes Freire, mulher de Fausto Machado Freire — estava preso por ter cometido um assalto a banco, no Brasil —, entrou no avião acompanhada de dois filhos pequenos e com seis revólveres escondidos numa cinta elástica.

A VPR decidira sequestrar o avião Caravelle, da Cruzeiro do Sul, que iria de Montevidéu para o Rio de Janeiro. O plano, que havia sido concebido por Cláudio Galeno Linhares, ex-marido de Dilma Rousseff, contou com a participação de Isolde Sommer, Athos Magno, Nestor Herédia e James Allen.

Marília Guimarães Freire e Dilma Rousseff: aliadas e amigas | Fotos: Reproduções

Comandante do sequestro, James Allen tinha ligação com os Tupamaros, guerrilheiros uruguaios. Ele havia morado quatro anos no Uruguai.

No livro “1970 — Enquanto o Brasil Conquistava o Tri” (Maquinária Editora, 255 páginas), o jornalista Roberto Sander diz que “a ideia” da VPR “era levar o avião até Cuba, onde Marília e as crianças estariam seguras, e pressionar o governo brasileiro a informar o paradeiro do marido dela, Fausto Machado Freire, e de Marco Antonio Meyer, outro companheiro preso no assalto” para arrecadar fundos para manter a guerrilha.

No avião, Marília Freire foi ao banheiro e, em seguida, entregou os revólveres aos guerrilheiros. Dos 26 passageiros 12 eram brasileiros. Os outros eram argentinos, uruguaios, romenos (dois) e um norte-americano.

Logo após a decolagem, o chefe dos comissários avisou que o destino do voo 114 era o Rio de Janeiro, “com escalas em Porto Alegre e São Paulo”.

Isolde Sommer: a guerrilheira levou o método Paulo Freire para Moçambique | Foto: Reprodução

James Allen levantou-se, armado com um revólver Smith & Wesson, e alertou que o avião estava sendo sequestrado. Avisou ao comandante Mário Amaral, ao copiloto Silvio de Carvalho e ao segundo oficial Hélio Borges que o avião deveria ser levado para Cuba.

Mário Amaral disse que o Caravelle tinha pouca autonomia e o combustível só dava para duas horas de voo. Por isso era preciso fazer escala, para abastecimento, em Porto Alegre.

James Allen se recusou a fazer escala no Brasil, pois o avião poderia ser invadido. Mesmo insatisfeito, o governo argentino decidiu receber o avião e abastecê-lo.

Roberto Sander assinala que, “com o sequestro já divulgado e a exigência de reconhecimento por parte do governo brasileiro do destino dos dois guerrilheiros presos, o voo seguiu para a cidade chilena de Antofagasta, onde um novo reabastecimento se deu”. O Chile era governado pelo socialista Salvador Allende.

Em Lima, no Peru, no aeroporto Jorge Chávez, a tripulação do Caravelle notificou que uma bateria do avião estava com defeito. A aeronave teve de ficar um dia na capital peruana. Soldados chegaram a cercar o avião. Mas, blefando, James Allen disse que os guerrilheiros carregavam explosivos.

No dia 3 de janeiro, uma nova bateria chegou do Chile. Jornais de vários países noticiaram a história do sequestro, o que deixava a ditadura brasileira em maus-lençóis, com a imagem negativa de que torturava e, até, matava presos políticos. A guerrilheira Isolde Sommer, “pela beleza deslumbrante”, chamava a atenção dos leitores.

No Panamá, militares dos Estados Unidos passaram a vigiar o Caravelle. Hélio Borges desceu do avião para pagar o combustível e foi cercado por um homem que se apresentou como integrante da embaixada do Brasil. Ele exigiu que o segundo oficial desse ordens para esvaziar a aeronave.

Ao contar aos sequestradores sobre a determinação do brasileiro, ouviu: “Manda ele à merda”. Hélio Borges desceu do avião e foi recebido por um coronel do Exército do Brasil. “Preciso de sua ajuda. Tenho ordens de parar este avião aqui. Como vai ser?”

O oficial brasileiro deu-lhe uma pistola e exigiu que, quando voltasse ao avião, atirasse nos sequestradores. Hélio Borges não aceitou a arma. O militar sugeriu que ele levasse comida envenenada ou então que fosse colocado gás na tubulação de ar.

“Nem pensar, isso vai matar todo mundo”, disse Hélio Borges. O coronel ameaçou persegui-lo quando voltasse ao Brasil.

Marines americanos chegaram a apontar uma metralhadora com luneta e mira telescópica para a cabine do Caravelle. Os militares dos Estados Unidos também ofereceram uma arma ao comissário José Osmar da Silveira para atirar nos sequestradores. Ele não aceitou a incumbência, pois sabia “que aconteceria um banho de sangue”.

Nem americanos nem brasileiros conseguiram impedir a partida do avião. Em Cuba, os sequestradores foram recebidos de maneira efusiva pelos aliados de Fidel Castro, então um ícone internacional.

“Já havia chegado a Fidel Castro uma mensagem de Carlos Lamarca, um dos chefes da VPR, na qual pedia que Marília fosse bem acolhida”. Ela, por causa dos três dias de viagem e pelas pressões nos aeroportos, estava estressada.

O governo comunista hospedou os sequestradores, tratados como heróis, no Hotel Capri. Os reféns foram levados para o Havana Riviera.

Para liberar o Caravelle, o governo de Cuba, que precisava de divisas, exigiu pagamento, inflacionado, em dólares. O governo brasileiro, que não tinha relações diplomáticas com Cuba, teve de pedir dinheiro emprestado à embaixada da Suíça.

O Caravelle voltou ao Brasil no dia 7 de janeiro de 1970. Oficiais da Aeronáutica interrogaram todos os tripulantes do voo. José Omar da Silveira e Hélio Borges, perseguidos pela ditadura, foram demitidos. Nenhum deles conseguiu mais emprego na aviação.

O mentor do sequestro Cláudio Galeno morou em Cuba, no Chile — chegou a voltar ao Brasil, nos anos 1980 — e na Nicarágua. Isolde Sommer mudou-se para Moçambique, onde ajudou a implantar o método de Paulo Freire na alfabetização dos africanos. Reinaldo José de Melo, com a Lei da Anistia, retornou ao Brasil.

Marília Guimarães Freire morou dez anos em Cuba, onde estudou Medicina. Depois da Anistia, voltou ao Brasil. Sua empresa de informática se tornou uma potência financeira, de acordo com Roberto Sander. No livro “Habitando o Tempo — Clandestinidade, Sequestro e Exílio” (Liber Ars, 310 páginas), a empresária documenta sua história e a de seu país.