Artigo originalmente publicado em 4 de agosto de 2018

O jornalista Ivan Marsiglia entrevistou Yuval Noah Harari, de 42 anos, para a revista “Cultura”, das livrarias Cultura, Fnac e Estante Virtual. O PhD em História pela Universidade de Oxford e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém é autor dos best sellers transnacionais “Sapiens — Uma Breve História da Humanidade”, “Homo Deus — Uma Breve História do Amanhã” e “21 Lições para o Século 21”. Trata-se do intelectual da hora, uma das vozes mais ouvidas pela imprensa mundial.

No final da entrevista, o repórter fala da crise brasileira e a resposta de Yuval Harari é um balde de água no típico pessimismo verde-amarelo. A ideia de que “as coisas nunca foram tão ruins é uma ilusão. Apesar da crise, o Brasil está uma situação muito melhor do que há 50 ou 100 anos”. Há um recado adequado para os populistas de esquerda e de direita e para aqueles que acreditam neles: “Ao longo da história humana, aqueles que prometeram soluções mágicas e rápidas para os problemas acabaram causando mais violência e miséria — como nas revoluções russa e chinesa”.

(O scholar judeu não menciona Jair Bolsonaro, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias, Fernando Haddad, Ciro Gomes e Marina Silva, candidatos a presidente da República no Brasil, mas o que escreve é um alerta para os políticos e, sobretudo, para os eleitores. Na semana passada, na panificadora Della — na parte de cima, onde fica o restaurante —, no Setor Bueno, uma eleitora de Bolsonaro disse a um repórter do Jornal Opção: “Bolsonaro é meu candidato porque vai acabar com o problema da violência no primeiro dia de seu governo. Os bandidos vão ficar com medo de sua brabeza”. O repórter perguntou: “Por que você tem tanta certeza?” A resposta, transcrita literalmente: “Porque Bolsonaro defende os valores da família, não tolera bandidos e não rouba. O Brasil precisa dele”. A convicção dos néscios? Não. A convicção de quem está cansado dos políticos brasileiros. Bolsonaro é a “mensagem” dos que estão indignados com tudo e todos e não creem em solução alguma. Mas, como é preciso apostar em alguém, escolheram o deputado e capitão do Exército como instrumento para rejeitar os demais candidatos, que são vistos, pelo menos no momento — aquele no qual o bom senso parece ter sido guardado no armário —, como tradicionais e, portanto, enroladores, falsos e endinheirados. O repórter insistiu com a eleitora: “E a Marina Silva?”. “É fraca, não tem energia. O País precisa do tutano do Bolsonaro”, insistiu a jovem. E o Ciro Gomes? A réplica: “Me disseram que bate em mulher”. Não bate, esclareceu o repórter. A eleitora redarguiu: “Não o conheço”. Ela admite que nunca prestou atenção em Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles e Álvaro Dias e, surpreendentemente, votou em Lula da Silva e Dilma Rousseff para presidente. “Gosto de Lula, mas não da Dilma. Na época do Lula, o dinheiro dava para comprar mais coisas”.)

Quanto ao Brasil, frisa Yuval Harari, o seu futuro “não depende apenas dele mesmo, mas do estabelecimento de uma melhor cooperação global entre os países. O governo brasileiro, por si só, não poderá protegê-lo contra as ameaças do aquecimento global e da ascensão da IA [inteligência artificial]. No entanto, como líder da América Latina e possivelmente a mais pacífica das grandes potências do mundo, o Brasil tem muito a contribuir para essa cooperação global. É um país que faz fronteira com outras dez nações, mas por mais de um século não invadiu nenhuma outra. Se os brasileiros puderem ensinar seu segredo a outras potências do mundo, será uma grande bênção para a humanidade”. Noutras palavras, o Brasil não é a “desgraça” que brasileiros pensam que é.

Para Yuval Harari, o desafio mais candente hoje “é a ascensão dos fundamentalismos e nacionalismos”. O doutor por Oxford afirma que há três grandes riscos para a humanidade: “A guerra nuclear, as mudanças climáticas e as tecnologias disruptivas. Todas questões globais por natureza, que só podem ser resolvidas por meio de cooperação internacional. Nenhum país sozinho poderá deter o aquecimento global ou evitar a guerra nuclear, assim como uma nação só não terá como definir regras seguras para a bioengenharia ou a inteligência artificial”. Não “será de grande ajuda se a União Europeia proibir a produção de robôs assassinos, mas Rússia e Israel autorizarem sua produção”. Portanto, afirma o mestre, “temos de criar uma rede global de segurança para proteger os humanos contra os choques econômicos que a introdução da inteligência artificial causará”.

“Sapiens — Uma Breve História da Humanidade” (vendeu 1 milhão de exemplares), “Homo Deus — Uma Breve História do Amanhã” e “21 Lições para o Século 21” são livros que revelam um historiador que, aos poucos, firma-se como pensador dos problemas do tempo contemporâneo

A alta tecnologia vai gerar novas riquezas em alguns países, mas, assinala Yuval Harari, “seus efeitos nefastos serão sentidos em países em desenvolvimento como Honduras e Bangladesh. Haverá mais empregos para engenheiros de software na Califórnia, mas menos empregos para operários da indústria têxtil ou motoristas de caminhão hondurenhos”. (O desemprego no Brasil pode resultar não necessariamente de uma crise econômica, de uma recessão, e sim da nova revolução industrial em curso no mundo. Caminhoneiros e outros setores podem estar atirando no que pensam que estão vendo — sem perceber que são “vítimas” de uma engrenagem que não é controlada por governo, empresários e trabalhadores patropis, e sim por um conjunto de empreendimentos globais.)

Países podem entrar em colapso em decorrência das disrupturas causadas pelo avanço da tecnologia. Em tese, as nações poderosas estão ganhando, porque há mais recursos financeiros locais, inclusive para a distribuição social. Mas é ilusório. As crises de determinados países poderão contribuir para aumentar a violência e ondas de imigração que desestabilizarão o mundo inteiro, inclusive os países mais ricos. Não há “soluções nacionais para os problemas globais”. A Itália e os Estados Unidos, para mencionar dois países, não conseguirão controlar as ondas de indivíduos que saem da Ásia, da África e da América Latina. A violência do Estado, com polícia e muros, não vai segurar as pessoas. Cuba tenta, há anos, impedir que habitantes do país escapem para os Estados Unidos, via Flórida, e jamais conseguiu bloqueá-los totalmente. Miami é tida como a maior cidade “cubana” encravada no território americano. Pessoas determinadas, motivadas pela fome de comida e de liberdade, são controladas até certo ponto, mas não inteiramente. Não há ideologia e Estado persecutórios que consigam controlar a determinação dos seres humanos.

Inquiridor de primeira linha, Ivan Marsiglia quer saber se é possível a constituição de um governo global é possível. Não é, constata Yuval Harari. A ideia “é duvidosa e irrealista”. O pesquisador sugere outra via: “Políticos nacionais e mesmo municipais deveriam dar mais peso às questões globais. (…) Precisamos transcender a nação e forjar lealdades globais”. Por isso os eleitores deveriam escolher candidatos com uma visão mais larga, que envolvesse questões locais e globais. Políticos provinciais, localistas, podem até pensar que estão “agradando” o “seu eleitorado”, mas não estarão resolvendo seus problemas reais.

A revista quer saber o significado da vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, o país mais rico do planeta, e a ascensão da extrema direita na Europa. Sem mencionar o nome do presidente americano, Yuval Harari sublinha que “a maioria das pessoas não quer mudanças radicais e teme o desconhecido. Elas querem estabilidade e uma identidade segura que dê sentido às suas vidas. Políticos de diversos países, incluindo os EUA, Inglaterra, Rússia e Índia, estão guinando para o nacionalismo tradicional ou religioso, prometendo um retorno a uma espécie de passado dourado”. Mas “não serão capazes de resolver os enormes problemas em que estamos mergulhados neste século 21. (…) A realidade no século 21 é tão assustadora que eu entendo por que algumas pessoas preferem olhar para o outro lado. Mas não temos escolha”.

Apesar dos cientistas que criticam a questão do aquecimento global, apontando que há um catastrofismo de matiz político — Guy Sorman sugeriu, num artigo, que a pauta ambiental, nas mãos da esquerda, se tornou mais um instrumento de combate ao capitalismo, o modo de produção “mais progressista” da história da humanidade —, o problema é mesmo grave. Contê-lo equivale a reduzir o crescimento econômico mundial. Isto é possível? Yuval Harari admite que não. O que fazer?

“Precisamos desenvolver novas tecnologias verdes que sustentem o crescimento econômico sem destruir o ecossistema. Um exemplo é a pecuária. A produção industrial de carne é uma das maiores causas de poluição do ar, da terra e das águas, além de responsável por uma grande porcentagem das emissões de gases de efeito estufa”, afirma o professor israelense. “Uma maneira ética e ecológica de resolver o problema é desenvolver a chamada ‘carne cultivada’ — produzir carne a partir da multiplicação de células em vez de criar animais inteiros para abatê-los. O primeiro hambúrguer cultivado surgiu em 2014 e custou 300 mil dólares. Foi só um primeiro experimento: atualmente o preço já caiu para 11 dólares e, com mais pesquisas e produção em escala industrial, a carne cultivada pode ser mais barata que a atual.”

A pecuária é vista como “o maior crime da história”, assinala Yuval Harari. “Bilhões de animais domesticados, como vacas e galinhas, são tratados pela indústria de carne, laticínios e ovos como máquinas, não como criaturas vivas capazes de sentir dor e angústia. E a ciência nos mostra que vacas e galinhas vivenciam um mundo complexo de emoções e sensações. Elas são capazes de sentir dor, medo e ansiedade, além de alegria, tranquilidade e amor. Ainda assim, os humanos ignoram completamente o seu sofrimento.” Mais: “São necessários cerca de 15 mil litros de água doce para produzir um quilo de carne, em comparação com os 287 litros necessários para produzir um quilo de batatas”.

Na sexta-feira, 27 de julho, o jornal “Valor Econômico” publicou uma entrevista de Henry Kissinger, concedida ao jornalista Edward Luce, do “Financial Times”. O repórter convidou o “consigliere” da diplomacia dos Estados Unidos para um almoço e, perceptivo, fez o diabo para extrair uma declaração do notável intelectual — e, sim, político que nunca precisou de mandato — sobre o governo do presidente do EUA, Donald Trump. Kissinger dribla-o de maneira formidável e o jornalista admite a habilidade de Messi de seu “oponente”. “Kissinger vê um mundo no qual tanto a China quanto a Rússia contestam a ordem mundial americana, muitas vezes de forma coordenada”, sintetiza o “FT”. Inquirido sobre o presidente russo, sai com uma tirada quase de crítico literário: “Não acho que Putin seja um personagem como Hitler. Ele é saído de Dostoiévski”. Infelizmente, o repórter não o inquire a respeito de qual personagem literário do escritor russo. Vladimir Putin é, digamos, uma cópia. Teria saído de “Os Demônios” (notável livro sobre o mundo dos terroristas), de “Crime e Castigo” ou de “Os Irmãos Karamázov”?

Recado indireto de Yuval Harari para Geraldo Alckmin (PSDB), Jair Bolsonaro (PSL), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede), Álvaro Dias (Podemos), Henrique Meirelles (MDB) e Fernando Haddad (PT): “Ao longo da história humana, aqueles que prometeram soluções mágicas e rápidas para os problemas acabaram causando mais violência e miséria”

Aos 95 anos, de uma lucidez extraordinária, Kissinger conta que uma das suas principais preocupações é a inteligência artificial. Ele sugere que se crie, com urgência, uma comissão presidencial dos Estados Unidos para examinar a questão. “Se não dermos início logo a esses esforços, em breve vamos descobrir que começamos demasiado tarde.” Mas a mão do mercado não deve ser livre?, perguntaria alguém sincronizado com as ideias liberais. Não é o que pensa o “jovem ancião”. O mercado, afinal, zela por alguns. O Estado zela ou devia zelar por todos.

Sobre a inteligência artificial, Yuval Harari não é tão pessimista quanto Kissinger. “No século 21, a inteligência artificial e a biotecnologia vão mudar o mundo, mas não precisamos ser fatalistas. Como usar a tecnologia sabiamente é a questão mais importante que a humanidade enfrenta hoje — mais importante que a crise econômica, as guerras no Oriente Médio ou a crise de refugiados na Europa. O futuro não só da humanidade, mas provavelmente da própria vida na Terra, depende de como escolheremos usar a inteligência artificial e a biotecnologia”.

Muito bem editada pelos jornalistas Laura Greenhalgh e Ivan Marsiglia, a revista “Cultura” é distribuída gratuitamente na rede de livrarias Cultura e Fnac. Vale a pena ler a entrevista inteira. Trata-se, é necessário sublinhar, de uma entrevista exclusiva. A imprensa brasileira dormiu no ponto. O número com o material sobre Yuval Harari contém bons textos de Sérgio Augusto, Joaquim Ferreira dos Santos e André Forastieri.