Páginas soltas no inventário do tempo: História do livro e biblioteca em Goiás
09 setembro 2022 às 19h04
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Há uma indelével mensagem em cada página voltada. Há sussurros inaudíveis que o tempo não pode apagar. No silêncio das estantes palpita a vida no acúmulo de tudo que o homem construiu por sua inteligência. Uma biblioteca é um mundo, um universo e se traduz na força da verdade e na doçura do verso, nas letras grafadas que nasceram da perquirição do espírito. Do embate e do questionamento. Do anseio e da dúvida. Do amor por aquilo que se coloca acima do imediatismo da vida…
Páginas soltas, esperanças desfolhadas. No limbo de cada livro, agrupado em cada fileira das estantes, há um brilho constante de vida que pulsa por vibrações, por sonhos e devaneios que o livro enseja. Cada letra no casamento dos sentidos, vem eivada pelo sentimento bom da emotividade.
Há flores que saltam dos livros com suas essências transcendentais. Perfumes antigos vindos de onde? Jasmineiros em flor, de noites orvalhadas se derramando nos antigos muros. Nascem rosas entre as estantes e vicejam lírios de afetividade em encontros de infinita poesia. Sons de violinos vibram em cada página voltada, trazendo a música inebriante que acorda crianças e adormece os adultos, que faz nascer crianças em adultos que jaziam adormecidas, esquecidas na luta insana da sobrevivência.
Acordem todos para essa quase tardia canção de acalanto. Há encanto na poética das folhas e na simetria das letras. Doce segredo que, às vezes, nos traz o pranto em dia de dorida saudade, em que nossos olhos se espicham na busca do impossível. Há aconchego na descoberta de doces mensagens de incentivo. Há mel na doçura dos versos emocionados e dor na alquimia de sentimentos contraditórios. Há tudo isso no livro, o nosso amigo seguro quando a noite se alonga na solidão das horas mortas e no vazio que nos cerca em certos estágios dessa lida…
Doce amigo. Suave amigo. Companheiro silencioso que nos acompanha por toda a vida. Lenitivo e arrimo nas dificuldades, no acúmulo do conhecimento que se propaga no pensamento. Luz na escuridão da ignorância. Tanta importância tem você, amigo. Na sua humildade, na sua aparente solidão e abandono, você esconde um mundo bem profundo de segredos e magias nas quimeras de todos os tempos.
Seara de luz. Só mesmo você, amigo livro, me conduz com segurança em meio aos meus tropeços. Queria louvá-lo com doces e infindas palavras para ilustrar o seu legado tão pleno. Assim eu me calo, e, sereno, evoco a magia de todos os luares e as manhãs infinitas, da cor do diamante, para expressar a tua eternidade.
Você, livro querido, não tem idade. Vem dos tempos imemoriais em que, pelos impulsos sensoriais, o homem traduziu o sentimento na magnitude de todos os momentos. Você registrou todas as dores e sofrimentos e todas as grandes emoções que o tempo não pode jamais apagar. Refúgio de pensadores, estudiosos e poetas e daqueles que compreendem a grandeza em todas as ínfimas coisas.
Meu livro querido. Nem imaginas o quanto é querido. Você me abriu as portas do mundo, e, do profundo do meu ser, revelou poesia, no entrechoque da minha primeira fantasia. Livro que é pai e que é mãe. Primeira namorada esquiva e etérea. Amante impulsiva e dominadora. Vovó tão querida em histórias e sonhos. Livro que sou eu mesmo, um grande e pequeno livro a ser escrito a todo dia, com alma e poesia, mesmo que tudo isso se distancie desses dias dolorosos que vivemos.
Livro que é escola de aperfeiçoamento. Sofrimento também, no manejo com o conhecimento. Luta e labuta da aprendizagem. Buril que lapida nossa rigidez de pedra e faz jóia pura a ternura que brota do peito e êxtase de sonhos…
Meu livro goiano tão prenhe de lembranças. Retalhos de sentimentos em colchas multicores. Livro que é roça e roçado, engenho e arte da cana a jorrar garapas de incontidas alegrias. Livro que é olaria, brotando do chão vermelho o tijolo de segurança. Livro que é fogão de lenha alimentando adormecidas ternuras em panelas de ferro. Páginas que são pé de moleque e mané pelado da infância nunca perdida. Que é argola de Petas e broas de milho de nossa fome espiritual. Livro que se derrama em monjolos que trituram amarguras, fazendo a paçoca de desencontrados desejos.
Meu livro goiano é chão arado e roça de milho verdinha sob a chuva de março. É feijão que enrama no milho seco de nossa insegurança. É estaleiro de chuchu de nossas esperanças e pé de maxixe na roça de arroz, traduzida em cachos de ouro de nossas vitórias. Meu livro goiano é flor de quiabo de uma beleza sem fim no esquecimento e na humildade. É flor da lobeira no roxo de nossos desencantos. Meu livro é pé de pequi nas flores e nos frutos incomuns de nosso talento. Meu livro é chapadão, campina, grota e pé de serra salpicada de ipês floridos.
Tudo isso é meu livro goiano. É cada criança como uma página a ser escrita. Páginas doces que precisam de letras douradas. Páginas de sonhos de alvoradas matinais. Páginas de ternura de crepúsculos de fogo. Princípio e fim. Alfa e ômega. Meu livro goiano sou eu, assentado no rabo do fogão de lenha, lá na roça, tão distante de todos os lugares, naquela casa velha de telhas encardidas. No fundo do mato. Lamparina acesa. Mãe e eu. Universo em nós. Nós tão sós e ela me mostrando um mundo que ia além da pauta musical dos arames da cerca que cercava a velha fazenda.
Naquela noite tão goiana eu era um livro. Havia lírios no jardim e samambaias na boca da cisterna. Havia margaridas junto à porteira. Havia um jardim dentro de mim. Eu era um botão em flor. Mãe era uma roseira tão florida e uma grande cartilha. E depois a roseira espargiu perfumes em outros quintais e celebrou vida em outras searas. Mas, o livro ficou, escrito com saudades infindas, o meu livro que vou abrindo agora diante dos cabelos dourados de minhas filhas em outros jardins. Virão outros livros, outras páginas em letras e emoções.
Meu livro goiano. Seu livro goiano. Universo em verso. Ternura e alegria. Que na vida de cada homem haja um livro, que é, senão, uma janela aberta por onde entra Deus. Que em todo livro-homem haja paz.
De 1727 a 1830 as preocupações de ordem cultural e intelectual foram mínimas, em vista da vastidão dos cerrados e chapadões e da distância dos centros adiantados como São Paulo e Rio de Janeiro.
Gênese do livro em terras goianas
Qual teria sido o primeiro livro que cruzou o Paranaíba, nos longes idos do século XVIII?
Primeiro relato datado de 1771 no diário do Barão de Mossâmedes, José de Almeida de Vasconcelos Soveral e Carvalho. Nas anotações do governador, aparecem indícios de “homens doutos” que liam em latim e possuíam alguma instrução, daí alguns livros particulares.
Em 1774 começou a ser cobrado em Goiás o chamado “subsidio Literário”, criado via Lei em 1772.
1778 chegam a Goiás os primeiros professores para vila Boa, Meia Ponte e Pilar.
Em 1817, Dr. João Emanuel Pohl escreveu o diário Viagem aointerior do Brasil, relatando sobre alguns homens cultos na província.
Johann Emanuel Pohl também descreveu sobre os homens cultos na Província de Goiás, ressaltando sobre a indolência de alguns.
Em Noticia Geral da Capitania de Goiás do ano de 1783, aparece a descrição de Vila Boa e a presença da “Biblioteca do Governador Luis da Cunha Menezes” esta foi a primeira grande Biblioteca oficial, onde documentos e livros da Capitania de Goiás eram conservados,
Há os relatos de Auguste de Saint – Hilaire, naturalista francês que visitou o Brasil entre 1816 e 1822,sobre o modo de vida goiana, os hábitos, costumes, modismos e destaca, também, a indolência do povo.
Nesse tempo os pais não colocavam filhos em escolas porque o tempo ali gasto subtrairia o do trabalho na lavoura. Filho, em geral, era mão-de-obra barata.
A situação de atraso e analfabetismo ainda perdurou por longas décadas e mesmo nos primeiros decênios do século XX podiam ser verificados em Goiás, situações de completo desconhecimento de livros e letras,
Em Meia Ponte nasce a primeira Biblioteca de Goiás.
No histórico dia 03 de maio de 1830, em Meia Ponte, Província de Goyaz foi fundada pelo Comendador Joaquim Alves de Oliveira (1770 – 1851), a primeira biblioteca da Província.
Mas, a sociedade reinante ainda era adversa ao florescer do conhecimento e principalmente a juventude não valorizava tais empreendimentos,
Os próprios fatos que envolvem o cenário social de Meia Ponte eram contrários ao florescimento do saber. No mais, a esposa do Comendador Oliveira foi assassinada em 04 de maio de 1833 e em 1836 o desditoso viúvo vende sua tipografia ao governo da Província para a impressão do Correio Oficial. Era o fim de uma era.
A Biblioteca do Lyceu de Goyaz
O “Lyceo Goyano”, depois Lyceu de Goyaz e hoje Lyceu de Goiânia foi criado pela Lei nº 9 de 20 de junho de 1846 e instalado em 23 de fevereiro de 1847.
Este funcionou por algum tempo na Escola de Aprendizes e Artífices, na Casa da Thesouraria Provincial e, por testamento do Dr. João Gomes Machado Corumbá, datado de 05 de dezembro de 1844, na Rua da Pedra, ali funcionando até 27 de novembro de 1937 quando foi transferido para Goiânia.
Foi no Lyceu instalada a primeira biblioteca Escolar ainda na década de 1850, por intermédio de Emydyo Joaquim Marques, Dr. Vicente Moretty Foggia e que funciona até os dias atuais, com mais de 150 anos em terras goianas.
Era uma biblioteca com obras raras e que atendia aos anseios dos estudantes daquelas distantes eras
O Gabinete Literário Goiano
Em 21 de abril de 1864, o cidadão Raimundo Sardinha da Costa juntamente com outros ilustres vilaboenses, fundou o “Gabinete Literário Goiano”, coroação dos esforços de gerações anteriores.
Segundo as atas da instituição, a primeira compra de livros constou com uma bíblia, uma história do Brasil, quatro dicionários, uma gramática filosófica da Língua Portuguesa.
A compra se traduzia numa verdadeira epopéia, já que os livros saiam da livraria Garnier no Rio de Janeiro e em São Paulo e vinham a Goiás, conduzidos em lombos de burros, em meses de viagens, acontecendo extravios de carga em decorrência de “burros fujões”, chuvas prolongadas e pontes desaparecidas.
Uma grande crise atacou o gabinete entre 1868 e 1871, ficando fechado por falta de recursos em três anos. Depois reabriu em sede nova, com novas estantes e livros e novos sócios.
A partir de 1900 nota-se a presença feminina às sessões. Chegou mesmo a construir um sobradinho ao lado do hoje Museu das Bandeiras que acolheu a Faculdade de Farmácia e Odontologia de Goiás nos anos de 1920 e que desabou após a mudança da Capital. O gabinete nunca se instalou ali.
Em 1921, o Gabinete se instalou no Prédio onde hoje se encontra e onde deixou de ser bibliotecária a Mestra Silvina Hermelinda Xavier e passa a atuar a professora Angélica Pereira.
Houve um lapso entre 1925 e 1926.
A renovação só acontece em 1929 com a diretoria encabeçada por Consuelo Caiado, auxiliada por Anita Fleury Perillo, Noemi Lisboa de Castro, Maria Carlota Guedes de Amorim, Genezy de Castro e Silva e Argentina Remígio Monteiro.
No valor da mulher goiana, o Gabinete conheceu dias de glória com palestras, debates, conferências, marcando o estertor da República Velha, do Regime Caiadista e do status de capital da Cidade de Goiás.
O Gabinete chegou a ter um jornal próprio intitulado Folha Goyana que foi dirigido por Genezy de Castro e Silva. Nesse período também o gabinete alcançou o número expressivo de mais de quatro mil obras,sendo bibliotecária Genoveva Santana da Veiga Jardim.
A partir de 1932, o Gabinete Literário Goiano entra em decadência com a mudança da Capital e, em ruínas, permanece por quase três décadas.
Só voltou a funcionar graças ao desprendimento de Regina Lacerda, Elder Camargo de Passos e João Nicolau, mas, novamente, cai na inércia.
Só em 1978 ganha vida novamente graças ao empenho de Elder Camargo, Genesco Bretas (que catalogou e selecionou os livros), Arthur Costa Ferreira e muitos outros que, até hoje, dão vida à velha biblioteca vilaboense.
A Primeira biblioteca de Goiânia
A primeira biblioteca de Goiânia foi idealizada ainda nos primeiros dias da nova capital.
Um grupo de moças das famílias tradicionais que haviam se mudado em grande maioria da Cidade de Goiás e que sentiam falta do movimento intelectual do passado decidiram promover uma campanha de arrecadação de livros e divulgação dos pedidos.
A liderança do grupo estava com Maria do Rosário Fleury (Rosarita), Maria das Graças Fleury Pires de Campos (Dadá), Virgínia e Angélica Vieira (Tuniche) e Maria Félix de Souza.
Essas moças idealizaram o “Baile do livro” em 08 de agosto de 1936, nos salões do Fórum de Goiânia, cujo ingresso, para os homens, seria um exemplar para formação do acervo.
Segundo o Jornal Goiânia, de Wilson Pieruncetti nesse baile foram arrecadados 78 livros, embrião então da primeira biblioteca da cidade.
Esse baile teve a presença do então Interventor Federal Pedro Ludovico Teixeira que assumiu a presidência da mesa diretora dos trabalhos na parte oficial, juntamente com Venerando de Freitas, então Prefeito Municipal e Maria das Graças Fleury Pires de Campos, representando as idealizadoras. A abertura foi feita por Joaquim Câmara Filho do Departamento de Propaganda e depois Dr. Albatênio Caiado de Godoi em nome da Faculdade de Direito.
Hoje, Goiânia é uma cidade de muitas bibliotecas, destacando-se a central “Biblioteca Pio Vargas” que já se chamou “Maximiano da Mata Teixeira, no Centro Cultural Marietta Telles Machado na Praça Cívica, Biblioteca da Praça Universitária, Biblioteca Cora Coralina na Praça Joaquim Lúcio em Campinas, assim como as bibliotecas das universidades e faculdades espalhadas, dos grandes colégios e das instituições culturais que existem para atendimento aos amantes da leitura na capital goiana.
A primeira biblioteca infantil de Goiânia foi construída por Julieta Fleury (1908-2002) em 1938 no Grupo Escolar Modelo (hoje Escola Estadual José Carlos de Almeida) e apresentava grande número de obras dedicadas às crianças em sessões de leituras e apresentações de livros.
Grandes nomes e grandes bibliotecas
Desde o pioneiro Joaquim Alves de Oliveira com sua biblioteca em Pirenópolis outros foram surgindo pela demonstração de cultura.
Dr. Sebastião Fleury Curado (1864-1944), escritor e político dos últimos decênios do século XIX foi um desses.
Nas cercanias da Cidade de Goiás, teve a maior biblioteca da cidade em sua chácara Baumann, ponto de encontro da intelectualidade vilaboense em retretas e saraus coordenados por sua esposa Augusta de Faro Fleury Curado.
Também, outros grandes intelectuais goianos foram donos de invejáveis bibliotecas como Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (1875 – 1942); Honestino Guimarães (1876 – 1931), Benjamim da Luz Vieira (1891 – 1947), Egerinêu Teixeira (1901 – 1938), João Teixeira Álvares, Dr. José Netto de Campos carneiro, Henrique Silva, este último, editor da famosa revista InformaçãoGoyana no Rio de Janeiro..
Amália Hermano Teixeira ao lado de seu esposo Maximiano da Mata Teixeira representou o amor à arte e à literatura, num rico acervo na biblioteca que construiu ao longo da vida e que ocupava grande parte de seu florido quintal na Rua 24 no centro de Goiânia.
Parte desse acervo está no Instituto Histórico e Geográfico de Goiás e também conosco, numa doação generosa do Dr. José Hermano Sobrinho por termos trabalhado por muito tempo na elaboração do livro História de Goiás que Amália Hermano deixou inédito. A convivência com Amália Hermano foi decisiva para a nossa formação intelectual e constitui uma indelével lembrança de uma fraterna amizade até o fim.
Outros nomes também fizeram parte de colecionadores de livros e documentos em bibliotecas admiráveis como Nelly Alves de Almeida, Rosarita Fleury (cujo acervo está na Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e Academia Trindadense de Letras), Leo Lynce, AlcideJubé, Benedicto Silva, sendo que este último a sua família doou o acervo para a cidade de Orizona, além de Genesco Bretas, grande pesquisador que deixou obras de fôlego como História da Instrução Pública em Goiás e Memórias de um botocudo.
Altamiro de Moura Pacheco foi um caso especial. Sua biblioteca foi a maior de Goiânia, ocupando a parte superior de seu belo sobrado na Avenida Araguaia, hoje pertencente à Academia Goiana de Letras.
Muitas dessas bibliotecas, hoje, são parte de acervo de entidades culturais como Academia Goiana de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Na atualidade, muitos escritores possuem bibliotecas de referência como BarianeOrtêncio, José Mendonça Telles (com um belo centro cultural na Rua 24 no Centro), Gilberto Mendonça Teles (cujo acervo foi doado à cidade de Bela Vista de Goiás), Lúcio Batista Arantes (acervo também doado à Academia Trindadense de Letras), Lena Castelo Branco Ferreira de Freitas, Colemar Natal e Silva.
E o livro, em terras de Goiás, na poesia de nossas ruas sinuosas de antigas cidades ou no traçado moderno de nossas novas metrópoles, tem um cheiro peculiar de esperanças e estas, enfim, num belo arremate, rima com a doçura infinita que há nas crianças.