Os dias dolorosos de separação que antecederam a transferência definitiva da capital da Cidade de Goiás para Goiânia
14 outubro 2024 às 18h40
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Goiás, a velha cidade de Bartolomeu Bueno, dos idos dos setecentos, foi uma pequena capital do Estado perdida na imensidão do Centro Oeste. Teve o seu apogeu em dias muito distantes e foi identificada por diferentes ciclos de evolução, marcados, inicialmente, pela febre do ouro.
Bernardo Élis Fleury de Campos Curado (1915-1997) alcunhou esse período de “febre”, “delírio” e “prostração”; já que fora curta a sua existência nas terras do Anhanguera. Nosso período aurífero foi apenas um “risco n’água” como se dizia naquele tempo.
Longe de todos os outros adiantados centros urbanos, a velha Vila Boa, até 1818, fora apenas um arremedo de civilização, “onde tiraram o ouro e deixaram as pedras”, como escrevera Cora Coralina. População nômade e cambiante, movida pela alcunhada febre bernardeana; perambulava em busca do precioso metal.
Em 1818 passou à condição de cidade, com o mesmo nome da Província, e herdou, depois, a designação pejorativa de “Goiás velha”, ou pior ainda “Goiás velho”, numa simbiose entre Estado e cidade, em decadência, velhice e irremediável desapontamento.
Era a cidade do outrora, do ontem, das glórias primitivas, desaparecidas…
Sem condições de progresso, por um determinismo geográfico e social, após o ciclo do ouro tão curto e efêmero, a cidade se estiolou.
E o ser humano passou a sofrer nessas plagas anhaguerinas, com a pobreza, abandono, miséria e exclusão social; minuciosamente relatadas pelos pesquisadores e cientistas que visitaram a Província no começo do século XIX.
Naquele mundo pequeno e sombrio de Vila Boa, viver era difícil, onde tudo se tirava da força dos braços e da luta pelo pão de cada dia.
Havia muita gente abandonada, muita miséria pelas pequenas ruas; outros que perambulavam também sem destino e sem condições de trabalho, chamados de “vadios” e “ladinos” nos relatórios daquela época, a “ditosa quadra” ilusoriamente decantada pelos poetas vialboenses.
Bela era a cidade, com sua linda paisagem fechada por morros verdejantes!
É dessa Cidade de Goiás, antiga, linda e romanesca, mas pobre e excludente, que se precisa pensar a concepção concreta de nossa história.
O século XVIII fora marcado pelo momento de busca incessante por riquezas minerais, depois o de permanência efêmera nas minas, sempre na busca de outros lugares para a exploração, tão escassa e difícil, notadamente em Santa Cruz de Goyaz e Anicuns, ermos da época.
O século seguinte, o XIX, fora marcado pelo ciclo agropecuário e, nele, a difícil tentativa de fixação no ambiente inóspito, pobre e sem recursos para melhoria. Mas, foi um século-ponte para mudanças definitivas na alma de Goiás.
Depois, foi a época em que o século XIX se despedia, ao dar entrada a outro, repleto de inovações, indagações, modificações profundas no bojo de toda a sociedade, com as preocupações voltadas para a perquirição intelectual e as modificações de um povo em ajustamento.
Muito lentamente, Vila Boa de Goyaz se apresentava com sua vivência intelectual e artística pequena, mas profunda e erudita.
Também, um tempo em que a velha capital, repleta de sonhos e encantos, contou, para a maior beleza de seus dias, com uma plêiade de jovens escritores, poetas e musicistas como Hugo de Carvalho Ramos, Cora Coralina, Joaquim Bonifácio de Siqueira, Joaquim Augusto de Sant’Anna, Luiz Ramos de Oliveira Couto, Constâncio Gomes e numerosos outros. Foi época de grande desenvolvimento intelectual com boas escolas e notáveis homens com saberes distintos.
Esses poetas, num romantismo tardio, evocavam as belezas das serranias e do vale do Rio Vermelho em elucubrações e devaneios, em belos versos e narrativas pungentes.
Também, no campo musical, conjuntos bem organizados de instrumentos de sopro e corda, orquestravam a pequena cidade, com seus saraus e retretas, serenatas e cantorias pelos morros, outeiros e velhas salas iluminadas pelas candeias vacilantes ou velas de sebo. Instrumentos muitos e valiosos eram manejados com alma e sentimento na cidade adormecida de luares.
Havia pianistas de grande valor, mulheres e homens de valioso saber, ávidos para ensinar. Sons de harmonia, pianos e outros instrumentos vindos do interior de residências, com saraus e tertúlias ao gosto dos jovens. Nas estreitas e tortuosas ruas vilaboenses, havia sonoridade e graça, ao que era, assim, uma cidade perdida entre as cordilheiras, mas com vida cultural específica.
A sociedade goiana contava com requintadas festas; muitas delas, com ricas bebidas ou nossa apreciada cachaça, assim como os sucos e vinhos. Gente mais rica ostentava o que tinha, numa busca por impor respeito e permanência no poder. As velhas cozinhas, de fumaça e picumã, produziam o que havia de melhor aos mais requintados paladares dos que chegavam de outras paragens.
Cozinhas pobres, nas achas de lenha dos morros, também aqueciam pequenas casas de um só lance, em becos sombrios, na palpitação da vida que não esmorecia no desejo de alimentar gerações, mesmo com a cambuquira, o refogado de beldroega, as pimentas de cheiro, maxixes, chuchus e jilós bem temperados que enganavam os estômagos dos pobres trabalhadores, homens e mulheres da velha capital.
A indumentária feminina, ainda no século XIX, debalde toda a pobreza, era requintada e escolhida. Para essas elegantes reuniões o uso dos sacrificantes espartilhos que adelgavam a silhueta feminina e das anquinhas que evidenciavam as protuberâncias dos quadris eram obrigatoriedade da alta classe. Não se podia usar roupa em que os seios balançassem ou chamassem a atenção. Daí a necessidade de roupa a apertar o busto e afinar a cintura. Tal fato se evidencia nas páginas do romance Elos da mesma corrente, de Rosarita Fleury.
Assim, finas luvas, bons perfumes, leques presos apropriados “trancelins de ouro completavam a toillete. Nos bailes do Palácio Conde dos Arcos havia festas aristocráticas para aquele tempo, tudo regado à boa comida e prosa política, além da música. Para os pobres restavam as grosseiras roupas de algodão cru, tecidas em tear nos fundos de quintal e a diferenciação que se notava nas ruas, no passeio público, completamente excludente.
Naquele tempo, pela roupa se conhecia a classe social a que a pessoa pertencia e os valores passavam muito por esse crivo de dolorosa divisão.
Mesmo na imprensa, denotava-se o fino gosto do vilaboense de posses. O jornal Tribuna Livre, de 23 de agosto de 1879 mostra interessante anúncio de venda de luvas: “Em casa de João Gonzaga de Siqueira; luvas de pelica branca para homens e senhoras, fresquinhas, vindas pelo último correio”. Era de bom tom que as moças usassem luvas delicadas com finos bordados, para protegerem mãos e braços da canícula dos dias ensolarados de Vila Boa, estando sempre brancas e “mimosas”.
As mais pobres estavam sempre com a pele queimada do sol em serviços pesados como lavar roupa no rio, torrar café, pilar arroz e milho, cozinhar no fogão de lenha, carregar água da fonte ou tirar dos poços e cisternas como peso do balde, além de muitos outros. Uma mulher pobre, de 40 anos, já era uma velha, com as marcas da idade e dos serviços pesados.
E, assim, não faltavam os bons perfumes e sabonetes, finas sedas, licores, vinhos e tâmaras importadas. Tal fato, claro, para os mais abastados. Para o povo, os pobres, comerciantes e escravos, sobravam os restos, comidas azedas, emboloradas, estragadas, ou mesmo o engrossado de fubá ou farinha de mandioca ou os escaldados com as sobras que a casa rica excluía.
Havia muita fartura e, também, muita miséria em contraste. A grande parte da população, analfabeta, sobrevivia em meio às pessoas que apreciavam “gastar um francês” na fala, para ficar requintado, ou mesmo a caturrice gramatical no português, ao abusarem dos apóstrofos como “doce d’ovos”, “encantos d’olhos”, “Goyaz d’antanho”; além de outros exemplos de exageros.
Assim, as tradicionais loires rose, blauche oubles, as damas apresentavam-se trajadas de vestidos nas cores estipuladas. Os cavalheiros, de fraque, ostentavam na lapela uma flor condizente com a da soise. Tudo era marca de requinte e bom gosto, num tempo muito distante.
Tal era comum o uso do francês, que havia as contradanças e as quadrilhas, marcadas corretamente nesse idioma, pela voz de circunspectos senhores e com música ao vivo. José Neto de Campos Carneiro, o Dr. Neto, gostava de marcar essas quadrilhas em correto francês, como destacou Ofélia Sócrates do Nascimento Monteiro em seu livro Reminiscências.
Também, naquelas brilhantes festas, ao soar a meia noite era oferecida lauta mesa de chás, geralmente servidas em belas louças importadas; o que em Goiás não era raro. Comidas com muitos biscoitos, doces e salgados, havia em profusão. Cada qual se esmerava em melhor oferecer.
No século XIX, a sociedade era fechada em rígidos preceitos éticos e morais e a ascensão social era muito difícil, praticamente impossível. Os forasteiros ou “paus rodados” não eram bem vindos e sobre eles caía pesada desconfiança.
Com o tempo e o alvorecer do século XX, muitos costumes foram abolidos e surgiram outros, talvez um pouco mais abertos, cercados pela argúcia dos mais velhos, “gente dominadora e sagaz”, como escrevera Cora Coralina.
Mas, tão maravilhosa fase vivida por aquela gente culta e polida entrava em declínio para dar entrada a outras gerações; cuja civilização estaria aquém daquela, pois ia pouco a pouco perdendo o ”refinamento” inicial, como pensava os mais adiantados em anos, naquele tempo.
Assim, as senhoras e senhoritas de Goiás para se apresentarem fora de casa, sentiam-se no dever de estarem bem trajadas e bem penteadas. Não se saía de casa sem estar “apresentável” aos olhos alheios. Mulher naquele tempo era uma vitrine.
Geralmente recatadas e comedidas, impunham-se pela sua presença digna de consideração e respeito e os que faltavam com esses preceitos eram literalmente massacrados. A mulher era digna de todos os louvores e atenções em casa ou na rua, embora, claro, tivesse exceções.
Gente bruta, ignorante, encapetada sempre houve!
Mas, naquelas priscas eras, podia-se encontrar, no comércio local, mercadorias importadas e de fino gosto, e adquiridas pela alta sociedade daquele tempo. Tudo do modelo francês, tido por melhor: Perfumes franceses, rendas francesas e outros artigos de luxo eram comprados em lojas especializadas como Alencastro Veiga, Cristiano de Moraes e algumas outras.
Era a moda francesa que ditava elegância no mundo, mesmo numa cidade mergulhada no mato, como Goiás.Havia, em certos tempos, requintados bailes inclusive no Palácio Conde dos Arcos, sede do governo do Estado. Os bailes ali eram esperados e comentados.
Naquele tempo, Goiás contava com cursos superiores: Escola de Direito, Odontologia, Farmácia e Escola Normal; cujas anuais festas de formaturas eram esperadas com ansiosa satisfação. Toda a velha cidade se preparava para esses momentos felizes.
Ricas eram as cerimônias religiosas, perdão, novenas, principalmente das igrejas de N. S. do Rosário e de N. S. da Boa Morte, hoje museu sacro; assim como procissões de N. S. das Dores, da Paixão de Corpus Christi e N. S. do Rosário eram anuais manifestações de fé, respeito e recolhimento que avivavam os sentimentos religiosos. Em todas havia maciça participação popular naqueles anos.
O velho Palácio Conde dos Arcos, no centro da cidade, contribuía para que a população de Goiás participasse direta ou indiretamente dos acontecimentos cívicos locais ou nacionais; muitas vezes oficialmente realizados na praça, no largo em frente ao Palácio. Era ele o ponto de convergência de tudo que ocorria na cidade.
E assim seguiu, de forma lenta e inexorável, até a Revolução de 1930, que foi um grito de liberdade, da quebra de opiniões, vindo abrir novos horizontes aos goianos e trazer alegrias e dissabores para a velha cidade, ressentida em sua velhice.
Era a sequência natural de uma oligarquia que caía para dar inicio a outra e que, também, só terminou com outra revolução, que se deu em 1964. Foram períodos felizes para uns e sombrios para outros. Eram as dores do tempo com suas marcas indistintas em cada era.
E essa abertura fez com que a Cidade de Goiás passasse a ser vista por outros olhares com dimensões diferentes no tempo. Grande foi a afluência de estranhos em Goiás que, de um dia para o outro, contava com outra população. Havia mais movimento nas então acanhadas ruas da cidade.
Eram novas autoridades que, com a Revolução, passaram a ocupar cargos; uns vindos com suas famílias assumir os funções governamentais que lhes foram oferecidas; outros, na esperança de melhores oportunidades na capital, outros mais aventureiros, cuja audácia, daria-lhes sorte em terras goianas. Todos chegavam na mesma cidade antiga, sem muitas condições de oferecer algo diferente.
Com esta nova etapa revolucionária, novo sistema social era introduzido na velha capital. E, assim, alguns velhos costumes eram abolidos pouco a pouco; mas sob severa vigilância e muita desconfiança. Era nova gente, novos hábitos e novo linguajar.
A casta vilaboense, nobre e altiva, censurava qualquer deslize. Muitos, embora pertencentes à elevada esfera social, tinham costumes que eram deselegantes para a sociedade conservadora de Goiás, impregnados de hábitos herdados de seus antepassados. Esses não custavam a cair no desagrado, eram expurgados dos eventos, fritados literalmente.
Muita gente nobre e elegante também veio fazer parte da nova sociedade. Muitas famílias distintas vieram para Goiás, trazidas pela politica revolucionária dominante de 1930, com novos ensinamentos importantes no contexto do tempo.
No campo da moda era o mais notório. Senhoras elegantes, traquejadas e prendadas, aumentavam e atualizavam os conhecimentos. Transmitiam o que havia de moderno no mundo social das artes plásticas, decorativas e culinárias e que as donas de casa da cidade assimilavam com alegria, para fugir da rotina secular das velhas casas da Cidade de Goiás.
Foi nesse tempo a moda das plantas em vasos dentro das casas, motivadas por jornais pirenopolinos, dos quais, foi incentivadora a modista Anna Chrissylla de Siqueira e Silva, nobre moça da terra dos pireneus.
Tudo isso era uma renovação que se fazia necessária, para um povo que se acomodava num ambiente sadio, porém sem renovações. Não abriam mão, porém, da boa culinária goiana, feita geralmente no fogão de lenha, com esta comprada ainda dos vendedores de lenha, com seus burrinhos cansados.
Porém, houve um agradável contato para a gente moça, cujo espirito absorvia proveitosamente os novos ensinamentos. As moças e rapazes do tempo se compraziam com esses novos costumes, que abriam perspectivas de um pouco mais de liberdade num ambiente tão severo.
Naquela ambiente oscilante, havia muitos cavalheiros respeitadores e moralistas. Outros, logo tidos como duvidosos e imorais, a sociedade goiana encarregava-se de ilhar. Esse estava perdido naquela cidade muito fechada em si mesma.
Companhias de circo, teatrais vieram a Goiás, como Tic-Tac, que levou a graciosa Eva Tudor para se apresentar na cidade. O exímio violinista cego Ladano Teixeira ofereceu ali um belo recital e Cornélio Pires, com os seus casos sertanejos e caipiras, fez muita gente rir.
O Palácio Conde dos Arcos era o ponto evidente, olhado com curiosa satisfação pelos abolicionistas, e com grande ódio dos que haviam perdido a batalha. Era o centro de todas as decisões e passou a ser um ponto constante de comentários, maledicências e coisas do gênero, num tempo de mordaças.
Demissões, destituições de cargos, decretos de nomeações, criação de novos empregos, e pedidos e mais pedidos de empregos. Tudo isso corria de roldão e mudava todo dia, com gente que subia e descia, em questão de horas apenas!
Em nada se podia confiar. Goyaz virara uma bomba em processo iminente de explosão.
Também, o jardim público em frente ao Palácio Conde dos Arcos, preferencialmente nas quintas e domingos, ficava repleto de gente de todas as idades, a palestrar e ouvir animadas retretas da banda de policia. Era o ponto de namorados e apaixonados no footing ou vai-vem, muito em voga.
Era seguramente aquele logradouro uma apreciável sala de espera ou de estar dos políticos do partido dominante. Assentados em confortáveis bancos de alvenaria confabulavam e faziam planos políticos em seus interesses e sonhos de ascensão.
O governo após a Revolução não era de todo bem visto na Cidade de Goiás, decorrido poucos anos de governo revolucionário, quando muita gente decaída trazia no peito o amargor da derrota.
O espirito do grande General José Vieira Couto de Magalhães baixara de cheio sobre o então jovem e irrequieto interventor de Goiás, Pedro Ludovico Teixeira. Era a ideia da mudança da capital para outro local, ideia adormecida, naquele tempo, há 89 anos.
Com sua persistência e obstinação, levava adiante a ideia, uma perigosa ideia a seu tempo, mas que, de fato, salvou Goiás.
Só que, nos anos de 1930, não seria em São José do Araguaia, como desejou o admirável brasileiro Couto de Magalhães, que nos anos de 1863 a 1864, um ano e cinco meses apenas, fora presidente de Goiás. Como naquele tempo do referido general, essa ideia veio como um golpe mortal para a maioria dos vilaboenses. Tudo era motivo e muita revolta, muito dissabor e muita maledicência.
Na verdade, o povo tinha razão. Todos estariam enormemente prejudicados, Goiás iria soçobrar como se deu, pois o goiano foi sempre pobre, o meio de vida em geral era emprego público.
Se tudo iria embora para a nova cidade, como viveria a gente da antiga Vila Boa? Essa era a perquirição em todos os corações.
Houve um entrechoque de emoções entre o povo e o governo da época. O sentimento de protesto foi manifestado por fortes atitudes que provocaram, com isso, o desejo de mudar drasticamente a cidade, como ocorreu.
Tudo entrou em ebulição desde o começo de 1937.
Uma precipitada transferência da capital de Goiás para Goiânia foi a manifestação máxima ao ânimo acirrado. Foi uma calamidade pública. Quem era obrigado a vir não tinha onde ficar, pois Campinas, velha e pequena cidade, não tinha condições de agasalhar as centenas e centenas de funcionários que ali chegavam.
Também, as repartições públicas e estabelecimentos de ensino arrancados e com seus arquivos colocados aos montes dentro de simples caminhões, que, abarrotados, vinham estrada afora perdendo partes pelo caminho. Na pressa generalizada do dia 23 de março de 1937, colocava a situação em grande sofrimento.
Sofrimento para quem ficava numa cidade sem nenhuma perspectiva, carregada de tristezas e perplexidade; tristeza para quem partia também ao incerto destino, numa nova urbs que se abria em meio à poeira do imenso cerrado.
Pela pressa da mudança naquele dia, muito do que deveria ficar na velha cidade foi arrancado, deixando-a sem as mínimas condições de sobrevivência, como por exemplo, as carteiras das escolas. No dia 24 de abril de 1937, os alunos que ficaram na cidade velha, não tinham onde assentar…
Assim, a criação de novas escolas, novos cursos superiores era a lógica para uma nova cidade que surgia, mas a velha terra bissecular, também precisava existir. Por conta de muito desafeto, muito desaforo, muita briga política, inocentes pagaram pelos pecadores, no dizer do ditado popular.
A velha Cidade de Goiás ficou órfã e nua, desguarnecida de muita coisa; e reunia pedaços para poder continuar a existir. Isso resultou em rompimentos políticos, atitudes estas que têm servido de maliciosos temas, conscientemente distorcidos.
Goiás não mais se recuperou por longo e longo tempo. Ali existiu um desânimo arrasador, que custou a passar; uma mágoa latente que persistia. Até os bustos de pedra sabão, que enfeitavam as colunas do galpão externo do Palácio, artístico trabalho de Cincinato da Mota Pedreira, foram trazidos e jogados em depósitos até que alguém os colocasse em museus ou muitos sumiram e foram quebrados.
Muito vandalismo persistiu pela cidade velha, com a destruição de muitas coisas que ficaram nas casas abandonadas, nos quintais sujos, no lixo que se acumulava também pelos becos e vielas.
O sentimento de mártir ficou por longas eras, na terra-mãe dos goianos, tão rica de belas tradições. Nem mesmo o mito de um sebastianismo que viesse salvar, existia. Era o fim de tudo num tempo de dissonâncias e negações.
Mesmo nas famílias, por muito tempo, houve discórdias entre os que saíram e os que ficaram; como se houvesse vencedores e vencidos numa batalha pela condição de vida, num mesmo espaço. Custou muito para Vila Boa de Goyaz, acordar em si mesma.
Até mesmo os tipos populares, os personagens de rua em seus bordões, falavam da tristeza da cidade esvaziada, como Chico triste, Mané pula pula, Margarida lixeira, Zé pequi, Benedita Cocá, Manuel copinho, Manezinho arroz doce, Peregrino cofre das almas, Sebastião burro preto, o Bode e tantos que perambulavam pelas velhas ruas calçadas de pedras, cantavam a desilusão da perda da sede administrativa.
Os que ficaram tentaram, de toda sorte, reconstruir. Josefina Pinheiro de Lemos Mendes, poeta e declamadora, ressaltou em versos o sentimento de pertencimento: “Cambaúba, Carmo e Lapa, foi um trinca que escapou e o Rio Vermelho, pois esse, ninguém levou!”.
Darcília de Amorim lutou pela reconstrução da catedral. Emília Perillo, a diretora do Grupo Escolar desguarnecido. Consuelo Caiado, a guardiã do patrimônio. Wadjow da Rocha Lima, com seu comércio, Eduardo Henrique de Souza Filho, o jurista e poeta dos “tempos de Goyaz” e tudo pouco a pouco, muito pouco mesmo, tentando se reerguer, com a falta de emprego e perspectivas, principalmente aos jovens.
A velha cidade ficou reduzida “às proporções de nosso próprio lirismo”, como escrevera a inesquecível Nice Monteiro Daher.
Com os valores mudados, também o sentimento de patrimônio, do turismo pouco a pouco instalado, precariamente, outros caminhos foram traçados ao longo de uma esteira pachorrenta do tempo.
E 87 anos são volvidos do cisma que separou o povo goiano. A grande e dolorosa cisão que rompeu os laços do tempo e deixou profundas marcas nos corações.
O dia 20 de março de 1937 amanhecera com chuva brava, chuvona goiana, que enchera o Rio Vermelho, com o cheiro tão gostoso das ebúrneas florzinhas do brejo, corolas enfeitadas de São José, dono das águas derramadas.
Na sombra do dia, de nuvens plúmbeas e aguaceiro a se derramar das biqueiras dos telhados a lavar as pedras das ruas, também lavava a alma inquieta dos vilaboenses que já sabiam do inexorável da mudança. Uma sensação de impotência deixava que a velha cidade ficasse plasmada em sua rotina.
O Largo, com seu jardim fechado, a lembrar as retretas e o footing dos namorados, estava coberto de mato; vassourinhas nasciam pelas ruas e pequenos serviços já eram interrompidos. Os mudancistas mais ferrenhos haviam deixado as casas, na tristeza das alcovas devassadas.
Mais dois dias de chuvas pesadas faziam o Rio Vermelho se derramar pelo cais, quando a notícia do dia 23 se espalhara no desespero das horas finais. Fora baixado o decreto que mudava definitivamente a capital. Muitos ficaram a rezar e pedir proteção e até o fracasso da mudança e dos parentes ingratos…
Os sinos dobraram a tristeza do fim, sob uma pesada chuva!
Caminhões deixaram lentamente, a cidade, pouco a pouco, a levarem os restos; os pedaços doloridos da cidade cansada, a alma da velha capital.
A primeira noite, marcada por chuva pesada, lavava as ruas vazias onde os caminhões passaram mais cedo, a tirarem as pessoas, as histórias, os laços. Nas alcovas tristes, os olhos insones dos que ficaram com a memória da cidade velha e desprezada, num incerto futuro de pobreza e acanhamento.
O Rio Vermelho chorou pela noite toda, debaixo das pontes velhas e contemplativas!
Os que ficaram, com pranto nos olhos, viveram os amargos dias do difícil recomeço. 87 anos se passaram e a esteira do tempo tudo nivelou, ao abrir caminhos para o renovar. Mas, ainda hoje, pelos brejos, a linda florzinha palustre de São José continua a derramar perfumes no tempo, na lembrança de velhos amores esquecidos…
Ah Vila Boa de Goyaz!
Ah, Goiânia!
Bento Fleury (Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado). Licenciado em Letras e Linguística pela UFG. Especialista em Letras e Literatura pela UFG. Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Mestre em Geografia pela UFG. Doutor em Geografia pela UFG. Professor e poeta. [email protected]