O legado da historiadora Maria Carmem Lisita
27 julho 2022 às 16h40
COMPARTILHAR
Lutadora, estudiosa, historiadora lúcida e pesquisadora consciente, viveu muitos anos mergulhada entre papeis antigos, em páginas de lembranças, que tornou-se, agora, um grande livro de recordações pungentes
Como uma grande árvore que derramava sombras e flores, assim foi Carmem Lisita. Uma árvore majestosa e sublime, cercada de paz e de bons sentimentos, destacando-se em meio à nudez da paisagem. Ela era um exemplo edificante de que a vida pode ser limpa e honesta, pura e singela, na doação de tantos sentimentos sublimes, hoje tão perecíveis.
Com a morte repentina de Carmem Lisita nem tivemos tempo de lhe dizer um adeus comovido; dizer o quanto ela foi especial e o quanto passou tão singela e despercebida entre nós; espargindo o perfume bom da emotividade e plantando flores espirituais ao longo do tempo, com o seu jeito altivo e nobre, mas cercado de simplicidade, como só os verdadeiros cristãos sabem ser. Uma grande mulher, uma mulher muito especial.
Era tão natural a sua presença entre nós que jamais imaginávamos que Deus a chamaria tão cedo à morada dos eleitos. Sua alegria tantas vezes contida, seu ar de mistério num olhar perscrutador, cheio de sabedoria e lucidez, formavam a sua personalidade ímpar e a posicionavam com o respeito que sempre fez por merecer em suas atitudes corretas e enobrecedoras.
Era mesmo uma árvore frondosa em cuja sombra tantos se abrigaram na busca do conforto. Uma árvore que se prendia ao solo goiano em longas raízes e em ternas essências que se revestiam de fortaleza e cooperação. Filha dedicada; cuidava com carinho e ternura de sua mãe já idosa; irmã sempre presente, auxiliava a todos os familiares, de forma prestativa; tia desvelada, tornando-se mãe de tantos, mesmo que de Deus não tenha recebido a graça da maternidade, mas, pelo coração agasalhou essências de mãe.
Carmem Lisita era batalhadora, era forte, destemida, aguerrida e tantas outras denominações para pessoas que não passaram a vida em vão ou presas aos laços de desânimo e do conformismo. Ao contrário, lutou contra todas as adversidades e fez-se por si mesma; fruto do próprio esforço, numa época de mulheres amordaçadas e que pouco a pouco foram se libertando pela ocupação intelectual numa sociedade fechada ao florescer feminino.
Lutadora, estudiosa, historiadora lúcida e pesquisadora consciente, viveu muitos anos mergulhada entre papeis antigos, em páginas de lembranças, que tornou-se, agora, um grande livro de recordações pungentes. Como não nos lembrarmos dela em seu fecundo esforço para conservação e manutenção do Arquivo Histórico Estadual de Goiás, onde foi diretora por tantos anos, sofrendo com o descaso tantas vezes relegado à memória goiana?
Pioneira no Arquivo Histórico Estadual de Goiás juntamente com Marilda de Godoy Carvalho e Mary Yazigi, Maria Carmem Lisita integrou desde os anos de 1970, como paleógrafa, no árduo trabalho de formação do arquivo em tantos documentos espalhados, abrigando a memória documental de nosso Estado, desde o tempo da Fundação Cultural de Goiás, presidida por Jacy Siqueira.
E não foi uma luta fácil. Nem sempre os governantes apreciam os órgãos culturais, principalmente aqueles que não dão ibope, não agregam multidões e não são fontes de futuros votos ou conchavos.
Assim, o Arquivo Histórico Estadual de Goiás, tão rico para os pesquisadores de todo o rincão goiano, passou entre privações e pobrezas ao longo de sua existência, sobrevivendo mesmo à custa do sacrifício e abnegação daqueles que amam a memória cultural registrada no papel, enternecendo o coração num tributo de amor e veneração ao passado e às nossas legítimas tradições.
Acompanhei tudo isso de perto e sou testemunha, desde os tempos de minha querida Marilda Godoy. Era mesmo uma luta gigantesca para manter o arquivo em condições de atendimento, dada à asfixia que sempre viveu e o esquecimento a que sempre foi relegado. Nenhum governo, na verdade, cuidou e valorizou o arquivo ou seus funcionários. Ele sempre foi visto como um depósito de papel velho sem valor, obscuro e fadado ao ostracismo.
Mas, para nós, pesquisadores (não sou historiador), quão valoroso sempre foi o Arquivo e quão nobres, os seus funcionários!
É preciso, porém, que nos lembremos, como exortava Marilda Godoy, que a vida das comunidades não se esgota na plenitude dos estágios sincrônicos de sua evolução de maneira isolada, mas sim, numa ligação entre todas as épocas. Carmem Lisita também foi, em seu exemplo estoico, uma batalhadora pela preservação do Arquivo, mesmo diante de tanto descaso e de tantas mudanças na AGEPEL ao longo de todos esses anos e de todos esses governos que por aí passaram.
Como Mário Quintana, eu diria: Eles passaram, nós passarinhos…
Juntamente com Marilda Godoy, Maria Carmem Lisita participou da edição das Revistas do Arquivo, que tantos documentos trouxeram a lume às novas gerações, assim como a existência da AMAGO (Associação dos amigos dos arquivos) com tantas lutas e sonhos. E de sonhos e esperanças de um mundo mais justo, calcado na verdadeira raiz histórica, viveu Carmem Lisita.
E, apesar de tudo, viveu muito bem, com muita dignidade, porque soube amar um ideal superior em nome de Deus. Com a mais absoluta honradez ela caminhou seus passos nas estradas da vida. Esteve livre da futilidade, foi uma mulher útil – a árvore benfazeja – que derramou sombras pela estrada de tantas pessoas, na minha estrada, inclusive.
Tantas e tantas felizes lembranças tenho de minha querida Maria Carmem Lisita. Lembranças agora tecidas com os dolorosos fios de muitas saudades. Mas são recordações tão presentes que iludem a morte. Lembranças jocosas como do curso que juntos fizemos, eu, ela e Dr. Antonio César Caldas Pinheiro, sobre turismo do SEBRAE e, durante as palestras, uma das convidadas dormiu no momentoda apresentação. Fui o primeiro a ver, tendo uma crise de riso violenta que a todos atingiu. Nunca ri tanto como nesse dia e contagiei os demais. Ríamos sem parar e tivemos que sair do auditório tal a situação. Não podíamos olhar uns aos outros sem que as gargalhadas explodissem incontidas. Que lembrança boa!
Depois no cotidiano das pesquisas no arquivo, desde 1989, quantos papeis! Quanto tempo! Tempo o bastante para perceber o discreto viver de Carmem Lisita, sempre de uma elegância sutil, velada, mas sóbria no vestir, bem cuidada, limpa e cheirosa; trabalhava com afinco transcrevendo documentos antigos, resguardando, restaurando, conservando, remendando jornais antigos, documentos, livros, revistas, recosturando a história de nosso povo. Que mulher sublime e necessária. Que falta imensa ela fará a Goiás!
Tombou a árvore em pleno vigor, mas chamada suavemente por Deus. Numa madrugada ainda estrelada, o Senhor a buscou entre muitas flores para que fosse perfumar outros jardins na essência sutil de sua grandeza. Ele viu o céu numa manhã goiana e com certeza encontrará os laços da história verdadeira do amor do Pai, na altura imensurável de seu infinito merecimento.
Na história dos arquivos goianos há um indelével espaço para Carmem Lisita e sua vida de lutas e sonhos.