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Há livros que são mais que registros: são monumentos. O recém-lançado “Hospital de Caridade São Pedro D’Alcântara: 1825–2025 — 200 anos de uma história humanitária” pertence a essa rara linhagem. Publicado pela Editora Kelps, com 270 páginas ilustradas e pesquisa meticulosa, a obra é fruto da dedicação de Ubirajara Galli, Jacira Rosa Pires e Narcisa Abreu Cordeiro — três nomes que se unem pela paixão à memória, à arte e à história goiana. O livro celebra o bicentenário de uma das instituições mais antigas e simbólicas de Goiás, fundada por Carta Imperial de Dom Pedro I, datada de 25 de janeiro de 1825, com a missão de acolher “os infelizes destituídos de meios que reclamam com justiça os socorros da sociedade”.

Logo no início, os autores recordam que o hospital nasceu “do centro do poder político, fortalecido pelo poder religioso”, em uma época em que o Brasil recém se firmava como nação independente. A narrativa remonta aos dias em que o presidente da província Caetano Maria Lopes Gama solicitou ao imperador autorização para erguer uma casa hospitalar caritativa na capital Vila Boa de Goiás, com apoio da elite local e bênção do primeiro bispo goiano, Dom Francisco Ferreira de Azevedo, o “Bispo Cego”. A carta pastoral de 1825, reproduzida no livro, é um documento de fé e de civismo: conclama o povo a doar esmolas para “uma obra de misericórdia e patriotismo”.

O livro destaca ainda a beleza histórica da Igreja do Carmo, erguida entre 1783 e 1800, vizinha do hospital e palco das comemorações do bicentenário em janeiro de 2025. A simbologia da proximidade entre o templo e o hospital resume o espírito da obra: caridade, religiosidade e compromisso com o humano. “O Hospital foi erguido ao lado da Igreja do Carmo”, escrevem os autores, “para que os enfermos pudessem receber não só os cuidados do corpo, mas também os sacramentos da alma”.

Com narrativa rica e delicada, o livro atravessa séculos de histórias médicas e sociais, dos tempos imperiais às lutas da modernidade. Em suas páginas, revivem figuras como o médico Fernando Passos Cupertino de Barros, herdeiro de uma linhagem de humanistas; e a médica Inan Benedicta da Silva Freitas, primeira mulher a clinicar na bicentenária instituição. Passam também as Irmãs Dominicanas, francesas e italianas, que entre o fim do século XIX e meados do XX dirigiram o hospital e o orfanato São José, em um tempo em que fé e enfermagem eram sinônimos de vocação e sacrifício.

Em seu núcleo, a obra apresenta o texto integral da Carta Imperial de 1825, publicada no Diário Fluminense, em que Dom Pedro I autoriza a fundação do hospital “como abrigo caridoso aos desvalidos da província”. O leitor acompanha ainda o relato da instalação oficial, em 15 de janeiro de 1826, no Palácio Conde dos Arcos, sob presidência de Caetano Maria Lopes Gama, com apoio de padres e cidadãos que subscreveram voluntariamente a obra. O regulamento original, transcrito com fidelidade, prescrevia até mesmo a criação de enfermarias separadas por gênero, casas para doentes mentais e uma capela interna — símbolo de que ciência e fé compartilhavam o mesmo teto.

Entre as preciosidades do livro, está a reprodução de relatórios administrativos do Correio Oficial de Goiás, como o de Emílio Francisco Póvoa, que presidiu a Junta Administrativa entre 1912 e 1918. Esses documentos, ao lado de registros da guerra do Paraguai e do combate à Covid-19, compõem uma linha contínua de devoção ao cuidado humano. O hospital resistiu ao império, à república, à ditadura, às epidemias — e manteve acesa a mesma chama da caridade que o fundou.

Ubirajara Galli, natural de Pires do Rio (GO), é uma das vozes mais respeitadas da cultura goiana. Autor de 51 livros de poesia, contos e historiografia, presidiu a Academia Goiana de Letras, a União Brasileira de Escritores – Seção Goiás, e o Instituto Goiano do Livro. Figura polifônica, Galli tem sido um incansável defensor da memória e da palavra escrita como forma de resistência cultural. Sua pena tem o vigor de quem compreende que preservar o passado é um ato de cidadania.

Narcisa Abreu Cordeiro, sobrinha-trineta do Brigadeiro Felipe Antônio Cardoso, traz em seu sangue o legado de quem participou da própria construção do país. Mulher de sensibilidade e rigor, é responsável por preservar, no Museu Palácio Conde dos Arcos, o busto em bronze do ilustre antepassado, símbolo da história da medicina e da independência em Goiás. Sua presença no livro reata os fios entre o saber científico e o sentimento patriótico que fundou o hospital.

Jacira Rosa Pires, arquiteta, urbanista e pesquisadora, é autora de obras fundamentais sobre a história urbana de Goiânia, como Goiânia – Cidade Pré-Moderna do Cerrado (1922–1938). Doutora pela Universitat Politècnica de Catalunya, em Barcelona, Jacira é também escultora e musicista. Sua escrita neste livro revela o olhar de quem vê o patrimônio não como ruína, mas como organismo vivo, testemunha da modernidade no coração do Cerrado.

Ao longo de duas centenas de anos, o Hospital de Caridade São Pedro D’Alcântara foi o espelho da própria história de Goiás: começou modesto, sustentado por loterias e doações, e se firmou como referência em atendimento humanitário. O livro não esconde as dificuldades, nem romantiza o passado. Mostra, com honestidade, as crises financeiras, as lutas por médicos e remédios, as epidemias que devastaram a província e a fé que manteve o hospital de pé. É uma crônica da persistência.

Durante a pandemia de Covid-19, a instituição mais uma vez provou sua grandeza moral. Nenhum médico morreu em serviço, e o índice de óbitos ficou abaixo da média nacional — um feito explicado, segundo o diretor clínico Dr. Pedro Luiz de Faria Silveira, pelo “cuidado integral e o vínculo de humanidade” entre profissionais e pacientes. Essa passagem, reproduzida no livro, dá ao leitor o sentido mais puro da palavra caridade: o amor em ação.

Mais que uma comemoração, este livro é uma oferenda. Ele devolve à Cidade de Goiás e ao Brasil a memória de uma casa que curou corpos e almas, atravessando os impérios do tempo com a força da compaixão. Ao final da leitura, percebe-se que os autores não apenas narram a história de um hospital, mas testemunham a história da própria civilização goiana — uma civilização construída não sobre o ouro, mas sobre a caridade.