Goiás não foi somente a terra de mocinhas românticas, casadoiras e cismarentas, à espera de um príncipe encantado e um castelo de contos de fadas

Na Cidade de Goiás, Ponte do Carmo por sobre o Rio Vermelho, local de labor das lavadeiras | Foto: Acervo de Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado

A luta pela subsistência, em meio à pobreza da maior parte da população levou as mulheres vilaboenses ao enfrentamento da vida, na busca do sustento de si mesmas e de familiares. Cabia-lhes, assim, além da labuta doméstica, o trabalho de retirar dos quintais e dos arredores da cidade tudo quanto pudesse gerar dinheiro honesto. 

As lavadeiras – presentes em todos os tempos – foram a mais autêntica  personificação do trabalho feminino. Na árdua luta pela sobrevivência, mulheres  enfrentavam a correnteza dos rios, as bicas d’água, as cisternas com suas carretilhas cantantes ou sarilhos chorões. 

Ao enfrentar volumosas peças de roupa, geralmente tecidas em casa – sem ao menos o uso de escovas de lavar, pois não as havia – utilizavam-se apenas do sabão, do sabugo de milho, das mãos e das unhas, e de muito esforço, lavando, quarando, fervendo, batendo e esfregando encardidos.

Não foram apenas as lavadeiras esporádicas, vivendo da lavagem de roupas de particulares, as que labutaram nas águas históricas dos rios goianos, em cidades onde “tiraram o ouro e deixaram as pedras”, conforme ressaltou Cora Coralina em seu livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. Houve, também, as lavadeiras oficiais, remuneradas por órgãos públicos.

Ambos recibos foram escritos pela mesma pessoa – a caligrafia é idêntica – sendo que, a despeito do intervalo de onze anos que medeia entre eles, o funcionário que efetuou o pagamento é um só, João Manoel dos Guimarães. A pretendida assinatura das lavadeiras Izabel Rodrigues e Senhorinha Martins de Mello exibe o mesmo talhe de letra, o que faz presumir que se trata de documento assinado “a rogo”, por serem elas analfabetas.  

O valor pago por um mês de serviço – 500 réis – permanece inalterado, entre 1874 e 1885; o que acena para a estagnação dominante na então Província de Goiás. Para efeito de comparação, lembre-se que, em 1886-1887, o salário anual de uma professora de primeiras letras era de 400$000 (quatrocentos mil réis) ou 33$333 (trinta e três mil trezentos e trinta e três réis) mensais; o mesmo ofício, quando exercido por um profissional do sexo masculino, era remunerado com 700$000 (setecentos mil réis) anuais, um acréscimo de 75%. Nesse mesmo ano, um pedreiro recebia 8000$000 (oitocentos mil réis) por ano e um vaqueiro, 360$00 (trezentos e sessenta mil réis) – um pouco menos do que uma professora. 

As humildes e obscuras lavadeiras, esquecidas no emaranhado da história, foram cantadas em versos de Cora Coralina em seu livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.

Recibos referentes ao serviço de lavagem de toalhas, realizado por Senhorinha Martins de Mello (1885) | Acervo de Bento Fleury

Esta mulher…
Tosca. Sentada. Alheada…
Descansando nos joelhos…
Olhar parado, vago,
Perdida no seu mundo
De trouxas e espuma de sabão
-é a lavadeira.

Mãos rudes, deformadas,
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas
Córneas.
Unheiros doloridos
Passaram, marcaram.
No anular, um círculo metálico,

Barato, memorial.
Seu olhar distante
Parado no tempo.
Á sua volta
– uma espumarada branca de sabão.

Inda o dia vem longe
Na casa de Deus Nosso Senhor,
O primeiro varal de roupa
Festeja o sol que vai subindo,
Vestindo o quaradouro
De cores multicores.

Recibos referentes ao serviço de lavagem de toalhas, realizado por Izabel Rodrigues (1874) | Acervo de Bento Fleury

Essa mulher
Tem quarentanos de lavadeira
Doze filhos
Crescidos e crescendo.

Viúva, naturalmente,
Tranquila, exata, corajosa.
Temente dos castigos do céu
Enrodilhada no seu mundo pobre.

Madrugadeira.

Salva a aurora.
Espera pelo sol.
Abre os portais do dia
Entre trouxas e barrelas.

Sonha alada.
Enquanto a filharada cresce
Trabalham suas mãos pesadas.

Seu mundo se resume
Na vasca e no gramado.
No arame e prendedores.
Na tina d’água
De noite – o ferro de engomar.

Lai lavando. Vai levando
Levantando doze filhos
Crescendo devagar,
Enrodilhada no seu mundo pobre,
Dentro de uma espumarada
Branca de sabão.

Às lavadeiras do Rio Vermelho
Da minha terra,
Faço deste pequeno poema
Meu altar de ofertas.

Até dias não muito distantes, outras atividades igualmente penosas eram exercidas pelas mulheres goianas, como a fabricação de azeite de mamona e a confecção de velas de sebo. 

Relativamente ao azeite ou óleo de mamona (ricinus comunis L.), o árduo trabalho começava com a colheita dos frutos que proliferavam livremente nos quintais, nos monturos de lixo, nos becos sombrios e nas “pontas de rua”. Colocados para secar  em uma esteira ou couro de boi, eram depois torrados num tacho bem quente, assentado sobre o fogo, para “soltar a pele”. As sementes torradas e socadas no pilão formavam uma massa, que era mergulhada em água fervente.

Tudo se processava em meio a intenso calor; a massa imersa na água era mexida com o próprio talo da mamoneira para não “desandar”; lentamente, o óleo soltava-se sem se misturar à água; era retirado com uma colher de ferro e colocado em garrafas, para ser vendido a preços módicos, destinando-se a alimentar o fogo das candeias de azeite, em casas particulares e em prédios públicos. 

A feitura de velas de sebo era igualmente extenuante. Para começar, retirava-se o sebo das barrigadas de vacas que eram levadas para os curtumes; no passo seguinte, o sebo ia ao fogo em um tacho, onde era fritado até derreter. Naquele mundo de trabalho árduo e muita parcimônia, tudo se utilizava: as sobras das barrigadas fritas eram aproveitadas para fazer sabão.

O sebo derretido, misturado a ramos cheirosos de patchuli  (pogostemon patchouly), era colocado em forminhas de madeira com o formato de velas, e já preparadas com um pavio de algodão; esperava-se esfriar –  e as velas estavam prontas. Eram muito procuradas por particulares e órgãos públicos. 

Muitas mulheres consumiram parte de suas vidas nesses afazeres, com vistas à auto-suficiência das casas goianas, como também com o objetivo de aumentar sua própria renda. Alguns documentos comprovam a assertiva. Assim é que Anna Benedita de Souza, em 4 de abril de 1895, recebeu 

do cidadão Jozé Pinheiro de Lemos, porteiro da Directoria de Finanças do Estado,  a quantia de 10$300 [dez mil e trezentos réis] procedente de 93 velas de cebo que forneci para iluminação do Corpo de Guarda da mesma Directoria e lavagem e engomação de toalhas, e por haver recibido passo o prezente.

Assinale-se o tratamento dado ao Porteiro: – qual seja o de cidadão.  Viviam-se os anos iniciais da República, quando se empregava tal designação para designar os servidores públicos. 

Na capital goiana – com cerca de 8.000 habitantes – há alguns anos era utilizado o querosene na iluminação pública.  Com efeito: em 1883, havia 83 lampiões  distribuídos pela Cidade de Goiás.

 A iluminação pública da capital era objeto de arrematação (licitação), sendo assinado contrato com o vencedor, no qual ficava estipulava que os lampiões ficariam acesos “do começo [do escurecer] até a meia noite”- cabendo à fiscalização cuidar que fossem adequados o tamanho dos pavios e a altura das chamas. O contrato tinha a validade de um ano e previa o pagamento mensal de 333$333 (trezentos e trinta e três mil, trezentos e trinta e três réis), ou seja,  4 contos de réis.

Conforme visto no recibo anteriormente referido, a quantia de 10$300 (dez mil e trezentos réis) remunerava Ana Benedicta de Souza por 93 velas, mais a lavagem de toalhas “por 3$200 réis”; de onde se conclui que referidas velas de sebo custaram 7$100 réis (sete mil e cem réis). 

Feitas as contas, chega-se ao preço de uma vela de sebo: 77 réis, quase um tostão, moeda que valia 100 réis. Referidas velas destinavam-se 

ao Corpo de Guarda da Directoria de Finanças do Estado, vale dizer: eram parte do aparato de segurança que garantia a própria incolumidade do Tesouro Estadual, quando não havia bancos nem estabelecimento similar na Cidade de Goiás.  

Assim era a dura vida da mulher goiana pobre, naqueles difíceis tempos.