A princípio este título pode parecer uma cacofonia, numa simples troca do último “s” da palavra “bossa” por um “t”, só isso. Se assim o fosse, seria um desabafo incontido pela sua ausência. E fica só nisso mesmo. Mas é legitimamente tecido na emoção. Isaurinha querida, quantas saudades de sua música, de seu estilo, de sua presença única; lembrada com muito carinho e com muita ternura nesse seu centenário de nascimento.

“Personalíssima”, a “moça romântica de São Paulo”, “a Edith Piaf brasileira” e tantos outros títulos que Isaurinha Garcia recebeu ao longo de sua vida, marcada por paixões, reforçam a tese de que ela foi uma das maiores intérpretes da alma paulistana.

Isaura Garcia levou em todo o país um jeito paulistano de ser; uma autenticidade marcada pelo sentimentalismo e pela emoção ao cantar os sucessos românticos no seu estilo “fossa”; com um timbre diferenciado, nasalado, com sotaque italiano bem marcado; uma forma dramática de se apresentar, com sambas canções cheios de bossa, uma forma “europeia” de expressão, mas também, num autêntico ecletismo; ao mesclar sambas e outros estilos, ao desmentir Vinícius de Morais que, num dia infeliz, disse ser a cidade de São Paulo o “túmulo do samba”, que não nos deixe mentir Adoniran Barbosa!

Isaurinha Garcia, que sempre cantou a tristeza, num chocante paradoxo, nasceu na Rua da Alegria, no tradicional Bairro do Brás, reduto italiano da cidade de São Paulo, descendente dos Geanini Pancetti, da região da Toscana. Era sobrinha do grande pintor brasileiro Giuseppe Pancetti. Era o dia 26 de fevereiro de 1923, há cem anos. 

Sua primeira ocupação, ainda em criança, era engarrafar vinhos; o que fazia cantando de uma maneira doce e suave; o que levou sua mãe, Amélia Pancetti, a se interessar em levá-la a se apresentar num programa de Rádio que era, à época, a grande coqueluche nacional. Corria o ano de 1932, tempo agitado da Revolução Constitucionalista que abalou São Paulo.

Foi assim, ainda criança, que aprendeu a beber, segundo disse numa entrevista. Bebia mais que engarrafava.

Foram ambas, ela e a mãe, ao programa “Peneira de Ouro Rhodine” da Rádio Cultura de São Paulo onde, para desgosto, foram reprovadas e nem mesmo foram classificadas. Foram literalmente gongadas. O difícil foi voltar para casa, no Brás, e enfrentar a gozação da vizinhança,

 No ano seguinte, Isaurinha Garcia participou do programa de calouros “Quá-quá-quá quarenta”, que era apresentado por Otávio Gabus Mendes, na antiga e tradicional Rádio Record de São Paulo; em que cantou o samba “Camisa listrada” de Assis Valente. Dessa vez foi aprovada e conseguiu, inclusive, a oportunidade de participar de um programa especial que reunia calouros selecionados.

No ano de 1938, com 19 anos de idade, quando já morava com o então diretor da Rádio Record de São Paulo, Teófilo Almeida de Sá, Isaurinha Garcia foi contratada pela Rádio e depois TV, onde ficou ali por várias décadas. A princípio, nas apresentações nessa emissora, ela fez dupla com o cantor Mário Ramos, o “Vassourinha” (1923-1942), que morreu muito jovem, aos 19 anos de idade. Ambos faziam, além de apresentações na Rádio, muitas outras também em circos, que vida de artista nunca foi fácil. 2023 também marca o centenário de Vassourinha.

Representante legítima da velha bossa, termo este inclusive, marcante nesse tempo de boemia, choradeira, bebedeira, fumaça de cigarros, bares, boates, cabarés e bistrôs cheios de nostalgia; malandragem criativa, num tempo em que até malandro era chique! Ali, naqueles ambientes marcados pela tristeza e pela solidão coletiva, nasceriam as mais belas canções de nossa MPB!

Também, o nome Bossa aparece nos dicionários antigos com a definição de “tumor, resultante de contusão” e ainda “indício de certa tendência ou aptidão”. Nesse segundo, firmou-se a concepção musical ao termo, como queda, traquejo, propensão de certas pessoas a determinadas atividades, ou, no caso, a certos ritmos. Noel Rosa deu a sua definição no samba “Coisas nossas”: “O samba/a prontidão/e outras bossas/são nossas coisas/são coisas nossas”. 

Tal concepção define o povo do Brasil como gente cheia de bossa, gente diferente, ao se integrar à feliz definição dada pelo magistral Câmara Cascudo: “O maior patrimônio do Brasil chama-se povo brasileiro”. Que imensurável verdade!

Isaurinha Garcia era plena de bossa em sua singularidade marcante. Definia-se como influenciada por Aracy de Almeida (a Araca) e Carmem Miranda, duas divas da antiga bossa brasileira; cada qual com a sua forma específica de cantar a brasilidade. Também na Rádio Record de São Paulo, Isaurinha Garcia ficou muito conhecida por um jingle que cantava para o saponácio Radium. O produto passou a ser muito comercializado a partir da voz e do jeito peculiar da cantora.

Ela extrapolou os limites da pauliceia, gravou o seu primeiro disco no ano de 1941, aos 22 anos de idade, na Gravadora Colúmbia, do Rio de Janeiro, então capital Federal, com o título de “Chega de tanto amor”, de Mário Lago e “Pode Ser” de Geraldo Pereira e Marino Pinto. 

Daí por diante, continuou lançar cerca de cinquenta discos em 78 rpm e mais de uma dezena de LPs até o final da década de 1970. Foram os seus títulos em 78 rpm: A baratinha/aproveita o beleléu, Eu não sou pano de prato/O telefone está chamando (1941); Sem cuíca não há samba/teleco-teco, Consciência/Partida precipitada, Batendo na minha porta/Quem paga o pato sou eu, O que há com você/Procura o Miguel (1942); A cara do Fuelher/Pulo do macaco, Os produtos da minha terra/Aperto de mão, O sorriso do Paulinho/Cadê o tempo, Malandro granfino/Duas mulheres e um homem (1943); Não era adeus/adivinhe coração, Se você visse/Toma juízo, Pretinho/Linda flor, Pregão da baiana/Amanhã tem baile (1944); Não faças caso, coração/Eu fico, Deixa pra lá/Ironia do amor, Tinha graça/Barulho no morro, Incidente/Pra quê?,  A saudade continua/Camilo (1945); Mensagem/Edredon vermelho, Século do progresso/Último desejo, Velho descarado/Nego, Duro nega/Mulher de malandro, É lamentável/Quando um sambista morre (1946); Teu retrato/Dona Rosa, Prêmio de consolação/De conversa em conversa, Agora sim/Casa modesta, Bate de mansinho/Deixa de falar, O mesmo pecado/Troca de amor (1947).

Nesse ano, Isaurinha Garcia teve popularidade nacional a partir da música “Mensagem”, que esteve no topo do sucesso por dois anos. Ela já era a estrela da Rádio Record de São Paulo, apresentava-se no Programa César de Alencar, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, já excursionava por apresentações em todo o Brasil, ao levar  longe o jeito paulistano de cantar a fossa e o samba ao mesmo tempo, pois naquele tempo o samba já era “a tristeza que balança”, mesmo que isso ainda não tivesse sido dito e cantado por Vinícius de Morais.

No ano de 1948 Isaurinha Garcia continuou com os seus sucessos em 78 rpm: Carinhosa/No rancho fundo, Paraíso da sorte/Marido Maluco. Já no ano seguinte, 1949, lançou: Sofres porque queres/Seresteiro. Seguem-se: Tumba tumba leu/Até o luar, Baião no Brás/Represália, Diga-me a verdade/Velho enferrujado, Pé de manacá/Pode ficar, Mania de Balzaqueanas/Duelo, Manjericão rajadinho/Boca fechada (1950). 

Nessa década seus sucessos foram os sambas e os baiões; sendo a primeira “Rainha do Rádio Paulista” em 1953 e em 1957, lançaria o primeiro LP, intitulado “Personalíssima”, título dado por Blota Junior. Lançaria ainda mais 22 rpm e a partir de 1963 somente LPs, que somaram mais de uma dezena, todos sucessos de vendas. Seu primeiro CD foi lançado póstumo em 1993, seguido de mais três.

Com o advento da televisão na década de 1960, Isaurinha continuou sua trajetória na TV Record, com belas apresentações em programas de auditório, sendo a preferida do público. 

Apresentou por diversas vezes no Copacabana Palace no Rio de Janeiro. Também, nessa década, em excursão à cidade de Recife, conheceu o pianista Walter José Wanderley de Mendonça, conhecido artista, depois com fama internacional, com quem viveu vários anos uma tumultuada história de amor, que rendeu uma filha e dois netos. Na década de 1960, Walter Wanderley fez carreira internacional, nos Estados Unidos, e jamais retornou para residir no Brasil e faleceu de câncer em São Francisco, no ano de 1986.

Depois da década de 1970, a carreira de Isaurinha Garcia entrou em declínio, assim como as cantoras de seu tempo, haja vista a mudança de estilo e as novas tendências da MPB. Mesmo assim, continuou com o seu público cativo e apresentações e shows na Igrejinha, na Casa de Badalação e no Tédio, quando lançou, ainda, alguns discos de seus antigos sucessos.

De seu estrondoso sucesso “Mensagem”, cantado em forma de dor e sofrimento inconfundíveis, fica a letra: “Quando o carteiro chegou/e o meu nome gritou/com uma carta na mão/ante surpresa tão rude/nem sei como pude/chegar ao portão”. Mesmo havendo um erro semântico na música, em que “rude” jamais pode ser adjetivo de “surpresa”; que, somente pode ser agradável ou desagradável; nesse caso, usada para forçar a rima com “pude”; o Brasil inteiro cantou. Com isto Isaurinha Garcia foi coroada a “Rainha dos Carteiros”, em 1947.

De suas inconfundíveis interpretações de sambas, algumas letras são dignas de nota, como o “Velho enferrujado”, de Gade e Walfrido Silva, que lançou em rpm no ano de 1950, quando evidenciou o homem mais velho a flertar com as moças mais novas que se aventuravam irem sozinhas ao cinema, fato condenável nesse tempo:

Chega pra lá, seu velho enferrujado

Com esta cara de cegonha

Querendo só me beliscar,

Chega pra lá 

Senão eu faço a bulha

Chamo rádio patrulha

Para lhe espetar.

Chega pra lá, velho saliente

Não seja tolo, vá lamber sabão!

Se você ficar me beliscando

Careca de uma figa eu lhe meto a mão!

Hoje em dia não se pode ir ao cinema, sozinha,

Vem logo um velho com cara de bode

Todo treme-treme pra tirar casquinha

E se a gente acha ruim o velho de perto não sai

E ainda diz assim

Menina mais respeito posso ser seu pai

E fica se babando, mas dali não sai

Menina mais respeito posso ser seu pai!

Também inesquecível a apresentação de Isaurinha Garcia no programa de auditório da TV Record em 1963, quando, vestida de empregada doméstica, cantou o samba “Marido maluco” que critica os esposos traidores com as funcionárias do lar. Com seu jeito brejeiro e sua voz rouca, Isaurinha deu o show com grande artista que sempre foi, no estilo de samba de breque, em voga naquele tempo:

Dona Julia, seu marido me abraçou, me beijou!

Quando eu dei de mão numa vassoura ele correu

Eu creio que o velho enlouqueceu.

Meu Deus, eu vou embora dessa casa

Seu marido, dona Julia, é uma brasa!

A senhora arruma logo outra empregada

Com um maluco na cozinha

Eu não posso fazer nada, o que que há?

Chama esse careca às falas, Dona Júlia

E ensina esse palhaço a respeitar mais a senhora

Se ele fosse meu marido, entrava na chibata e o mandava embora.

A senhora está enganada Dona Julia,

Esse bandido é um gavião

Se eu não conhecesse o tipo

Tinha me queimado toda no fogão, no caldeirão!

Outro samba importante na carreira da grande Isaurinha Garcia foi “De conversa em conversa”, de Haroldo Lobo e Lúcio Alves (cantor que morreu no mesmo mês que a cantora, em agosto de 1993, aos 66 anos). A música, mesmo em estilo de samba, canta os amores conflituosos, tema recorrente na vida da “Personalíssima”:

Foi de conversa em conversa

Você vai arranjando um modo de brigar.

De palavra em palavra você está querendo é nos separar.

Parece até que o destino uniu-se com você só pra me maltratar

Cada dia que passa é mais uma tormenta, que eu deixei passar.

Nosso viver não adianta é melhor juntarmos nossos trapos

Arrume tudo que é seu que eu vou separando meus farrapos

Vivendo dessa maneira, continuar é besteira

Não adianta não.

O que passou é poeira, deixa de asneira, que eu não sou limão!

O tema da mulher abandonada com os filhos e a solidão marcada pelo sofrimento e insatisfação, aparece, também, no samba “O sorriso do Paulinho”, de Gastão Viana e Mário Rossi, que Isaurinha deu um brilho todo especial:

Não é possível viver assim desse jeito

Chegando de madrugada

Sujo de ruge e de pó.

Parece incrível, você perdeu o respeito,

Não tem amor a mais nada

Me deixa em casa tão só.

O meu futuro é o sorriso do Paulinho

Quando pergunta: “Mamãe, onde andará meu paizinho?”

Então eu choro e você sabe o porquê,

Nosso filho desconhece o que dizem de você!

Isaura Garcia. Isaurinha. Personalíssima. Foi, segundo crônica de David Nasser (1917-1980), publicada na Revista Cruzeiro de 28 de abril de 1956, a “mulher que ainda era capaz de sonhar”. Sonhadora incorrigível. Foi tantas vezes criticada pelas suas paixões avassaladoras, suas crises de depressão, seus choros constantes, sua bebida tantas vezes excessiva. Isaurinha era fruto de si mesma. Autêntica. Cheia de bossa; na rima com fossa. (Já pensaram? Se tirarmos o último “s” de bossa, o que sobra também vai pra fossa! Legal!).  

Depois dos 70 anos, a saúde de Isaurinha Garcia piorou bastante. Vivia num bairro simples da capital de São Paulo, com a sua filha Mônica, netos e alguns bichos; os pássaros que ela tanto gostava. Foi internada várias vezes; o que redundou no seu falecimento às sete horas da manhã do dia 30 de agosto de 1993, aos 70 anos de idade, sepultada às 17 horas do mesmo dia no cemitério do Morumbi.

Desapareceu a grande musa, aquela de estilo próprio, de traços paulistanos. São Paulo muito deve a Isaurinha Garcia, que traduziu o seu jeito de ser. Em 2009, a grande diva foi homenageada com o espetáculo teatral que reproduzia a sua vida “Isaurinha in concert” estrelado por Rosamaria Murtinho, com direção de Rick Garcia, neto da cantora, também cantor e ator, que trabalhou no seriado “Malhação” da Rede Globo. É também famoso como diretor de filmes e espetáculos.

Ah, Isaurinha Garcia, que bossa! O carteiro hoje não grita mais nosso nome e só traz contas para pagar. Tudo foi substituído pelo laconismo dos e-mails. Não gostou, deletamos. Não há mais surpresas rudes. Não há mais envelopes bonitos com subscritos que reconhecemos, da pessoa que amamos. Tudo é virtual, sexo inclusive. Agora eu canto: “Parece até que o destino uniu-se com você só pra me maltratar”. É mesmo. Saudade é maltratar. Essa geração de hoje não conhece saudade. Nem dor. Nem fossa. Nem nada. Há um vácuo.

 A música (música?), se analisada biologicamente, não sai mais da boca que antigamente, com você e outros, traduzia a alma. Hoje, ela é pélvica. Os remelexos bamboleantes de ancas tremelicantes em posições escalafobéticas ganharam o vídeo. Canta-se com as nádegas, canta-se com a vagina, canta-se com o pênis. Canta-se com o ventre. Os seios (já pensou?), cantam também. A música é fálica. Há tanto “creu”, “segura o tchan”, “libera o tôin”, “tô atoladinha”, “bebo pra carái”, lepo lepo; que seria muito para você. Há, agora, segundo dizem, música de rico e pobre. Não aquela boemia de ontem. A música não é mais universal. O povo estribucha no chão, parece que está tendo um acesso! Parece tomado de espírito! Meu Deus, a música é expressão do ser humano! Mas, para que exagerar tanto?!

A mulher agora é cachorra, é popozuda, é piriguete. Não é mais a “deusa da minha rua”. Que pena, tanta beleza oculta, esquecida, para sempre sepultada! Eu nem sou tão velho assim (52 anos), mas sinto que tudo, quanto a isso, acabou. É o fim.

Foi bom mesmo, Isaurinha, Deus tê-la adormecido para sempre. Seu tempo passou. Sua imagem muito branca e muito limpa a lembrar a pureza de tempos de antanho, sumiu. Ainda te vejo, ainda te sinto, ainda te gosto, na minha solidão também de coisas velhas, só minhas. Um mundinho só meu, que nem sou do seu tempo, eu criei para minhas horas de nostalgia e deleite de tanta beleza oculta, só minha.

Ah, Isaurinha Garcia, que bossa!