A velha Santa Luzia de Goyaz

07 outubro 2022 às 17h43

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Na Geografia do chão parado de Goyaz, dos idos dos setecentos, na trilha do ouro em nosso Estado, há um espaço na terra emotiva dos sentimentos telúricos, ao antigo e próspero Arraial de Santa Luzia, que surgiu ainda no século XVIII, quando o bandeirante Antonio Bueno de Azevedo, no ano de 1746, partiu das minas da antiga Vila de Paracatu do Príncipe, no Sertão da Farinha Podre, então pertencente a Goiás, e encontrou ouro fácil às margens de um pequeno rio. Nesse mesmo tempo, ele ergueu um cruzeiro que dedicou à Santa Luzia. Era o dia 13 de dezembro de 1746.
Nascia, na incerteza geográfica do sertão, mais um arraial na febre do ouro, num recanto esquecido como nos lembra o verso do extraordinário Gelmires Reis:
Em versos lindos cantar quisera
Ai, quem me dera!
Toda magia, todos encantos
De minha terra – Santa Luzia! Santa Luzia!
Na minha terra a lua branca
Tem luz mais franca, mais poesia
Quando cintila no céu de opala
Santa Luzia! Santa Luzia!
Gelmires Reis
Santa Luzia do Planalto, Santa Luzia do Marmelo, Luziânia. Arraial do ouro e das riquezas do sertão de Goyaz; teve o seu nome inscrito na legendária fase dos faiscadores e dos garimpeiros.
Santa Luzia já surgiu como Julgado com a extensão de quarenta e oito léguas de longitude. Ficava a dezoito léguas do Arraial de Couros (Formosa) e a nove léguas de Santo Antonio dos Montes Claros. Confrontava o Julgado com os outros julgados de Meia Ponte, Trahyras, Cavalcante, Paracatu e Santa Cruz de Goyaz.
Seus pontos geográficos foram destacados desde os setecentos como a localização a 16°15’ de latitude, aos 4°46 de longitude e a 943 metros acima do nível do mar. Seu relevo constava da Serra dos Cristais, morro do Palmital, o rio Corumbá, ribeirão do Pamplona, Ribeirão Santa Luzia, rio São Bartolomeu, rio Canoa, São Marcos e Rio Preto. Havia em 1783 nove lavras em constante trabalho no Julgado, quatorze engenhos de moer cana com muitos escravos no eito, fábricas de farinha. Havia 14 lojas de fazendas, entre secos e molhados.
Santa Luzia possuía, a princípio, duas importantes igrejas, como a Matriz, dedicada a Santa Luzia, padroeira do município e a antiga e barroca, Igreja de Nossa Senhora do Rosário, levantada pelos escravos, ambas, à época, elegantes e com duas torres.
Para o novo arraial afluíram centenas de garimpeiros ávidos por ouro. Chegou a contar em 1758 com mais de seis mil em atividade e, nesse tempo, teve início a construção de um grande rego de mais de 40 quilômetros, por centenas de escravos, para lavagem do ouro, que foi alcunhado de Rego da Saia Velha. Em 1833, o arraial passou à condição de Vila e à de cidade em 1867, com o nome de Santa Luzia. Somente em 1943 passou a denominar-se Luziânia.
Sua relíquia histórica é a antiga igreja de Nossa Senhora do Rosário, datada ainda do século XVIII, com suas imagens de madeira e seus sinos de bronze. Às margens dos rios Vermelho e São Bartolomeu, ao longo dos séculos, muito ouro foi retirado. Com o declínio da mineração, as atividades agropecuárias, o comércio e a localização propiciaram um lento desenvolvimento que foi acelerado com a fundação de Brasília nos anos de 1960.
Com vida cultural intensa desde o século XIX, o arraial de Santa Luzia teve nas personalidades históricas de João Teixeira Álvares Junior, Joseph de Mello Álvares, Gelmires Reis, Baltazar dos Reis, Evangelino Meirelles, José Dillermando Meirelles, os seus grandes baluartes que sustentaram sua histórica, evocada pela marmelada tradicional e pela Academia de Letras e Artes do Planalto, desde os anos de 1970.
Luziânia teve uma casa de câmara e cadeia bem construída ainda nos dias da colônia, ruas com belíssimos casarões e monumentos que foram tragados pela onda iconoclasta que assolou a cidade com a proximidade de Brasília. Pouco a pouco foi ruindo a antiga Santa Luzia, para parecer moderna, como a vizinha cidade.
De forma similar, para o novo, o velho foi sendo destruído. Enquanto nos arraiais de Ouro Fino e Trahyras, como vimos, em nome de um novo, o velho foi arrasado, em Luziânia se deu que, o novo por perto, suscitou uma tentativa de renovação do velho, apagando vestígios de outrora. Como que fazendo uma plástica, a cidade velha tentou esconder suas escaras e marcas de velhice, mas perdeu aquele ar ingênuo e puro dos antepassados. Que pena, Luziânia, que pena!
O que restou da velha Luziânia, num legado, como rosário de contas arrebentadas, ainda é belíssimo. Urge continuar, embora a especulação imobiliária que assolou a cidade após Brasília, seja sempre uma arma apontada contra a bissecular urbs de Gelmires Reis!
Santa Luzia dos setecentos era uma vila onde o ouro imperava. Contam os narradores do passado que a localidade era febril. Notícias se espalhavam da proficiência do solo no planalto do Brasil, sertão de Goyaz, onde a riqueza superava. Na cabeceira do Rio Vermelho até sua foz no São Bartolomeu, desde a cabeceira do rio Palmital até sua foz no Corumbá era uma lavra extensa, onde escravos cavavam a terra em busca do ouro em profusão. O primeiro censo dos escravos marcava em 1771 a quantia de 1565 que trabalhavam na Vila de Santa Luzia.
A produção segundo as estatísticas era de dez arrobas de ouro por ano. Com o esgotamento rápido do ouro, a agricultura foi uma alternativa de sobrevivência dos habitantes de Santa Luzia. Nasceu, nesse período, a fabricação e o comércio do tradicional doce Marmelada de Santa Luzia, colocada em caixetas de madeira, símbolo máximo da belíssima terra de Joseph de Mello Álvares.
Santa Luzia também teve prestígio cultural por meio do Padre João Teixeira Álvares, citado por Saint-Hilaire como um dos mais inteligentes goianos, seguido de Joseph de Mello Álvares, escritor, historiador, falecido há exatos cem anos. Também Plácido de Paiva, Baltazar dos Reis, Joaquim Machado de Araújo, Antonio Março de Araújo e Gelmires Reis foram baluartes da história, cultura, geografia e literatura em Santa Luzia, promovendo-a numa época de dificuldades de comunicação.
Arraial do ouro dos tempos de Goyaz, Santa Luzia do planalto se destacou como uma das mais versáteis cidades goianas, ganhando notoriedade na época da mudança da capital do País.
Pena que a destruição do seu patrimônio arquitetônico tenha colaborado para a ausência de identidade local. Que jamais ela seja lembrada pelo triste episódio do assassinato dos jovens, os “meninos de Luziânia”, mas seja cantada como a terra das marmeladas, das tradições, das músicas, do teatro e do folclore; berço amado de homens ilustres e marca indelével da penetração do sertão do Brasil na febre e delírio do ouro – riqueza e miséria humana, no avançar das gerações.
Luziânia é para mim um recanto poético e lírico, na lembrança que é terra dos ascendentes maternos de minhas filhinhas, por meio da história de seus trisavós luzianos Henrique Roriz Meirelles, Zenóbia Deolinda Roriz, Ernesto Augusto Ferreira Levergger e Francelina Julia de Fiqueiredo, que ali, em dias distantes, pisaram a experiência terrena, nos entrechoques do destino.
Luziânia, tão querida! Luziânia tão amada! Chão eterno dos nossos avoengos!