A moderna produção literária em Goiás com Contos do dia, coletânea de Ademir Luiz

16 agosto 2023 às 16h31

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A obra Contos do dia, organizada por Ademir Luiz foi publicada em 2020 via Lei Goyazes, da Secretaria de Estado de Cultura e União Brasileira de Escritores, seção de Goiás. Tem 144 páginas e enfeixa 27 contos de diferentes autores, fruto do Projeto “Dia de campo com as letras”, da UBE-GO, em oficinas realizadas de 27 de abril a 29 de junho de 2019. Estas foram concebidas originalmente por Edival Lourenço e realizadas por Ademir Luiz.

Resultado desse esforço coletivo, a coletânea prima por contos curtos, objetivos, concisos, de enxugamento narrativo, em temática dos conflitos cotidianos, centrados na contemporaneidade, na pulverização do ser humano, notadamente nas grandes cidades.
A obra foi apresentada pelo seu organizador, ao evidenciar os estilos múltiplos dos autores e o objetivo em formar possíveis leitores e, ainda mais, também possíveis autores; haja vista a busca por aproximar as coisas pequenas do cotidiano como temas de narrativas curtas, densas e voltadas para o mundo dos próprios leitores.
São os autores que compõem a coletânea: Carlindomar José de Oliveira, Carlos Edu Bernardes, Cristiano Deveras, Eliézer Cardoso Oliveira, Elson de Souza Ribeiro, Hélverton Baiano, Jô Levy, Joaquim de Azeredo Machado, José Fábio da Silva, José M. Umbelino Filho, Kleber Willian Waleriano, Lêda Selma, Leonardo Teixeira, Márcia Pires, Maria Amélia Trindade, Maria Helena Chein, Marinalva Mota, Maristela Martins da Silva, Mayara Stéphane Gomes, Nelson Moraes, Ricardo Rodrigues, Solemar Oliveira, Sônia Elizabeth, Talissa Teixeira Coelho, Virgínia Virgílio, Ana Luiza Serra e Ademir Luiz. Nessa plêiade de escritores, alguns veteranos e outros iniciantes.
As temáticas da obra são variadas, centradas na vivência humana e os pequenos/grandes/ínfimos/íntimos conflitos que cerceiam o homem atual, com a dura/chocante realidade hodierna; bem como as sutilezas íntimas, algumas poéticas, em narrativas de cunho psicológico, em fluxo de consciência, com devaneios e perquirições da alma humana diante do embate da vida.
Nos pequenos contos, próprios para trabalho pedagógico em sala de aula; dada a objetividade, aparecem temas como o ambiente caseiro, em cenas comuns e triviais de simples visita familiar com surpreendente final (A visita); também o insólito, misterioso e insondável da morte, em elucubrações e devaneios (A escuridão veio do céu); ainda, a violência urbana no submundo do tráfico, com personagem ladrão, em cenas fortes e contundentes de assassinato (Contrato social). Outro, sobre a mania goiana dos apelidos pejorativos, em ambiente degradante, no resgate de dívidas, com forte ironia presente nas cenas descritas (Então, descurpa a demora).
Em “Conselho de classe”, a narrativa do massacrante cotidiano dos profissionais da educação e a filosofia de vida diante dos obstáculos e mazelas vividas em ambiente escolar. Também, a rotina e vida de diferentes trajetórias, de personagem rico e pobre, ambos fadados a tirania do destino, na crueldade da vida é destacada em “Clãs destinos”, num neologismo carregado de significados. Ainda, segredos familiares degradantes; de insólito passado, no momento extremo da vida, ante a morte, aparece na narrativa de “Juízo final”. Também, o ambiente de velório, na visão infantil diante da disputa por um pedaço de bolo da merenda do próprio velório, é tema em “Pena de anjo”.
Em “A inércia dos sonhos”, a singularidade constatada da incapacidade humana da completa realização; uma análise dolorosa do chocante paradoxo entre o sonho e a realidade. Também em “As irmãs Saragoça”, a narrativa sombria sobre o misterioso da morte, do destino, da incompletude, do perdão, da reconciliação e do suicídio.
Narrativa fluente e rica de significados “Voos à vela do Maluco Beleza” evoca Raul Seixas com todos os seus significados, no diálogo entre passado e presente dos personagens em discussões de tempos políticos; bem como relacionamentos, verdades e mentiras. Já, de forma jocosa e irreverente, “Tonho do padre e os desassossegos do sossego da alma” destaca o tema da traição matrimonial em tom irônico, ao apontar para a passividade do ato nas vicissitudes conjugais do protagonista.
Centrado no ambiente da criminalidade urbana, em irônico título, “A melhor coisa do mundo” apresenta o cenário degradante dos presídios com todas as suas misérias morais, ainda mais no gosto mórbido do protagonista em exterminar bandidos, num ideário de eugenia social.
Já “Um olhar, um espelho, um sonho, uma realidade” trata sobre a tentativa de reconstituir o ambiente e as relações do passado em jogos de luz entre claro/escuro e a impossibilidade dessa realização. Também em ambiente sombrio, em misto de sonho e realidade, a personagem em “Desumanos infernos humanos ou imaginação?”, a perquirição apresenta os enganos dos fakes, aos quais muitos se veem envolvidos e corrompidos nas concepções.
Em “Rapaz na avenida”, numa narrativa fatiada em diálogos plurais, polifônicos, apresenta o ideário de suicídio em que, por ironia, não apresenta auxílio no momento fatal; Já “Uma vida se salva”, o drama familiar da perda dos entes amados, em meio a acidente, nas perquirições dos personagens. Também em “Café na cama”, o ambiente agressivo da convivência conjugal eivada por doentio ciúme e o final insólito, irônico e inesperado. Ainda “A peste”, o apelo histórico e fantástico do passado, em 1348, na perspectiva da peste, da morte e da separação.
Na narrativa de “O grande clichê” uma crítica ao próprio fazer literário, a labuta com a linguagem em busca do novo, embora tudo pareça clichê e antiquado, num diálogo entre escritor e escrita. Já “Decadência”, evoca de forma pungente o drama da prostituição e da fome. Em “Matilde”, o histórico da loucura, do mundo à margem, dos anseios e o tema do sagrado, nas escrituras.
Ainda em “O último dia é o primeiro”, a sondagem do ideário de fim na perspectiva difusa de um bêbado. Já o estranhamento aparece em “O espelho convexo”, em que, pela ótica do difuso, aparece o confuso do mundo, numa cena trivial de busca por emprego. Poeticamente “Presente sazonal” a personagem feminina evoca a liberdade, o desejo de unir-se ao natural e o ideário de profunda leveza. Em “Inabilidade” surge a reflexão cotidiana sobre a falta de habilidade do ser para lutar contra o peso sombrio das tenazes lembranças.
A obra é fechada com o conto “A trajetória patética de um livro virgem”, cujo personagem é o próprio livro e suas agruras, seu itinerário; um protagonista na sua triste epopeia até a extinção no ideário redentor das cinzas.
Um livro importante e necessário para o entendimento das particularidades do mundo atual, no universo goiano, com a turbulência dos dias, das lutas íntimas na grande solidão que se vive, hoje, em meio à solidão.