A sociedade está doente. Não é possível que vejamos o aumento das violências e agressões contra mulheres e crianças sem refletir profundamente sobre o mundo que queremos. Na última semana, foram divulgados os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Eles mostram que a violência doméstica cresceu no país em 2022, com 245.713 ocorrências ante 237.596 no ano anterior. O feminicídio teve aumento de 6,1% no número de casos, passando de 1.347 em 2021 para 1.437. Já as tentativas de feminicídio subiram de 2.181 para 2.563, crescimento de 16,9%.  

Em Goiás, nos primeiros seis meses deste ano, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) contabilizou 14.777 mulheres ameaçadas pelos companheiros. Os casos de difamação, injúria e calúnia aparecem na sequência, com 11.787 registros. E além disso, foram registrados 336 casos de estupro e 60 de feminicídio. Isso significa quase duas vítimas de estupro por dia entre janeiro e junho. O número (336 casos) é 121% maior do que o registrado no mesmo período do ano passado, que contou com 151 casos. De forma geral, a violência contra a mulher sofreu um salto de 98,5% este ano

Contra o público feminino, o estupro foi o crime com maior aumento, seguido pelos crimes contra a honra (difamação, injúria e calúnia), com aumento de 107,2%, ameaça (91,8%) e feminicídio (87,6%). Em relação a quantidade de casos, a ameaça contra mulheres supera todas as demais violências.

Mas os dados não são apenas do Estado. No Brasil, foram 74.930 vítimas de estupro, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Seis em cada dez vítimas tinham menos de 13 anos, mais de 80% do total eram menores. Como entram na conta apenas os casos registrados na polícia, é certo que há subnotificação. 

Quanto mais casos de abuso sexual envolvendo pessoas conhecidas são divulgados, mais vítimas falam sobre seus casos. Entre as crianças, 64% foram abusadas por familiares. E, nove em cada dez vítimas de estupro são do sexo feminino. Esses números consolidam os já tratados em outros estudos: mulheres/meninas e que conhecem os seus abusadores. E evidenciam que a casa nem sempre é um local de proteção.

Toda violência implica em ausência de ética. É não ver a humanidade no outro. É “coisificar”, tratar o ser humano como objeto que pode ser quebrado, esmurrado, estuprado, estapeado e, por fim, morto. Mas, um ponto chama ainda mais atenção é a violência doméstica ou a realizada por conhecidos, e que, diferente daquela da rua, existe uma recorrência amparada pelos laços de afeto. Em muitos casos, o agressor causa confusão de sentimentos na vítima, inclusive ao propor que ela guarde para si o ocorrido, como se se tratasse de um acordo de confiança que não pode ser rompido, pois a consequência seria a perda do afeto do agressor.

Combater a violência dos abusadores que moram em nossas casas é medida necessária para resgatar a dignidade de qualquer sociedade. Mas só isso não resolve o problema completo, que seria a conquista de relações efetivas equilibradas. Bell Hooks mostra que o amor deve ser sentido como ação. Para ela, o amor seria uma ética de vida para se viver em sociedade. Para Marilena Chauí, a violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa (…). E, colocar as pessoas no mesmo nível das coisas é tirar delas o que temos de melhor.