Projeto de anistia escancara a hipocrisia da esquerda brasileira

05 setembro 2025 às 10h28

COMPARTILHAR
A história política do Brasil é marcada por conflitos, rupturas e momentos de reconciliação nacional. Em diversos momentos, a anistia foi utilizada como instrumento político para restabelecer a paz social e evitar a perpetuação de divisões que corroem o tecido democrático. Hoje, diante das acusações e processos em curso contra Jair Bolsonaro e seus aliados em razão da suposta trama golpista, surge novamente o debate sobre a necessidade de uma anistia ampla.
É preciso recordar que a esquerda brasileira, e em especial o Partido dos Trabalhadores (PT), já defendeu anistias em outras ocasiões. Em 1979, a Lei da Anistia foi celebrada por todo o campo progressista como um marco de reconciliação nacional, permitindo que exilados políticos retornassem ao Brasil e que crimes cometidos durante o regime militar fossem, em certa medida, perdoados. Mais recentemente, durante os governos petistas, não foram raros os apelos por “virar a página” em relação a escândalos de corrupção, com lideranças defendendo tratamento mais brando a aliados.
A foto usada na capa deste artigo foi tirada por Iugo Koyama, em abril de 1979, e mostra o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, no ABC Paulista, distribuindo panfletos pró-anistia durante o último período da ditadura militar.
O movimento, iniciado em 1975 por organizações civis, resultou na Lei da Anistia, sancionada pelo presidente João Figueiredo, que concedeu perdão a quase cinco mil pessoas punidas por atos políticos. Entre os beneficiados estavam sindicalistas e lideranças de esquerda perseguidos pelo regime, como o próprio Lula, preso em 1980 por liderar uma greve.
A medida também alcançou militares acusados de tortura, assassinatos e prisões ilegais, revelando seu caráter amplo e controverso. Ainda assim, foi a esquerda brasileira — incluindo Lula — quem lutou pela aprovação desse “perdão coletivo” e quem colheu seus efeitos diretos.
Não se trata de negar erros ou relativizar responsabilidades, mas de compreender que o país precisa superar um ciclo de perseguições políticas que apenas aprofunda rancores e polarizações. O Brasil precisa de estabilidade institucional e de pacificação social para enfrentar os reais desafios nacionais, como o desemprego, a violência e a falta de investimentos em áreas cruciais. Continuar insistindo em transformar adversários políticos em inimigos a serem aniquilados é um erro histórico que já cobrou caro no passado.
Ora, se a anistia já serviu como ferramenta de pacificação e foi defendida pela esquerda em nome da democracia, por que não poderia agora ser aplicada em favor da direita? A coerência exige que não haja seletividade. A política não pode ser reduzida a um tribunal moral em que apenas os adversários são punidos enquanto aliados são poupados. Justiça parcial é apenas uma forma disfarçada de injustiça.
Outro ponto crucial é que a criminalização de opositores, ainda que sob a justificativa de proteger a democracia, abre perigosos precedentes. Hoje se pune Bolsonaro e seus apoiadores; amanhã, poderá ser Lula e seus seguidores novamente. O ciclo de vingança interminável só gera instabilidade e desconfiança nas instituições. Uma democracia madura precisa ser capaz de absorver conflitos sem recorrer constantemente ao banimento de lideranças políticas.
A anistia, nesse sentido, não deve ser vista como um ato de impunidade, mas como um gesto político de grandeza. Ela reconhece que erros foram cometidos, mas escolhe olhar para o futuro em vez de insistir em prender o país a um passado conflituoso. Além disso, cabe destacar que uma anistia ampla não beneficiaria apenas Bolsonaro, mas todos os envolvidos, criando condições para que o Brasil reencontre caminhos de convivência democrática.
É natural que haja resistência a essa ideia. Muitos argumentarão que anistiar seria passar a mão na cabeça de quem atentou contra as instituições. Mas esse raciocínio ignora que a própria democracia brasileira nasceu de uma anistia, que perdoou tanto perseguidos políticos quanto agentes do regime que cometeram abusos. Foi esse pacto que permitiu a transição pacífica para o Estado de Direito. Não seria coerente, agora, negar a mesma possibilidade a quem se encontra do lado oposto do espectro ideológico.
Em um país tão polarizado, defender a anistia ampla é defender a pacificação nacional. O Brasil não pode permanecer refém da retórica da guerra política eterna. O gesto de perdoar não apaga os fatos, mas dá uma chance de reconstrução. Se a esquerda um dia celebrou a anistia como vitória democrática, não pode hoje demonizá-la apenas porque o beneficiário é Jair Bolsonaro e seus aliados. O país precisa escolher se quer ser prisioneiro das disputas do passado ou se terá coragem de dar um passo adiante em direção a uma verdadeira reconciliação nacional.
Leia também:
Lula alerta para risco de anistia: “a extrema-direita possui força significativa”