Javier Milei: por que argentinos querem instrutor de Kama Sutra guiado por cão falecido como presidente

14 agosto 2023 às 17h45

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Javier Milei, o pré-candidato argentino que recebeu mais votos nas eleições primárias abertas, simultâneas e obrigatórias (Paso), é um personagem curioso. Ele é instrutor de Kama Sutra, defende a venda de órgãos (inclusive de crianças), se comunica com o cão falecido via parapsicólogos para receber conselhos do além, e se identifica com a direita anarcocapitalista. Enfim, uma mistura portenha de Donald Trump com Olavo de Carvalho.
A pré-vitória do economista de 52 anos que lidera o partido La Libertad Avanza foi uma surpresa internacional justamente pelo caráter amalucado do chefe da coalizão. A esta altura do campeonato, após trumps e bolsonaros, entretanto, os analistas políticos já deveriam ter aprendido a não descartar os azarões polêmicos. Milei teve 31% dos votos em seu partido, tornando-se o pré-candidato que recebeu mais votos nessas prévias que são consideradas fortes indicadores da eleição nacional argentina..
Em 2017, Lula afirmou à revista Veja: “Eu acho que o Bolsonaro não disputa. E se disputar, não tem chance. As pessoas têm vergonha de votar numa pessoa tão reacionária”. Mas as pessoas não tiveram vergonha de votar em Bolsonaro pela mesma razão que não terão receio de votar no homem que propõe dolarizar a economia e fechar o Banco Central. A maior parte do eleitorado não escolhe um candidato por seu conjunto de ideias; mas encara as votações como oportunidade de demonstrar apoio ou repúdio ao poder estabelecido. E as coisas vão mal na Argentina.
Como o Brasil tinha em 2018, a Argentina de 2023 tem um presidente impopular. O mandatário é Alberto Fernández, da corrente populista do peronismo, e sua vice Cristina Fernández Kirchner tem longa linhagem política como situacionista. Para os argentinos, Kirchner representa o establishment mais do que qualquer outro. A hecatombe econômica, com uma inflação projetada para 142% em 2023, deixou os argentinos propensos a abraçar qualquer candidato que prometa dinamitar o que os levou a este ponto. Há meses, Fernández está apagado, à sombra do ministro da Economia, Sergio Massa, um peronista de direita que também é pré-candidato.
Só isso, entretanto, não basta para explicar a razão de Javier Milei ter se destacado à frente dos outros oposicionistas, como Patricia Bullrich, do partido “Juntos pela Mudança”. Se a crise econômica explicasse todo o cenário político, inclusive, Milei não seria o favorito, pois suas ideias de extinção do peso assustam o mercado (o peso teve queda de 17,91% após as prévias). A explicação para seu sucesso é a comunicação e a sensibilidade para uma feia verdade que se esconde tacitamente em qualquer sociedade.
Primeiro, Milei é uma figura histriônica; as centenas de palavrões que pronuncia em seus comícios chamam a atenção do eleitor que normalmente se desinteressa pela política. Em segundo lugar, como fizeram Trump e Bolsonaro, Milei sentiu o pulso popular. Nos Estados Unidos e Brasil, os ex-presidentes detectaram uma resistência conservadora às ideologias de esquerda – ideologias estranhas e alheias aos problemas concretos cotidianos da maioria. Ideologias por vezes tão abstratas que permitiram a construção de espantalhos retóricos. Bolsonaro se elegeu no pavor imaginário provocado por kit gay, ideologia de gênero, mamadeira de p…
Na Argentina, os moinhos de vento onde o Dom Quixote Milei projeta gigantes são também a comunidade LGBT+, mas principalmente fantasmas do passado argentino. Ao contrário do que aconteceu no Brasil, os ditadores que impuseram o sangrento regime militar foram exemplarmente punidos e suas instituições foram colocadas de volta em seu papel de direito como burocracia do Estado. Milei é um aliado dos defensores da ditadura, que governou de 1976 a 1983, e afirma que a esquerda exagera o número de vítimas da repressão do Estado e repudia os movimentos de mães e avós que buscam identificar os desaparecidos políticos e seus filhos.
A deputada ultradireitista Victoria Villarruel é a companheira de chapa de Milei, e quem compra diretamente os confrontos diretos na área de direitos humanos e autoritarismo. Como em diversos países da América Latina, a Argentina tem considerado fazer o pacto que El Salvador fez com Nayib Bukele. Isto é, ceder suas liberdades democráticas em troca de segurança pública. O aumento da criminalidade (provavelmente ligado à crise financeira) não é analisado por suas motivações, mas em termos de combate às suas causas. E Milei, à sua maneira histriônica, promete um combate brutal.