Cidadania medida em cavalos (de potência)
03 abril 2024 às 13h55
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No Brasil tudo tem preço. O noticiário e o cotidiano provam que a cidadania não foge a essa regra. O caso do playboy Fernando Sastre Filho (não vou citá-lo como empresário, porque herança não é atividade laboral, tampouco empreendedora), que atropelou e matou o motorista de aplicativo Ornaldo Viana no domingo de Páscoa, em São Paulo, é o exemplo mais recente do abismo civilizatório que o Brasil não consegue se desvencilhar.
Era para ser mais um caso comum: um veículo, em alta velocidade, atinge outro veículo, ou atropela pedestres, ou “voa” sobre o canteiro central, etc. Vimos isso no caso do Thor Batista, filho do Eike, vimos também no caso em motorista do carro blindado que atropelou um policial, em janeiro deste ano, se recusou a sair do veículo e alegou que estava sendo seguido. Em todos os casos, esses cidadãos de bem foram cordialmente tratados, como se fossem vítimas, e não algozes. Para não ficar tão distante, há também o caso daquele que motorista que matou duas pessoas na T-63 e o MPGO só mudou o entendimento sobre punição (queriam que fosse mais branda) após repercussão negativa da sociedade.
O caso citado aqui, do Fernando Sastre Filho, inaugura um novo protocolo policial: a licença para fugir do flagrante. Afinal, um suposto ferimento leve na boca é mais que suficiente para tanto. Depois passa lá na delegacia para tomar um café e tudo está resolvido. A Justiça de São Paulo alegou que não há indícios que justifiquem a decretação de prisão preventiva do jovem de 24 anos.
Lembro-me de uma aula em que discutíamos a cidadania como um bem de consumo. Quem pode adquirir, que faça bom proveito. Quem não pode, que aguente a mão pesada do Estado, que suporte, sozinho, as injustiças que hão de recair sobre sua vida. O caso de Fernando Sastre e sua porsche milionária nos faz lembrar de uma categoria que vai além: a que define e aplica seu próprio conceito de justiça e cidadania, o que quase sempre dá certo.
As imagens e a pressão popular podem fazer frente ao poder econômico e trazer um pouco de justiça para a família de Ornaldo Viana. Mas isso será apenas um caso isolado em mais um dos problemas estruturais da nossa sociedade. A impunidade também tem preço e seu benefício é privado, mas o custo é coletivo.