Assédio político contamina eleição de conselheiros tutelares
04 outubro 2023 às 16h39

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A eleição dos conselheiros tutelares, realizada no último domingo, 1º, movimentou milhares de eleitores em todos os municípios brasileiros, no que pode ser considerada uma grande festa cívica e cidadã em defesa das crianças e adolescentes. Em algumas cidades, como Araguaína no Tocantins, quase metade dos eleitores que votaram nas eleições de 2022, compareceram às urnas no domingo para escolher os 10 conselheiros tutelares da cidade.
Em todo país, foram eleitos conselheiros tutelares de seis mil conselhos, sendo cinco por cada unidade. De acordo com dados do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), foram eleitos ao todo 30 mil conselheiros tutelares no Brasil. Foi a eleição unificada mais participativa da história desde a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, como uma política pública de Estado, envolvendo todas as instâncias de poder na sua execução.
Aprovado dois anos após a Constituição, 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é fruto do Artigo 227 e consolida todo o debate que o antecedeu, declarando crianças e adolescentes sujeitos de direito, aos quais devem ser garantidas a proteção integral e as oportunidades de desenvolvimento em condições de liberdade e de dignidade. O documento é considerado uma conquista por defensores de direitos humanos, juristas, especialistas da área e representantes da sociedade civil. Sem dúvida, contribuiu para a redução de índices de evasão escolar, mortalidade infantil e trabalho infantil.
O nível de adesão da sociedade ao pleito é um dado alentador. Sobretudo quando observamos que essa participação fortalece a grande rede de proteção social que são os conselhos tutelares, com enorme capilaridade. Quem vai nas urnas votar, pressupõe-se que tenha a consciência da importância do conselho na garantia desses direitos.
Do maior ao menor município brasileiro, teve eleição, teve candidato, teve concorrência e teve apoio, o que se espera maior comprometimento na aplicação do ECA. A missão é árdua e urgente. A cada 15 minutos uma criança sofre violência sexual no Brasil. As maiores vítimas são crianças de até cinco anos de idade. Em 2020, 60% das vítimas de violência sexual no Brasil tinham menos de 13 anos.
Conforme dados da Unicef, de 2016 a 2020 cerca de 35 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil. O que alcança uma média absurda de 7 mil mortes por ano. Os meninos negros são as vítimas em potencial. Os dados constam do Panorama da Violência Letal e Sexual, contra crianças e adolescentes no Brasil.
No Tocantins, mais de 200 mil pessoas foram às urnas no domingo para eleger os representantes de seu município. Em Araguaína, 51.545 eleitores compareceram aos locais de votação, no mais alto índice de comparecimento. O número representa quase metade dos eleitores regulares do segundo maior colégio eleitoral do Estado. Uma participação maciça da sociedade na escolha dos conselheiros tutelares.
Para se ter uma ideia do nível de participação dos araguainenses neste pleito, todos os conselheiros eleitos tiveram votação acima de 1.000 votos. Outro dado importante e também preocupante é que os 10 conselheiros de Araguaína tiveram mais votos que a maioria dos vereadores eleitos na última eleição.
A jornada cívica do último domingo também revelou algumas preocupações. Enquanto cresce a importância da eleição direta, realizada inclusive com todo o aparato dos Tribunais Regionais Eleitorais e fiscalizada pelo Ministério Público Estadual, cresce também o grande risco de desvirtuamento do seu objetivo. Partidos políticos e as igrejas estão supervalorizando a disputa com objetivos eleitoreiros que nada tem a ver com a defesa dos direitos da crianças e adolescentes.
A grande maioria dos eleitos em Palmas ou foi apoiada por gabinetes políticos ou integram denominações religiosa identificadas com o que se chama de “fundamentalismo religioso”. Nada disso tem a ver com a defesa dos diretos das crianças e adolescentes, mas se trata de uma disputa de poder, motivada por ideologias extremas, que tem crescido no país, como resultado da polarização política em nível nacional.
Esses conselheiros engajados em pautas políticas conservadoras são vistos como ameaça aos avanços das políticas públicas de Direitos Humanos de um modo geral. Falam em defesa da família, mas a um único modelo de família: patriarcal, machista e que se opõe a outros modelos de famílias que não sejam o tradicional. Se dizem representantes do modelo de família deixado por Deus.
No entanto, os números indicam que a família nos moldes tradicional é o pior lugar para crianças e adolescentes. Segundo as denúncias registradas no Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos, em 2015, 48,75% dos casos de violência contra crianças de adolescentes ocorreram na casa da vítima. Em segundo lugar (23,37%), na casa do suspeito.
Ativistas ligados aos direitos das crianças e adolescentes têm observado que os partidos políticos têm tentado exercer forte influência nas eleições. Muitos candidatos são incentivados a concorrer a uma vaga de conselheiro tutelar, em busca de acumular capital político para disputar eleição de vereador. Investida que não tem sido fácil afastar.
Nas grandes e pequenas cidades, os conselheiros tutelares recebem mais votos que muitos vereadores que estão exercendo mandato. Em Palmas, por exemplo, os conselheiros tutelares foram votados por região e teve conselheiro com mais de 1,7 mil votos. Na Câmara de Palmas tem vereador eleito com menos de mil votos.
Essa grande votação muitas vezes tem um preço e ele é político. Não é novidade pra ninguém que muitos entraram na disputa altamente comprometidos com apoio que receberam. São nomes patrocinados por partidos ou líderes políticos com o objetivo de funcionar como puxadores de voto na eleição para vereador. É comum que conselheiros mais bem votados aceitem convite dos partidos para concorrer â Câmara de Vereadores de sua cidade. Agora, já entrar na eleição do Conselho apoiado por gabinete político é um desvio de finalidade.
Nas eleições do último domingo, ficou escancarado a intromissão das igrejas para eleger conselheiros conservadores. Candidatos fizeram campanha aberta defendo não o compromisso com a defesa dos direitos das crianças e adolescentes, principal atribuição do cargo, mas as bandeiras da extrema direita, Deus, pátria e família.
O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, anunciou que a eleição unificada de conselheiros tutelares deve ser aprimorada. Nesse ano, os Tribunais Regionais Eleitorais deram suporte à realização do pleito que foi acompanhada pelo Ministério Público para evitar irregularidades. A eleição foi limpa e transparente e manifestou a vontade do povo, nisso não há dúvida.
O grande problema é que candidatos cada vez mais estão entrando na disputa por uma série de interesses. E isso é preciso que seja dito, pois a grande manifestação de cidadania do domingo pode não passar de mera ilusão. A disputa pelo poder entre visões de mundo que dividem a sociedade pode também dividir a luta na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, ainda que estejam usando o discurso de fortalecê-la.
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