A cor da pele e a luta pela sobrevivência

05 junho 2023 às 19h34

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Raimunda conta a história de uma mulher grávida que chorava na beira do rio. O jacaré que ali morava foi saber do que se tratava. Aos prantos, ela disse que estava sozinha e faminta e que precisava se alimentar para cuidar do filho que ia nascer daqui a 12 luas.
“Vamos fazer um combinado. Eu te dou um peixe todos os dias até o dia que ele nascer, em troca você me dá seu guri”, ofereceu.
Sem opções, ela seguiu em frente com o combinado. Pelas próximas semanas, o jacaré lhe jogava um peixe da beira do rio e fazia questão de lembrar do combinado.
Ao virar as costas, sempre saia cantando. -Guri, Guri, comendo manguari. Ó teté, teté calamundé.
Quando começou a sentir as dores do parto, ela se arrependeu do acordo e começou a pensar num jeito de fugir. Comeu o último peixe, dado pelo bicho e confirmou o pacto. A fera virou-lhe as costas e cantou como sempre. -Guri, Guri, comendo manguari. Ó teté, teté calamundé.
Na madrugada, ela se levantou e buscou ajuda. Ao chegar no pasto, bateu na casa do boi. -Oh amigo boi, estou parindo e preciso de um lugar pra ficar para me esconder do jacaré. Eu prometi meu filho pra que ele me desse de comer, mas não posso dar meu guri pra ele-, dizia batendo à porta.
Ele logo colocou a mulher pra dentro e disse que ajudaria. O jacaré, ao perceber a fuga da buchuda, começou a rugir. -Guri, Guri, comendo manguari. Ó teté, teté calamundé-.
O boi, ao ouvir o chiado, tremeu de medo. Virou-se para a mulher e disse: -Não consigo enfrentar o jacaré, o casco da minha pata está machucada, vai morrer nós dois.
Desesperada, ela se postava a correr e a pedir ajuda na casa de todos os bichos. Primeiro o cavalo, que ao ouvir o rugido da fera, se tremia de medo. Depois, foi à casa da barata, que também não teve coragem.
Até que por último, bateu na casa do grilo. Ao ouvir a história da mulher, convidou-a para entrar e disse que ela poderia ter o filho ali com tranquilidade.
Incrédula com a coragem de um animalzinho daquele, ela perguntou se estava tudo bem mesmo. -Guri, Guri, comendo manguari. Ó teté, teté calamundé-, começou a ecoar pelas janelas e o grilo se levantou. A mulher, apavorada e já abandonada tantas vezes, já se preparava para sair quando o pequeno grilo disse que ia esperar o bicho lá fora.
O animal sentou-se em uma pedra, tirou seu canivete e começou a amolar. “Tchec, tchec, tchec, tchec.
Enquanto isso, o som do jacaré surgia cada vez -Guri, Guri, comendo manguari. Ó teté, teté calamundé-, ecoava cada vez mais próximo. Antes da fera chegar, ele guardou o objeto entre o braço e esperou. Quando chegou, o jacaré logo perguntou: -Tem uma mulher prenha por aí?-.
O grilo afirmou com a cabeça e o jacaré seguiu com a história: -Ela me prometeu o guri se eu lhe desse de comer. Agora que ela fugiu, eu vou comer ela e o menino-, bradava.
-Eu deixo você levar ela e o menino. Mas você tem uma condição-, respondia o bichinho.
-Pois fale de uma vez-.
-Tu vai abrir a boca e fechar os olhos e me deixar dar três pulos dentro da sua boca e três pulos fora. Mas você não pode abrir nem os olhos e nem a boca até eu sair-, oferecia.
O jacaré assentiu com a cabeça e concordou com a proposta. Primeiro cerrou os olhos e lentamente abriu a boca.
O grilinho pulou na boca do bicho uma vez pra dentro e logo caiu fora. – Um-. Uma segunda vez, ele pulou pra dentro e num piscar de olhos, saltou pra fora. – Dois. Na terceira vez, sacou seu canivete pulou pra dentro e rasgou a fera por dentro.
A mulher, o grilo e o guri, se empanturram do bicho e viveram felizes para sempre.
Contexto
Minha avó contava essa e outras histórias quando éramos crianças. Raimunda Noleto é uma mulher nordestina, que mora no Tocantins e canta cantigas e contos e cordéis para os netos. A origem dessa história está no sertão brasileiro. Está encrustada na cultura do norte do país e em alguns países do continente africano. A tradição oral, base da transmissão do conhecimento de milhares de comunidades tradicionais, quilombolas, negras e nordestinas. Tatu e Rosinha, Acorda Maria Bonita, Coco Verde e Melancia são algumas das dezenas de histórias que eu já ouvi ela cantar numa roda com mais de 15 netos.
Num velho mocambo de chão seco e terreno montanhoso, foram criados 19 filhos. A cada parto de mulher, surgia uma nova parteira. A cada filho homem, um novo peão.
Ali, se formou uma defesa da vida em comum. Em nome da sobrevivência acordos desleais são feitos, impossíveis de serem mantidos. Para escapar disso, a opção por vezes é a esperteza. E o grilo que por ser pequeno passa desapercebido e nisso reside sua força. Como falar sobre mulheres negras e sozinhas? Como garantir que elas tenham chances reais de sobrevivência? Como ainda vemos situações desleais sendo perpetuadas dioturnamente e fingimos não olhar? Ou, pior, vemos e aceitamos isso como a lei. “Ah, era o processo. Estava na lei …”.
Recentemente vimos mais um caso de cotas ser questionado na Universidade Federal de Goiás. Existem falhas no processo de defesa do doutorado da professora. Resta saber se é justo que uma mulher negra, cientista e comunicadora perca sua oportunidade de seguir ministrando aulas na academia e seu título por detalhe processual? Argumenta-se que isso não tem relação com a cor da pele. O fato é que a questão racial perpassa tudo e é muito fácil deixar de ver isso e simplesmente “se resignar” com a explicação de que a lei era outra.