Quem deve pagar pelo avanço da Ciência e qual o retorno desse investimento?
15 abril 2024 às 15h27
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José Alexandre Felizola Diniz Filho*
Cada vez mais vivemos em um mundo no qual a ciência, a tecnologia e a inovação guiam praticamente todos os aspectos do nosso dia a dia, embora muitos não percebam isso. Esse conhecimento vem se acumulando há centenas (ou mesmo milhares…) de anos e desde a chamada “revolução científica” que ocorreu na Europa a partir do século XVIII, com Galileu, Newton, Descartes e tantos outros, a ciência passou a fazer parte das preocupações dos países em termos de soberania e associação com o desenvolvimento econômico e social. Isso vem crescendo e se tornou fundamental principalmente a partir de meados do século XX, o que nos leva a uma discussão importante sobre o direcionamento dos esforços em Ciência, Tecnologia e Inovação em um país.
A Ciência surge, em termos gerais (e em um certo sentido idealizado e até mesmo “romântico”) a partir das ideias e da criatividade dos pesquisadores em um nível individual e em pequenos grupos de pesquisa. Partindo da curiosidade por entender a natureza ou a sociedade, novas teorias são propostas, discutidas e avaliadas a partir de novos dados, e com isso a Ciência avança, tanto em termos conceituais e filosóficos pensando em “acúmulo” de conhecimento humano quanto em termos de aplicações tecnológicas levando à solução prática de problemas. A partir dessa concepção mais geral, aparecem duas ideias complementares e importantes. Em primeiro lugar, à medida que o conhecimento avança e as aplicações em todas as áreas do conhecimento se tornam mais complexas, fazer Ciência se torna cada vez mais caro, porque são necessários equipamentos sofisticados e é preciso organizar equipes compostas por muitas pessoas trabalhando, e essas pessoas precisam inclusive ser formadas durante muitos anos (em geral nos programas de graduação e pós-graduação, o que mostra uma forte associação entre educação e ciência, algo muito importante especialmente no Brasil). Então, é preciso fazer enormes investimentos financeiros, o que nos leva ao segundo ponto, que está ligado com a própria economia da sociedade. Ou seja, quem vai pagar por esse avanço do conhecimento científico e qual o “retorno” desse investimento? Quanto uma sociedade está disposta a investir em ciência e quem decide quais são as ideias mais importantes que devem ser apoiadas financeiramente? Por exemplo, que áreas do conhecimento devem ser priorizadas ou que teorias ou modelos merecem ser avaliados a fim de realmente avançar cientificamente e/ou viabilizar aplicações práticas e desenvolvimento social e tecnológico?
A resposta a essas perguntas leva à ideia de que a própria sociedade, por meio dos seus governos (e preferencialmente por políticas de Estado) defina qual é a “agenda” para o desenvolvimento científico e tecnológico do País, o que exige uma discussão ampla e participativa, envolvendo os diversos setores interessados. De fato, teremos, em junho de 2024, a 5ª. Confêrencia Nacional de Ciência & Tecnologa (5ª CNCT&I), organizada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), exatamente com esse objetivo.
A 5ª. CNCTI acontecerá em Brasília nos dias 4, 5 e 6 de junho, quase 15 anos depois da última conferência. O tema subjacente à 5ª. CNCTI é pensar na C&T para que tenhamos um “…Brasil justo, sustentável e desenvolvido”. A partir desse lema geral, foram estabelecidos 4 eixos temáticos:
1) Recuperação, expansão e consolidação do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação;
2) Reindustrialização em novas bases e apoio à inovação nas empresas;
3) Ciência, tecnologia e inovação para programas e projetos estratégicos nacionais;
4) Ciência, tecnologia e inovação para o desenvolvimento social.
Esses quatro eixos temáticos abrem espaço para uma enorme possibilidade de discussões e foram definidos considerando diversas mudanças que aconteceram no Brasil e no mundo nos últimos 10 anos, tanto em termos de mudanças nas expectativas de desenvolvimento sócio-econômico quanto no próprio avanço no conhecimento. Precisamos certamente reconhecer que temos grandes desafios para o futuro, como sociedade, especialmente pensando nas mudanças globais, no clima e na exaustão de recursos naturais, e as enormes consequências disso, que têm desdobramentos em questões políticas, sociais e econômicas. Na verdade, de forma sintética, podemos enxergar nesses temas as duas questões gerais apresentadas anteriormente, ou seja, precisamos pensar na questão do financiamento da ciência e em quais questões são mais importantes em termos de desenvolvimento tecnológico para superar as muitas dificuldades que enfrentamos hoje.
Claro, cada um dos temas apresenta questões mais particulares e seus próprios desafios. Por exemplo, o eixo 1 está focado principalmente na questão da recuperação do sistema, considerando a crise econômica que se instalou no país a partir de 2015, levando a um enorme decaimento do investimento em ciência, tecnologia e educação, bem como as dificuldades encontradas pelo avanço de atitudes anticientíficas e negacionistas nos últimos 4 ou 5 anos. O eixo 2, por sua vez, foca na questão importante da conversão da ciência que é feita nas Universidades e nos centros de pesquisa em inovação para a iniciativa privada, que teria mais condições de efetivamente transformar o conhecimento acadêmico em algo que seja aplicado para a melhoria da sociedade (o que também é o ponto focal do eixo 4). Nesse sentido, é importante que as empresas se envolvam mais no processo de produção do conhecimento, estabelecendo parcerias mais efetivas com as Universidades e/ou estabelecendo seus próprios centros de pesquisa e desenvolvimento e absorvendo os pesquisadores formados nos cursos de pós-graduação nas Universidades. O eixo 3 tem por objetivo estabelecer a agenda “em si”, identificando quais problemas deveriam ser priorizados.
Há muitas outras discussões e reflexões que certamente surgem a partir desses eixos amplos, bem como tentativas de encontrar soluções eficientes para os problemas atuais. Nesse sentido, diferente do que aconteceu nos eventos anteriores, a conferência que ocorrerá em Brasília será uma síntese de uma enorme quantidade de eventos que vêm acontecendo principalmente neste primeiro semestre de 2024, de forma sequencial e hierárquica discutindo uma infinidade de temas. Essas reuniões devem envolver não apenas a comunidade científica e acadêmica, mas outros setores da sociedade, especialmente o Governo e o setor privado/empresarial/produtivo.
Inicialmente, temos as conferências Estaduais e, em seguida, as Regionais, que irão gradualmente agregando geograficamente as questões que serão levadas à Conferência Nacional. Essa estratégia é realmente interessante pois temos, de fato, muitos “brasis”, com realidades sociais e econômicas muito diferentes, isso sem falar nas diferenças de tempo histórico no qual a capacidade de produção científica se instalou em cada região. Assim, temos a possibilidade de identificar problemas e soluções mais locais e mais próximas da realidade dos diferentes setores da sociedade em cada região do País, levando potencialmente a um desenvolvimento mais baseado em soluções locais e à redução de assimetrias (algo que ocorreu também na montagem do plano Nacional de Pós-Graduação, em 2023). É importante destacar que temos também uma enormidade de “conferências livres”, que estão discutindo temas mais específicos que terminam se somando aos esforços de síntese para chegarmos à agenda nacional.
Em Goiás, tivemos a conferência Estadual, organizada pela Secretaria de Estado de C&T, que ocorreu nos dias 21 e 22 de março de 2024, sediada pela PUC-Goiás, em Goiânia. Goiás também vai sediar a Conferência Regional (Centro-Oeste) que irá ocorrer em 29 e 30 de abril, que ocorrerá na UFG. Além disso, temos algumas conferências-livres acontecendo, incluindo um sobre uma conferência-livre sobre “Biotecnologias, Conhecimentos e Práticas aplicadas à recuperação, gestão e conservação da biodiversidade no Cerrado”, que ocorreu no dia 12 de abril. Vários pesquisadores do Estado têm participado dessas e de muitas outras reuniões. Nelas serão abordadas as questões mais gerais do futuro da Ciência no Brasil e no Mundo, envolvendo temas atuais e importantes em qualquer escala” (por exemplo, o avanço da IA ou, no caso brasileiro, a retomada do processo de industrialização com base em desenvolvimento científico e tecnológico). Mas, mais importante, é discutir também a realidade regional, e nesse sentido temos toda a questão do avanço da biotecnologia, bioeconomia e biodiversidade no bioma Cerrado, e nesse sentido o foco tem que ser pensar, claro, em desenvolvimento sustentável e formas socialmente referenciadas de maior inserção das comunidades tradicionais nos sistemas econômicos.
Certamente, há muitos desafios para o futuro e muitos temas para discutir. Sem necessariamente adotar uma posição “cientificista”, precisamos entender que a adoção de políticas públicas e sistemas de regulação justos e que beneficiem a sociedade da forma mais equilibrada possível devem ser baseados em evidências e análises críticas do que temos feito nos últimos anos. Para isso, precisamos continuar investindo na Ciência e reconhecer a contribuição que a comunidade científica e acadêmica, interagindo com todos os demais atores da sociedade, pode dar, de forma organizada, para a resolução dos problemas da atualidade. Será preciso coragem e determinação para tomar muitas decisões estratégicas importantes, sem as quais corremos o risco de “perder o bonde da história”. Vamos torcer para que todo esse esforço e tantas discussões tragam um futuro melhor para todos e que o lema da 5ª. CNCT&I nos ajude, depois de tempos tão difíceis, a ter um “…Brasil justo, sustentável e desenvolvido”.
*José Alexandre Felizola Diniz Filho é professor titular do Departamento de Ecologia, ICB, Universidade Federal de Goiás.