De menino-violonista à protagonista de um movimento
04 novembro 2025 às 11h37

COMPARTILHAR
Com profunda tristeza para a música brasileira, morreu, aos 73 anos, Lô Borges, em Belo Horizonte, após internação prolongada por complicações decorrentes de intoxicação medicamentosa.
Nascido Salomão Borges Filho, em 10 de janeiro de 1952, Lô era o sexto de 11 irmãos. Ainda menino, foi arrastado, quase por acaso, para a cena musical que florescia nas esquinas de Belo Horizonte. Em suas próprias palavras:
“Sentei na escadaria, dei de cara com um carinha tocando violão. Era o Bituca.”

Esse encontro com Milton Nascimento mudaria o curso de sua vida e o da música brasileira. A cidade, a juventude, o violão emprestado e as ideias que fervilhavam no bairro, criaram o terreno fértil onde brotaria esse movimento que mudaria a história da MPB em Minas Gerais. Lô, ainda adolescente, uniu-se a Milton, Beto Guedes, Toninho Horta e outros que transitavam entre o popular e o erudito, o local e o universal.

Quando, em 1972, o álbum duplo Clube da Esquina surgiu assinado por Milton e parceiros, Lô estava na linha de frente: compôs, cantou, tocou. O disco marcou uma inflexão estética com arranjos sofisticados, harmonias ousadas e letras que respiravam lirismo e urgência. Havia ali um espírito de busca, a geografia sonora de Minas, com suas montanhas, suas esquinas e sua intimidade.
No cerne da obra de Lô, está a melodia simples e complexa ao mesmo tempo, e uma harmonia que não cede ao clichê. O violão, as vozes e os arranjos dialogam com a poesia dos parceiros num espírito coletivo que nunca ofuscou o individual. Canções como Um Girassol da Cor do Seu Cabelo, O Trem Azul e Paisagem da Janela tornaram-se hinos e laboratórios de experimentação.Foto 4

No seu primeiro disco solo, o lendário Disco do Tênis, Lô explorou o rock, a psicodelia e o folk, sem abdicar da matriz mineira, nunca provinciana, sempre atenta ao mundo. Depois do auge nos anos 1970, viveu períodos de recolhimento, mas não de estagnação. A maturidade lhe trouxe novos encontros, riscos e registros. Revisitou sua obra e dialogou com os mais jovens, fiel à curiosidade e ao espanto que sempre o moveram.
Mesmo em seus últimos trabalhos, como o álbum lançado em agosto de 2025, foi possível sentir essa inquietação criativa. Lô ainda falava ao presente, e o presente ainda o ouvia.
Mas é impossível falar de Lô Borges apenas como “gênio” ou “ícone”. Havia ali o homem, o menino das esquinas de Santa Tereza, o amigo de criação, o mineiro que cantou o Brasil por dentro. Quando a secretária de Cultura de Belo Horizonte, Eliane Parreiras, o chamou de “perda irreparável”, falava não apenas de repertório, mas de afeto, da presença cultural viva que ele representava.
Este, portanto, não é apenas um obituário: é um convite a revisitar seus discos, tocar suas harmonias e ouvi-lo com os ouvidos de hoje. A garantir que o legado de Lô Borges continue soando nas escolas de música, nas rodas de amigos, nas playlists e nas memórias. Que o violão de Santa Tereza nunca se cale, e que o nome “Lô Borges” siga iluminando nossas paisagens sonoras.
Feche os olhos e imagine o menino de dez anos sentado na escadaria, ouvindo Bituca tocar. Dali até hoje, a música que nasceu continua nos convocando a um lugar de sonho e alvorada. É essa paisagem interior que nos cabe preservar.
Sugiro para audição, uma das músicas mais reveladoras para compreender o universo sonoro e emocional de Lô Borges, “Paisagem da Janela”, parceria com Fernando Brant. Gravada em 1972 no álbum Clube da Esquina, essa canção é uma verdadeira síntese da estética mineira: introspectiva, lírica, cheia de luz difusa e movimento interior.
Fique atento. Logo nos primeiros compassos, o diálogo entre os instrumentos revelam o balanço sereno de quem observa o mundo pela janela. Os acordes abertos, repletos de nonas e décimas, pairam no ar; nada se resolve, tudo respira.
A voz de Lô é tímida e verdadeira, como quem canta para dentro e é nesse recolhimento que a canção se torna universal. Ouvi-la hoje é um gesto de homenagem e um convite à delicadeza, esse lugar que Lô habitou com tanto silêncio e beleza.
Descanse em paz, Lô Borges.
Já é eterna a melodia que você nos deu.
