Cuba se debate — agarrada desesperadamente ao turismo

03 setembro 2025 às 16h45

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A frase soa forte, reconheço. Contudo, ela espelha, cada dia mais, a dura realidade dessa pequena nação caribenha.
Já estive em Cuba algumas vezes. Fui turista em três ocasiões e, numa outra, experimentei a vida cubana mais de perto, hospedado numa casa local, tentando sentir na pele o cotidiano deles, inclusive a desidratação. Mas, para melhor compreensão, permitam-me narrar essa história com um pouco mais de detalhes.
Na minha primeira experiência, fui o turista padrão. Pulseira de identificação, mojito apreciado no terraço, buffet farto no café da manhã. O pacote completo: sol, praias paradisíacas, salsa contagiante e uma pitada de revolução, cuidadosamente empacotada para consumo.
Era uma Cuba artificial, concebida para encantar europeus e, claro, alguns brasileiros como eu. Nas visitas subsequentes, repeti o mesmo roteiro, até que senti a necessidade de vivenciar a ilha em sua essência, sem a máscara turística.
Essa oportunidade surgiu quando fui apresentar um trabalho no Encontro Latino-Americano de Geógrafos. Em vez de optar por um hotel, escolhi hospedar-me numa casa de família. Adeus, buffet, terraço e ar-condicionado. Ali, vislumbrei uma Cuba diferente. A Cuba autêntica. Despojada de artifícios. Uma Cuba de café aguado, filas intermináveis e prateleiras quase vazias. E, apesar de tudo, transbordando sorrisos acolhedores e uma generosidade que resiste a qualquer embargo.
Os dias eram pautados pelo improviso e pela resistência. Acompanhava os donos da casa à feira, enfrentava ônibus superlotados, dividia o pouco que tínhamos. E, mais do que as palavras, o que me tocou foram os silêncios. As conversas em sussurros, os olhares cautelosos, como se pairasse a constante vigilância do partido. E talvez essa vigilância fosse real.
Era um verdadeiro panóptico tropical. Michel Foucault ficaria deveras impressionado. George Orwell, então, nem se fala – era o “1984” com a brisa do mar. E que mar!
Essa Cuba singular me ensinou mais que muitos livros de história. No entanto, para compreendê-la verdadeiramente, faz-se necessário um breve recuo no tempo.
Antes da Revolução, Cuba era, essencialmente, o playground da máfia americana. Cassinos luxuosos, cabarés extravagantes, hotéis imponentes — tudo sob o controle de figuras como Al Capone e Meyer Lansky. O icônico Hotel Nacional funcionava quase como uma filial de Chicago. Fulgencio Batista, o ditador da época, era, por assim dizer, o mestre de cerimônias.
E, entre os proprietários de usinas de açúcar que lucravam com esse cenário, estava o pai de um certo jovem chamado Fidel Castro.
Fidel, o filho do usineiro, decidiu, por sua vez, mudar as regras do jogo. Subiu à Sierra Maestra com um idealista argentino chamado Che Guevara e tomou o poder. Batista fugiu levando malas tão repletas de dinheiro que, dizem, algumas notas de dólar se perderam pelo caminho. Fidel buscou o apoio dos EUA, mas não obteve sucesso. A URSS, então, o acolheu, e Cuba se transformou numa vitrine do socialismo tropical.
Uma vitrine deslumbrante: educação acessível a todos, médicos renomados, atletas olímpicos de destaque, comida garantida na mesa. Tudo generosamente subsidiado por Moscou. O propósito? Demonstrar ao mundo que o socialismo poderia funcionar, ao menos sob o sol do Caribe.
Até que o Muro de Berlim caiu. E, com ele, a própria vitrine se estilhaçou. Cuba se viu, de repente, isolada. Sem petróleo. Sem alimentos. Sem muitas perspectivas de futuro.
Foi nesse momento que a Revolução se viu forçada a reconciliar-se com seu antigo rival: o turismo. Mas não para os cubanos, um turismo voltado para a exportação. Resorts suntuosos, administrados por redes estrangeiras, onde o cidadão cubano comum não tem acesso, nem mesmo para realizar a limpeza das janelas.
E agora, em 2025, essa contradição assume a forma de um espelho distorcido: o K-23, um hotel cinco estrelas e o edifício mais alto da ilha, ergue-se imponente em Havana. São 42 andares de puro luxo, terraço panorâmico, spa relaxante, 526 suítes sofisticadas. Um verdadeiro monumento ao turismo burguês, situado no coração da ilha revolucionária.
No entanto, o verdadeiro drama reside naquilo que permanece invisível aos olhos dos turistas.
Para suprir as necessidades dos hotéis, o governo prioriza o desvio da produção agrícola. O resultado? Abundância de alimentos nos resorts e escassez nos lares cubanos. A fartura turística paradoxalmente gera a penúria doméstica. A ilha necessita desesperadamente de dólares. E, para consegui-los, oferece seus melhores frutos a quem a visita.
Enquanto isso, o cubano comum — aquele que não figura nos folhetos turísticos, permanece na fila.
Na fila do pão, da carne, do gás. Na fila da própria história. Cuba afunda lentamente. Enquanto o turismo, ironicamente, flutua.
*Ycarim Melgaço é professor e escritor. Autor do livro: História das Viagens e do Turismo. Ed. Aleph. SP. Instagram: @ycarim