Aeroporto de Lisboa: Portão do Inferno
16 dezembro 2025 às 13h00

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Ycarim Melgaço
Professor e escritor, autor de “História das Viagens e do Turismo” (entre outros). Instagram: @ycarim
Você desembarca no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, com o corpo exaurido e o moral em modo avião. Espera, ingenuamente, um “bem-vindo” e logo encontra uma fila.
Uma fila, não. Uma via sacra. Daquelas que serpenteiam o saguão, dão voltas sobre si mesmas e arrastam milhares de pessoas em curvas intermináveis. Dependendo do horário e dos voos que chegam juntos, essa travessia pode durar duas, três, quatro horas. Algo difícil de explicar. Fácil de sofrer.
A fila anda pouco e testa tudo: a paciência, o humor e a fé. No final do percurso, você chega a um atendente que não necessariamente estará de bom humor e que carrega nos olhos o cansaço de quem também está preso ali.
O Aeroporto Humberto Delgado não recebe passageiros. Ele os inicia. É um rito de passagem. Um teste de resistência digno de reality show.
Promete acolhimento lusitano, mas entrega caos mediterrâneo temperado com burocracia colonial. O que há ali não é movimento. É desordem organizada. Falta planejamento, falta política pública, falta até um espaço para reclamar da própria fila. O Estado português parece ter terceirizado a gestão da fronteira a São Longuinho: só com milagre o passageiro encontra a saída correta.
Do ponto de vista técnico, o cenário beira o surreal. Lisboa tenta operar como hub europeu com uma única pista, façanha comparável a administrar o trânsito de uma grande cidade com uma rotatória. Funciona até não funcionar. E quando falha, tudo para.
Enquanto isso, a TAP vende o milagre. Treze capitais brasileiras ligadas diretamente a Lisboa, serão quatorze em breve. Uma ponte aérea intensa, lucrativa, vital. A ironia é simples: boa parte da receita da companhia vem justamente dos brasileiros.
Eles sustentam as rotas, enchem os voos, compram as passagens. Dentro da aeronave, o idioma dominante é o português do Brasil.
Ao desembarcar, porém, o clima muda. O sorriso some. Surge o interrogatório. A sensação é de suspeição automática, como se todo brasileiro carregasse uma intenção oculta na mochila. O país que historicamente exportou gente para o mundo inteiro; Alemanha, França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, agora desconfia de quem chega falando sua própria língua.
O Humberto Delgado é o espelho de um país em loop. Portugal parece preso ao velho capitalismo portuário: ganha na passagem, não no destino. Cobra pelo fluxo, mas não entende o movimento. Foi potência quando o mundo andava a vela. Hoje, na era dos jatos, ainda se organiza como quem descarrega especiarias no cais.
Outros países investem em infraestrutura e conectividade. Portugal mantém o improviso como tradição, com uma nostalgia discreta do tempo em que esperar era virtude cristã. Só que turismo e penitência não fazem boa conexão. O mundo acelera. Lisboa freia na pista. Única.
Tudo ali cheira a passado empoeirado: controles rígidos, cabines estreitas, um orgulho curioso por operar no limite. Como se fosse charme vintage. É o capitalismo pré-industrial adaptado à era digital: cobra-se pela travessia, com taxa de atraso incluída.
O quadro se torna mais perverso quando a rigidez burocrática encontra a suspeição migratória. O país que espalhou sua cultura pelos trópicos constrange quem chega falando português, ou melhor, brasileiro.
Um paradoxo quase elegante, se não fosse deprimente. Lisboa vende colonialismo gourmet, mas pratica xenofobia de balcão.
Talvez a estratégia mais sensata para o viajante moderno seja desviar do purgatório. Voar direto para o Porto. Ou para qualquer aeroporto onde o “bem-vindo” não soe como ameaça. Porque há limites para o turismo penitencial.
Portões revelam muito sobre quem os controla. E quando o principal portão de entrada de um país se parece com o Portão do Inferno, a dúvida não é sobre o passageiro. É sobre o país.
Afinal, que nação transforma a chegada num suplício e ainda anuncia isso com o entusiasmo de uma campanha de verão no Algarve?
Aqui é apenas uma crônica. Vamos parar por aqui.
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