A jornada em busca do sabor autêntico no Festival Internacional do Chocolate

23 julho 2025 às 21h13

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Hoje, quero compartilhar algo que me fascina profundamente: o chocolate. Mas não se trata de qualquer chocolate. Refiro-me ao chocolate de qualidade superior. A aventura nos leva à terra de Gabriela, a Ilhéus de Jorge Amado. Foi ali, no sul da Bahia, no Centro de Convenções, que se desenrolou o Chocolat Bahia 2025, o Festival Internacional do Chocolate, entre 17 e 20 de julho.
E acredite, não é uma simples feira. É o maior evento do gênero na América Latina: mais de 300 expositores, 500 marcas, manifestações culturais, espaço para crianças, rodada de negócios com o apoio do SEBRAE, que auxilia pequenos produtores a transformar cacau em arte. Um verdadeiro paraíso para quem aprecia chocolate com seriedade.
Evidentemente, eu estive presente. Afinal, como um aficionado por chocolate poderia faltar?
Logo na entrada, uma constatação: não há lugar para Cacau Show, Kopenhagen ou aqueles “quase chocolates” – Nestlé, Garoto, Twix, Snickers. Essa turma que comercializa açúcar travestido de cacau. A indústria descobriu como nos ludibriar: satura a receita com açúcar, o cérebro experimenta um êxtase momentâneo e confundimos isso com prazer. Vendem nostalgia, infância, afeto… tudo em forma de glicose.
Porém, no festival, o contexto se altera. Ali, o protagonista é o cacau. O fruto. O grão. Os nibs, aqueles pedacinhos torrados e crocantes que vêm diretamente da amêndoa, sem disfarces. É o cacau que impera, sem leite de vaca para amenizar a personalidade, sem baunilha sintética para enganar o paladar.
Iniciei a jornada de degustação: 50%, 70%, até 100% cacau. E cada amostra vinha acompanhada de uma narrativa contada pelo próprio produtor – histórias de origem, de trabalho, de tradição. Era chocolate que revelava sua essência.
E que trajetória possui esse cacau! Antes de se transformar em barra, já era considerado sagrado pelos maias: bebida amarga, densa, utilizada em rituais, oferecida aos deuses e valorizada como moeda. Não continha açúcar, e nem necessitava. Era puro, vigoroso, quase cerimonial.
No entanto, os europeus chegaram. E os europeus, bem… já tinham o paladar adocicado e bem adocicado. Qualquer ingrediente que pudesse receber açúcar se tornava uma celebração. Então, adicionaram açúcar, baunilha, leite de vaca. Pronto. Desconstruíram todo o conceito original e transformaram a bebida sagrada da Mesoamérica em um luxo exótico para salões aristocráticos.
E aqui reside a ironia: o açúcar não apenas suavizou o amargor, como também domesticou o paladar. Tornou-se um vício. Uma barra açucarada é consumida sem perceber, pedaço após pedaço. Já o chocolate autêntico exige uma pausa. Não foi concebido para ser engolido, mas apreciado lentamente.
Curiosamente, só recentemente os europeus começaram a resgatar chocolates com 70%, 80% de cacau, buscando se aproximar da matéria-prima original. Uma tendência que parece inovadora, mas é apenas um retorno discreto ao que os maias já sabiam há séculos.
Outro aspecto crucial que alterou para sempre a maneira como saboreamos o chocolate: a conchagem. Em 1879, um mestre chocolateiro suíço chamado Rodolphe Lindt criou a conche, uma máquina com rolos de granito que agitava a massa de chocolate por horas (às vezes dias), atenuando a acidez, refinando a textura e proporcionando aquele derretimento perfeito na boca. Antes disso, o chocolate era granuloso, pesado, áspero. Com a conchagem, tornou-se sedoso.
Entretanto, sejamos honestos, não adianta aprimorar o chocolate por horas se não houver o outro ingrediente da domesticação: o açúcar. E não qualquer açúcar – o industrializado, branqueado, tentador. Era ele que convertia o chocolate suíço em algo “insaciável”. A conchagem por si só tornava a massa homogênea, mas foi o açúcar que finalizou a perda da rusticidade.
E, naturalmente, o leite de vaca foi incorporado para conceder ainda mais cremosidade. O resultado? Um chocolate feito para ser consumido incessantemente, quase como um café adoçado com três colheres de açúcar – vicia, mas nos faz esquecer o sabor real do grão.

O cacau chegaria à Bahia, em 1746, um francês, que escolheu o Pará como lar, enviou sementes fecundas para o sul do Estado. Desse gesto, floresceu o império do “ouro marrom”, enriquecendo barões, inspirando narrativas e elevando Ilhéus ao posto de capital do cacau – a mesma Ilhéus imortalizada pelas palavras de Jorge Amado.
É no calor do festival que essa saga renasce. Ali, encontrei pequenos produtores, muitos unidos em cooperativas, vindos tanto de Ilhéus quanto da distante Amazônia. Com destreza, abrem os frutos com facões, deixam as sementes fermentarem em caixas de madeira, cobertas por folhas de bananeira, secam-nas ao sol, torram com esmero e refinam num processo que beira a arte coreográfica. O resultado? Um chocolate que transcende a simples comida: é rito, é celebração.
E a artesania não é sinônimo de desleixo, pelo contrário. Cada barra é apresentada em embalagens de beleza singular e identidade marcante, que quase nos impede de rasgá-las. Quase, mas a curiosidade vence.
Saboreei chocolates baianos com a delicadeza histórica de Ilhéus e, logo adiante, barras da Amazônia que ostentavam o sabor puro… de chocolate. Simples assim, sem disfarces. Longe da doçura enjoativa que ilude o paladar.
Contudo, o que verdadeiramente eleva essa experiência é a oportunidade de estar face a face com aqueles que o criam. Ali, não se interage com a frieza de uma vitrine de marca famosa. Conversa-se com quem cultiva o cacaueiro, colhe o fruto, fermenta, torra e refina. Muitos são pequenos agricultores, cooperados, camponeses do sul da Bahia e ribeirinhos da Amazônia – para quem o cacau não é meramente um produto, mas sim a essência da sua sobrevivência.

Estar na companhia dessas pessoas é compreender que o chocolate vai além do sabor. É cultura. É história viva. É um Brasil profundo, muitas vezes desconhecido, que persiste, discreto, à margem dos holofotes.
Deixei o festival carregado de barras artesanais, com o aroma do cacau fresco impregnado nas roupas e com a sensação de ter descoberto algo precioso, como uma pepita de ouro. Uma vivência incomparável a abrir uma barra industrializada.
E se a curiosidade o picou, vá. Mas vá por sua própria conta e risco. Pois, ao adentrar este universo, contemplará aquele “chocolate” de supermercado e sorrirá sozinho. Não com amargura, mas com ironia. E se questionará: “Como pude acreditar nisso por tanto tempo?”
*Ycarim Melgaço é professor e escritor. Autor do livro: História das Viagens e do Turismo. Ed. Aleph. SP