Um James Bond real – seiscentos anos atrás
19 janeiro 2020 às 00h00
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Localizada no sopé da Serra da Estrela, a cidade abriga ruínas milenares, produção da melhor lã portuguesa e nomes marcantes na história
Os portugueses não usam o substantivo masculino lugar para se referir a um ponto geográfico qualquer. Usam a palavra sítio. Por isso, afirmo, ou melhor, reafirmo o que já foi dito nesta coluna: não há sitio, aqui em Portugal, que não guarde seu pedaço de história. Ainda que seja uma cidadezinha como essa onde me encontro.
Covilhã – no sopé da Serra da Estrela, serra na qual está o ponto mais alto de Portugal Continental – 2.000 metros – e a única estação de esportes de inverno do país. Cidadezinha, sim, com apenas trinta e tantos mil habitantes, a despeito de uma tradição milenar na cria de ovinos e caprinos e na produção da melhor lã portuguesa. E ainda dos queijos mais famosos mundo afora, de fazer inveja a qualquer mineiro que se preze.
Sim, Covilhã, a antiga fortaleza romana Cava Juliana, tem nas muralhas que ainda encontramos em seu interior pedras datadas do ano 1.004. D. Sancho I, o segundo rei de Portugal, conhecido como “O Povoador” deu a ela o foro de vila, em 1.186. Por falta de tempo, então, é que não há de lhe faltar história. E não falta, pois entre os naturais de Covilhã há muitos nomes marcantes não só na história, mas na literatura e nas artes portuguesas, e em alguns pontos esses nomes estão mesmo mesclados à história brasileira.
Vamos relacionar alguns: O trovador João Roiz de Castel-Branco (século XV) é dos mais famosos da poesia portuguesa antiga. Abaixo, transcreve-se sua cantiga quinhentista “Partindo-se”. O jesuíta Francisco Álvares (1539-1564) foi enviado ao Brasil, com a missão de catequizar os índios. Sua nau foi interceptada por piratas nas ilhas Canárias, e ele foi, juntamente com toda a tripulação, passado a fio de espada.
Foi beatificado como mártir pelo papa Pio IX, em 1854. Heitor Pinto -ou Frei Heitor da Covilhã – (1528-1584), foi um dos maiores literatos religiosos (e teólogos) de Portugal. Os irmãos covilhanenses Rui e Francisco Faleiro ficaram conhecidos como dois dos mais famosos cosmógrafos do fim do século XV, e além disso, Rui foi o primeiro estudioso da navegação a pesquisar o uso prático do magnetismo terrestre, isto é, foi o pré-inventor da “agulha de marear” ou seja, da bússola.
Outro ilustre de Covilhã foi Mateus Fernandes (? – 1515), chamado “Primeiro Arquiteto da Europa”, um dos construtores do mais expressivo monumento nacional português – O mosteiro de Santa Maria da Vitória, em memória da vitória portuguesa em Aljubarrota (por isso chamado também mosteiro da Batalha). João Ramalho (1493-1580), aventureiro português casado com uma princesa índia brasileira, Bartira, filha do cacique tupiniquim Tibiriçá, era de Covilhã. Foi ele quem evitou o choque dos marujos de Martim Afonso de Souza com os índios, em sua chegada à Baia de Todos os Santos.
Outro covilhanense de fama foi o pintor e escultor Eduardo Malta, medalha de ouro na Exposição Internacional de Paris de 1937. Pintou retratos de muitos famosos, como Salazar, Cardeal Cerejeiras e nosso presidente Getúlio Vargas. Mas o filho maior dessa pequena cidade foi Pêro – Pêro da Covilhã (1450? -1530?), tanto que o centro histórico da cidade ostenta sua estátua.
Partindo-se
(Cantiga do trovador João Roiz de Castel-Branco-século XV)
Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d’ esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém
Para medir a importância desse português famoso, basta dizer que sem Pêro da Covilhã não existiria Vasco da Gama. E embora a história o trate como navegador ou como embaixador, foi na verdade um espião do rei D. João II, o maior espião português, um James Bond real, de seis séculos atrás.
Os registros mostram-no como alguém bastante ativo e inteligente desde a juventude. Trabalhando em um lanifício de Covilhã, impressionou um nobre espanhol, D. Juan de Guzmán, que comercializava tecidos, e que o levou para Sevilha. Tinha 18 anos. Aos 24, acompanhou o fidalgo a Portugal, numa visita ao rei D. Afonso V. Surpreso com a desenvoltura e a facilidade com Pêro dominava várias línguas, o monarca não permitiu que retornasse à Espanha. Fez dele escudeiro e constante companheiro de viagens.
Sucede D. João II a D. Afonso V, em 1481, e este não abre mão dos serviços do sagaz e disposto Pêro da Covilhã. D. João II, o “Príncipe Perfeito”, era entusiasta dos descobrimentos, e tinha fixação em descobrir o “Caminho Marítimo para as Índias”. Patrocinou as viagens de Diogo Cão e de Fernão de Magalhães. Ansiava por um contato com o mítico “Preste João”, lendário soberano de um reino cristão riquíssimo com que interessava a Portugal manter relações comerciais.
Pêro se casa com uma dama da corte, D. Catarina e desempenha várias funções diplomáticas para o rei. Até que recebe deste, em1487 (na Europa de então, ter 37 anos era ser maduro) a missão de sua vida: colher todas as informações possíveis sobre o acesso às Índias, se possível com o concurso do Preste João. D. João II designa um companheiro de jornada para Pêro: Afonso Paiva, outro escudeiro do rei, que também falava árabe.
Como a missão era secreta, e muito perigosa, os portugueses vão viajar com o disfarce de mercadores, após lições dos cartógrafos da corte. A viagem que fizeram seria épica, até para os dias de hoje: de Santarém a Valencia e daí a Barcelona, por terra; por barco até Nápoles e depois até a ilha grega de Rhodes e daí a Alexandria. Novamente por terra, margeiam o Mar Vermelho juntamente com uma caravana de beduínos, passando por Suez, Medina e Meca, até chegar a Adem, já em 1488. Separam-se, combinando um encontro para daí a três anos, no Cairo.
Afonso Paiva vai em busca do Preste João, que é apenas o negus da Abissínia (ou Etiópia), um país pobre, ao contrário da lenda. Pêro busca a Índia. Chega a Calicute no fim de 1488. Percorre parte da costa indiana (vai a Goa, futura colônia portuguesa) e informa-se sobre o Ceilão e suas especiarias. Um ano depois embarca para a África (Moçambique e Sofala, entre outros entrepostos mouros na África). Sabe agora que para atingir as Índias das especiarias basta dobrar o cabo das Tormentas, atingir Sofala e chegar a Calicute.
O que ele não sabe é que nessa mesma época Bartolomeu Dias está dobrando o cabo das Tormentas. Está traçado o caminho marítimo para as Índias. Mas a informação ainda não chegou à coroa portuguesa. Pêro chega ao encontro no Cairo, combinado com Afonso Paiva, em Janeiro de 1491, mas Afonso não aparece. Nem poderia, pois havia morrido de peste, um mês antes, sem deixar notícias do Preste João. Mas em seu lugar estavam o rabino da Beja, Abraão e José de Lamego, um judeu português próximo à corte.
Pêro fica sabendo do nascimento de seu filho Afonso, em Portugal, que nunca conhecerá. Fica sabendo da proeza de Bartolomeu Dias. Mas acha que sua tarefa está incompleta. Falta o Preste João. Faz um relatório ao rei, levado por José do Lamego, que será fundamental para a viagem de Vasco da Gama, seis anos depois. Segue para a Etiópia, terra de Preste João, onde reina agora seu neto Alexandre, que o recebe com honrarias, dá-lhe terras, mas como era costume em alguns lugares de então, nunca lhe permite o regresso a Portugal. É um Pêro da Covilhã rico, casado com uma etíope, cheio de filhos, que morre por volta de 1530. Possivelmente, o espião mais bem sucedido da história.