Se em Portugal há literatura esplêndida sobre fatos históricos, no Brasil poucos escritores escreveram sobre a Guerra do Paraguai

Alexandre Herculano, Henrique Lopes de Mendonça e Júlio Dantas: os três escritores trabalharam à perfeição a respeito dos fatos de Portugal; seus livros são extraordinários relatos históricos ficcionalizados | Fotos: Divulgação

A literatura histórica lusa produziu em um século (de meados do século 19 até meados do século 20) material para entender razoavelmente bem o extraordinário nascimento e crescimento do Império Português. E também seu declínio, percalços e acomodação até o final da Segunda Guerra Mundial. Três expoentes surgem nas lombadas dos melhores livros escritos no gênero e na época, lá por aquelas bandas: Alexandre Herculano (1810-1877), Henrique Lopes de Mendonça (1856-1931) e Júlio Dantas (1876-1962). Não desfazendo de outros (Eça de Queiroz, Antero de Figueiredo, Almeida Garret, D. João de Castro), naqueles três o leitor vai encontrar o suficiente em lições e divertimento para entender o Portugal antigo, ainda que busque apenas lições ou só divertimento. Para quem estiver com muita curiosidade e com pouco tempo, três livros — um de cada autor — já desenham, no conjunto, um panorama bastante compreensível da história de nossos avós lusitanos: “Lendas e Narrativas” (de Herculano), “Argueiros e Cavaleiros” (de Mendonça) e “Pátria Portuguesa” (de Dantas).

Abrindo um parênteses, faltam-nos narradores históricos. Fato é que temos, em presença de Portugal, pouca história vivida, mas mesmo nossa pouca história carece de quem bem a conte. A epopeia de Canudos, narrada por Euclides da Cunha em “Os Sertões”, é a grande, honrosa exceção. Nossa grande guerra, a do Paraguai, só tem, de fato, uma narrativa à altura, mas de apenas um episódio: “A Retirada da Laguna”, de Taunay. Quem escreveu um bom relato, mas nem por isso um grande livro, sobre a guerra que envolveu Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai não foi um escritor de algum destes países, mas dois italianos, Boris e Canconi, em “O Napoleão do Prata”. A riquíssima saga do sul brasileiro ficou sem contar, ou foi contada de maneira esparsa e incompleta por uns poucos escritores como J. Simões Lopes Neto, Erico Verissimo e Vianna Moog. Voltemos a Portugal.

Uma curiosidade: Alexandre Herculano (em “Lendas e Narrativas”) e Júlio Dantas (em “Pátria Portuguesa”) contam uma mesma história, passada no nascimento de Portugal como nação, lá pelos anos de 1138 a 1140. Há pequenas discrepâncias, entre as duas redações, mas o fato é fundamentalmente o mesmo. Há quem diga não se tratar de fato, mas de lenda, mas há indícios de que seja verdadeiro, apesar da quase total ausência de registros, à época.

Vamos lá: reunidos no castelo de Coimbra, o conde D. Afonso Henriques e seus mais fiéis homens de armas discutiam os últimos acontecimentos. Esses cavaleiros eram: Lourenço Viegas, conhecido como o Espadeiro, Gonçalo Roiz, o Braganção, e Gonçalo Mendes Maia, o Lidador. Os acontecimentos eram políticos e religiosos. Acontecimentos políticos: D. Afonso havia derrotado anos antes a mãe e o padrasto na batalha de São Mamede, e deles tomado o condado, que pretendia separar da Espanha e formar um reino. Já havia, na prática, feito isso. Tanto assim que Espadeiro, Braganção e Lidador o tratavam por rei. Além disso, derrotara recentemente os mouros na batalha de Ourique, e alargara seus domínios. A mãe, D. Tereza de Leão, fora confinada no castelo de Lanhoso, onde morrera recentemente.

Acontecimentos religiosos: D. Afonso Henriques havia se indisposto com o bispo de Coimbra, o havia deposto e ungido bispo um padre de sua escolha, o padre Soleima, um mouro convertido, apossando-se de uma prerrogativa papal. Haviam chegado informações de que o Papa, inconformado, enviara um cardeal para censurar D. Afonso Henriques por ter prendido a mãe e obrigá-lo a aceitar a volta do antigo bispo, sob pena de ser declarado herege e ver lançada a excomunhão sobre si e a maldição papal sobre a terra portuguesa. D. Afonso Henriques, cujo caráter belicoso e arrojado era sobejamente conhecido, aguardava impaciente o confronto com o legado do Papa.

E o povo português, apavorado, supersticioso, julgava que a maldição papal redundaria na perda das colheitas e nas epidemias de peste. As manifestações populares tinham um efeito adicional sobre a fácil irritação de D. Afonso Henriques. Não tardaram muitos dias até que um clérigo do vizinho mosteiro de Santa Cruz trouxesse um recado a D. Afonso: o prior do mosteiro avisava que era seu hóspede o cardeal vindo de Roma, e aguardava a visita do “rei” para lhe beijar a mão, como haviam feito, pelo caminho, todos os reis da Espanha. A resposta, segundo Júlio Dantas: “Ide à casta de Santa Cruz e dizei ao dom prior que não há tão honrado cardeal em Roma que me estenda a mão para lha beijar, que eu não lha corte pelo côvado!” Ou, segundo Herculano: “Não sei eu se haveria aí cardeal ou apostólico que me estendesse a mão para eu lha beijar, que pelo cotovelo não lha cortasse fora minha boa espada!”

O cardeal, ainda que amedrontado, teria ido até o castelo de Coimbra, se avistar com D. Afonso Henriques e cumprir sua missão. Ouvido por D. Afonso Henriques já colérico, soubera deste que o dever do Papa era enviar riquezas para Portugal, que era pobre, ao contrário de Roma, e muito gastava para expulsar os mouros, dar terras à cristandade e construir igrejas. Que herege não era, e rasgando a camisa, mostrava ao cardeal as cicatrizes obtidas nos combates contra a mourama. E gritava, enquanto o cardeal, apressado, já tomava o caminho do mosteiro de Santa Cruz: – Herege sou eu, D. cardeal?

Pela madrugada, Afonso Hen­riques foi despertado por um serviçal, com um punhado de notícias ruins: o cardeal havia lançado sobre ele a excomunhão, e sobre Portugal a maldição do Papa. Havia partido de volta, com seu sobrinho, que lhe fazia companhia desde Roma, levando consigo muitas bestas de carga, carregadas com as dádivas que colhera em Portugal, na viagem. O populacho, desesperado com a ameaça da fome e da peste, enchia as igrejas e capelas, implorava misericórdia a todos os padres que encontrava e protestava nas portas dos castelos dos fidalgos.

Poucos minutos depois, D. Afonso Henriques estava a cavalo, armado e seguido pelo Espadeiro e pelo Braganção, na trilha do cardeal, que foi alcançado algumas léguas à frente. Desapeado de sua mula, o cardeal tremia, ainda mais que tinha a adaga de Afonso Henriques encostada na garganta. O sobrinho adolescente chorava, e populares chegavam, observando mudos a cena. Vieram então as exigências do rei, imediatamente cumpridas. Se não o fizesse, perdia a cabeça o cardeal, e também o sobrinho: que o bispo se paramentasse. Que retirasse a excomunhão sobre ele e a maldição sobre Portugal. O que o cardeal, ainda que tremendo, fez com toda a solenidade, apressando-se, ao término, a tirar as vestes cardinalícias, montar em sua mula e prosseguir viagem.

Mas Afonso Henriques ainda não terminara. Arrancando de sua mula o jovem sobrinho do cardeal, atirou-o para as mãos do Braganção, e disse ao tio que ele ali ficava como garantia. Se dentro de um ano não recebesse do Papa uma bula com o compromisso de jamais amaldiçoar Portugal, o sobrinho ficaria sem a cabeça. Que partisse, mas as mulas com oferendas ficariam com Portugal que era pobre, e não tinha que oferecer riquezas a Roma, que as tinha de sobra. “E ide dizer ao Papa como sou herege!”, ordenou D. Afonso Henriques.

Poucos meses depois, chegava a bula papal pedida.

Pouco diferem as duas narrativas, uma por Alexandre Herculano, outra por Júlio Dantas. Os detalhes são mínimos. Por exemplo, Dantas fala em um sobrinho do cardeal, tomado como refém, enquanto Herculano reporta que são dois. Herculano acrescenta mais um fidalgo à trinca de amigos do rei: Gonçalo Souza, o Bom. Dantas fala que o cardeal saiu de Roma, e Herculano que se tratava de um bispo mandado da Espanha pelo Papa, com a missão. Por Júlio Dantas, o cardeal era hóspede do mosteiro da Santa Cruz, em Coimbra. Por Herculano, do mosteiro de Tibães, em Braga. Herculano menciona que talvez se trate de uma lenda, mas Dantas não faz esse reparo. E antigos cronistas, como os portugueses Ruy de Pina e Cristóvão Rodrigues Acenheiro, bem como o inglês Roger de Hoveden, fazem alusão a acontecidos semelhantes aos relatos romanceados de Alexandre Herculano e Júlio Dantas. Se non è vero…

Alexandre Herculano, Henrique Lopes de Mendonça e Júlio Dantas: os três escritores trabalharam à perfeição a respeito dos fatos de Portugal; seus livros são extraordinários relatos históricos ficcionalizados