Os experimentos feitos com crianças pelo ditador chocaram o mundo. Quando a ditadura caiu, ele foi fuzilado

Crianças romenas em orfanato | Foto: Reprodução

Por muitas razões que não interessa discutir no momento, temos no Brasil pouca informação sobre o que se passa nas partes mais distantes do Globo. E mesmo essa pouca informação, pelas mesmas razões aqui não discutidas, chega muitas vezes até nós distorcida ou incompleta. Um exemplo está no ocorrido na Romênia, quando caiu o regime comunista de Nicolae Ceauşescu (1918-1989), em dezembro de 1989. Poucos brasileiros sabem que foi o único dirigente comunista europeu que caiu de forma violenta, após uma revolta popular a que as forças armadas acabaram por aderir, e que terminou não só com o fuzilamento do ditador, mas também de sua mulher, Elena.

Os excessos ditatoriais de Ceauşescu, que determinaram seu fim, não eram conhecidos em toda sua extensão. Governava a Romênia desde 1965, apoiado por uma polícia política obediente e violenta — a Securitate — e reprimia sem piedade qualquer manifestação de dissidência. O país era um dos mais fechados da Europa. A dissidência crescia, contudo, pois a despeito de ser o país rico em minérios (petróleo, ouro, prata, sal e etc.) e dotado de terras férteis e produtivas (milho, trigo, vinhas), as dificuldades só cresciam, pela ineficiência natural da concepção econômica marxista e pela administração míope do próprio ditador e seus auxiliares. Era um país rico, com apreciável tradição cultural, mas cujo povo era reprimido e passava por inúmeras dificuldades e privações, inclusive a fome.

Nicolae Ceausescu: longevo ditador da Romênia | Foto: Reprodução

A queda do regime pôs a descoberto a série de equívocos econômicos e sociais cometidos durante sua permanência, como de resto poder-se-ia observar nos outros regimes marxistas que desmoronavam por toda a Europa no início dos anos 1990.

Mas na Romênia, houve a descoberta de um equívoco particularmente monstruoso, e de consequências as mais trágicas. Atingiu comprovadamente cerca de 170.000 crianças, embora o número certo seja bem maior, podendo se aproximar de meio milhão. A “Gazeta do Povo”, no Brasil, ao que sabemos, foi o único jornal a fazer uma reportagem a respeito.

Expliquemos a experiência marxista de engenharia social, imaginada por Ceauşescu: em 1966, o ditador, julgando que a população romena era pequena (23 milhões), resolveu que ela deveria crescer, e atingir 30 milhões no prazo de aproximadamente 30 anos. Baixou o Decreto 770, que entre outras medidas proibia o aborto, os anticoncepcionais de qualquer tipo, estimulava a geração de pelo menos cinco filhos pelos casais (a mãe que tivesse dez filhos recebia um título de “mãe heroína da Romênia”).

Crianças romenas vítimas dos experimentos de uma ditadura comunista | Foto: Reprodução

Com essas medidas, a taxa de fertilidade no país dobrou em dois anos, embora, caísse logo depois, pois os casais, num país empobrecido e racionado, viam que era insano gerar um filho que não podiam sequer alimentar bem. Em 1977, Ceauşescu reagiu, criando na Securitate uma secção policial para investigar as mulheres. Essa polícia, que a verve popular chamava “Polícia da Menstruação”, verificava se as mulheres não estavam usando anticoncepcionais, se estavam evitando o sexo ou fazendo uso de algum método abortivo. Casais sem filhos pagavam uma multa ao Estado.

Dois resultados imediatos da política de Ceausescu, além do aumento de nascimentos (as crianças eram chamadas de “decretinhos”, em referência ao Decreto 770): cerca de dez mil mulheres (ou mais) morreram por abortos clandestinos e a taxa de mortalidade infantil cresceu para oito vezes a taxa média do restante da Europa. Mas o pior (muito pior) ainda estava por vir.

Com as dificuldades se agravando, a carência de alimentos crescendo, a repressão aumentando, crescia também o número de órfãos, de crianças abandonadas e de bebês entregues às creches do governo. Isso permitiu que Ceauşescu desse início a seu trágico e sinistro experimento de engenharia social: os funcionários das creches eram orientados para serem distantes no trato com as crianças: os menores, se chorassem, deveriam ser deixados chorando até que mais não pudessem, para se acostumarem a não receber atenção que não aquelas das horas certas; aos maiores, estavam proibidos abraços, toques, afagos ou qualquer “manifestação familiar burguesa”. Roupas, cortes de cabelo e berços deveriam ser absolutamente iguais, pois, no catecismo marxista, a individualidade é um pecado. Algum tipo de trabalho era imposto aos que pudessem com ele.

Grupo de crianças num orfanato da Romênia | Foto: Reprodução

Soube-se que uma das pretensões do ditador era começar nessas creches a formar forças policiais totalmente obedientes ao Estado e ligados seus elementos não por sentimentos como o da camaradagem ou o da solidariedade, mas o da disciplina e o da uniformidade de comportamento. Imagine, se puder o leitor, o sofrimento desses pequeninos. Quando Ceauşescu foi derrubado, haviam na Romênia 700 dessas creches, que abrigavam (melhor dizer aprisionavam) 170.000 crianças desvalidas. Soube-se então das bestialidades cometidas: abandono, fome, sevicias, abusos (sexuais, muitas vezes). Em muitas creches não havia água corrente ou eletricidade regular. Em outras, o aquecimento era deficiente. Outro triste fato: muitas crianças foram encontradas amarradas em suas camas, em meio a dejetos, por serem mais agitadas que as outras.

O novo governo preocupou-se com o problema. Buscou ajuda junto em setores mais adiantados no estudo do trauma infantil, nos países mais desenvolvidos, enquanto tentava adoções na própria Romênia, onde isso era bastante difícil. Afinal, tratava-se de um país devastado.

O fuzilamento de Elena e Nicolau Ceausescu, na Romênia, em 1989 | Foto: Reprodução

Temos relatos de dois cientistas e professores universitários americanos que atenderam o governo romeno no assistir essas crianças. Estarrecidos com o que viram, estenderam esses estudos e acompanharam muitas dessas crianças ao longo dos anos. Pelo menos, seus sofrimentos serviram de base para o estudo do desenvolvimento cognitivo infantil.

O professor Charles A. Nelson III, da Universidade de Harvard, e que já fez trabalhos no Brasil, relata a situação das crianças romenas que estudou: “Haviam problemas cognitivos, emocionais, de saúde mental. O cérebro daquelas crianças era menor”. Em um dos orfanatos, onde as crianças eram maiores, ficou abismado pela maneira com que o agarravam, em busca de um gesto de amizade, um afago, um contato amigável, qualquer que fosse.

Outro cientista americano que participou da assistência ao governo romeno foi o professor Nathan Fox, da Universidade de Maryland. Ele conta de seu estarrecimento ao entrar no berçário de uma dessas creches e verificar algo que nunca tinha encontrado nos berçários que conhecera em sua vida profissional: “Era assustador o silêncio! Eles não choravam!”. Aquelas crianças haviam experimentado a falta de estímulos por meses, não tinham respostas aos choros e não eram mais crianças cerebralmente comuns.

Muitas das crianças acabaram por serem adotadas nos EUA ou em países europeus, pelos esforços do governo e dos estudiosos estrangeiros chamados por ele. Os estudos de Nathan Fox e de Charles Nelson continuam até hoje. Mas é incalculável o dano causado àquelas crianças, hoje adultos. Poucos serão pessoas normais. Seu sofrimento serve ainda hoje para as conclusões que vão fazendo os acadêmicos americanos. Uma delas é a de que, nos seis primeiros anos de vida, anos mais importantes do desenvolvimento cerebral cognitivo, as adversidades são irremediavelmente traumáticas. As interações, os estímulos, os contatos, os olhares, as brincadeiras, o afeto, enfim, são da maior importância para o aprendizado, o conhecimento e o equilíbrio na escola, no trabalho e na futura vida social. Essa, uma das lições que nos deixam os sofridos “decretinhos”, vítimas inocentes do delírio marxista de um ditador. O “progressista” Nicolae Ceauşescu.