Calado no fundo de cada um de nós, ainda que não saibamos, existe um chamado da selva. Nem o mais empedernido citadino, daqueles que nunca viu ao vivo uma galinha ou uma vaca, deixa de se sentir tocado num contato com a natureza, seja no apreciar a placidez de uma mata, de um lago ou de um relvado, seja no ouvir o canto da passarada, sentir a fragrância de uma florada ou mergulhar no silêncio das extensões silvestres.

É o grito do atávico que desperta em cada um, é a voz dos ancestrais chamando. Vivi minha meninice em uma Goiânia nascente, então mais uma grande fazenda que uma cidade, onde as primeiras casas se entremeavam com as áreas de cerrado, quintais terminavam onde começava uma mata, perdizes piavam ao entardecer e canários-da-terra nos despertavam pelas manhãs.

Carrego, pois, enorme nostalgia daqueles tempos, o que amplia o apelo selvagem que tenho amortecido dentro do peito. Nostalgia da época em que, onde hoje o asfalto cobre o chão, ia pela mão de meu pai buscar gabirobas ou cajuzinhos do campo, e ainda posso ouvir sua voz grave, avisando para a atenção e mostrando que as frutinhas também atraíam os pequenos roedores, no rastro dos quais poderia vir uma cascavel ou ainda mais terrível, porque ágil, e sem o aviso de um chocalho, uma jaracuçu.

Mudei-me há alguns anos para um condomínio fechado da periferia de Goiânia, que tem boas reservas de matas preservadas.

Há muito morava nas proximidades ruidosas do Centro de Goiânia, embora nunca tenha, de todo, deixado de atender ao apelo das matas.

Sinto-me revigorado com alguns dias longe das metrópoles, e não costumava deixar passar uma oportunidade de reabastecer-me desses fluidos imperceptíveis na essência, mas benéficos no resultado.

Pois bem: essa mudança aplacou, ainda que só um pouco, meu desejo de atender ao chamado das matas. Uma fauna variada vaga pelas reservas da vizinhança e se aventura pelos terrenos vazios, que são muitos, entre as casas e jardins do condomínio.

Não raro, paro meu carro para dar passagem a um bando de capivaras que vai se refrescar num dos lagos próximos de minha casa.

As emas — que compõem um enorme bando — já se acham donas das avenidas e não se constrangem em nos fazer parar, enquanto, sem se apressar, terminam a travessia de uma pista de asfalto. Vão, sem cerimônia, aos nossos jardins, em busca das acerolas e outras frutas.

Macacos furtam frutas na feira semanal que acontece em frente ao condomínio. Quatis perambulam pelas reservas, dão seus passeios entre as casas e ai do cãozinho de madame que se meter com eles. Um meu vizinho pagou caro a um veterinário para costurar, em uma dezena de lugares, as mordidas com que brindaram seu dachshund (ou cofap) de estimação, metido a valente.

Minha mulher, em uma de suas caminhadas matinais, no frio de junho, assustou-se ao passar por uma caixa de lixo do condomínio, cuja tampa se abria sozinha. Mas de lá não saiu um assaltante; saiu meia dúzia — ou mais — de quatis, que certamente encontraram aquele abrigo para passar a noite, aquecendo-se uns aos outros.

Já vi raposas no cair da tarde, rondando vizinhos que criam suas galinhas. Tenho minhas visitas, eu também, e sou muito cioso delas.

A mais conspícua é a de um bando de periquitos. Andam aí pelos quarenta ou cinquenta, e aparece o bando todo, pontualmente, às seis da manhã e às seis da tarde. Explico essa constância diária: aprendi a tê-los por perto com um de nossos governos. Disponibilizei, para eles, uma bolsa família de sementes de girassol, alpiste e bananas. Pimba! Ficaram meus cativos, me brindando ao despertar e ao chegar do trabalho, com sua alegre algaravia e seu festival patriótico de cores verde e amarelo.

No seu convívio coletivo (não se pode distinguir nenhum deles, no bando, e são ineficazes e descuidados, como todo bom socialista, derrubando boa parte das sementes), fazem alegria em minha casa.

A par deles, recebo a visita diária de um bando de rolinhas e canarinhos, ávidos por alpiste. Tenho vários outros comensais, porém mais burgueses. São dotados de forte personalidade, e dela não abrem mão.

Apresento quatro deles aos leitores. Como personagens que são, têm nomes, ao contrário dos periquitos proletários (ou campesinos — sei lá) e rolinhas idem.

São eles: Fiódor, o gambá, Epaminondas, o tiú (ou teiú), Sarita, a saracura, e Ernestinho, o canário.

Fiódor, o gambá

Fiódor, como diria Camões, veio não sei como, apareceu de não sei onde. O fato é que não tem exatamente os hábitos noturnos dos da sua espécie. Prefere jantar com o dia ainda claro, quando nem dá para acender velas. Compareceu, na primeira vez, ao refeitório dos periquitos e se apossou de uma manga ali deixada por mim. Não se assustou com minha presença ali pertinho.

Sabedor de sua fama de papa-ovos, cuidei de oferecer no outro dia e no mesmo local de seu jantar de véspera, um belo ovo de galinha. Fiódor veio naquela tarde (como de resto tem aparecido nas seguintes), mas desprezou solenemente o ovo ofertado e atacou outra manga, que subtraiu aos periquitos.

Para bom entendedor, basta meio vocábulo. Processei seu recado e deixo todos os dias sua ração de manga, que ele jamais dispensou. Personalíssimo, o Fiódor.

Epaminondas, o tiú

Epaminondas, o tiú, apareceu certo dia na garagem, e apavorou a moça que trabalha lá em casa, que “nunca tinha visto um bicho daqueles”. Foi preciso acalmá-la e afiançar que ele não pegava ninguém.

Epaminondas faz suas aparições esporádicas, e não faz jus à fama de assaltante de ninhos e devorador de ovos que têm seus parentes caipiras. Aprecia imenso as acerolas, mas gosta mesmo é de amoras. Fica praticamente em pé para colher as mais baixas do pé que tenho no quintal.

Gente boa, o Epaminondas, que faz suas aparições, e, salvo o susto na empregada, não incomoda ninguém.

Sarita, a saracura

Sarita, a saracura, é um espetáculo à parte. Faz, no amanhecer ou no final do dia, suas caminhadas pelos jardins e quintais de minha quadra.

Embora tenha o hábito pequeno burguês de não gostar de muita proximidade do gênero humano — não podemos condená-la por isso — não se incomoda conosco se guardada certa distância: meia dúzia de metros, por aí.

Gosta dos mesmos grãos que os periquitos, e às vezes sobe ao seu (deles) comedouro para garantir sua ração.

Como não vem todos os dias, não tive como dar a ela uma bolsa família. Conservadora, não deve aceitar, estou seguro.

Sarita é bastante cuidadosa com a aparência e a higiene, outro hábito pequeno-burguês que cultiva. Seus banhos, sempre no mesmo cantinho de minha piscina, duram cerca de 20 minutos, ocasião em que espalha água na direção dos quatro pontos cardeais, e dos colaterais também.

Pudica, não admite a proximidade das rolinhas, que têm a piscina como seu bebedouro particular, e as afugenta a bicadas, para que não violem a intimidade de seu banho. Findo o qual, e gostamos, minha mulher e eu de observá-la, se dedica a uma demorada toalete, em que alisa pena por pena, sempre observando o resultado, até que fique plenamente satisfeita, ao fim de outros 20 minutos. Muito vaidosa, a Sarita.

Ernestinho, o canário

Ernestinho surgiu de surpresa, numa época de acasalamento.

Estacionei meu carro ao meio-dia e já entrava em casa quando aquele pequeno bólido amarelo mergulhou na direção do retrovisor e entrou em luta com sua imagem.

Furioso, enfrentava a si próprio, em que via um rival na disputa de sua pretensa fêmea. Afugentei-o, mas debalde.

Ao sair, uma ou duas horas depois, lá estava Ernestinho empenhado em luta com seu reflexo. Esfalfado, mas persistente, na vã pretensão de derrotar seu imaginário e invencível contendor.

Assim aconteceu nos dias seguintes, e tive que levar comigo duas sacolas plásticas para cobrir os retrovisores quando chegava em casa, sem o que a luta de MMA inevitavelmente acontecia.

Só muitos dias depois, Ernestinho, acasalado creio, sossegou, como acontece — ou deveria acontecer — com todo homem casado. Sou grato a esses pequeninos. Sem que tenham a mínima percepção disso, minguam a necessidade que tenho de comungar com a natureza.

(Nota: Parte do título deste artigo é tomado por empréstimo de uma obra famosa do escritor americano Jack London.)