Coisas que aconteceram nos meus tempos de engenheiro iniciante no Rio de Janeiro

Foi em 1959. Eu estava cursando, no Rio de Janeiro, o último ano de engenharia e consegui emprego nu­ma multinacional italiana. Essa empresa estava substituindo os tradicionais bondes, na Zona Sul do Rio, por ônibus elétricos, uma modernidade de então. Os cariocas, afetadamente, os chamavam pelo nome em inglês, “trolley-bus”, que pronunciavam com o chiado característico na última sílaba: tróleibuxxx.

Pois bem: a empresa, cujos escritórios principais ficavam em São Paulo, tinha no Rio um departamento técnico, encarregado dos projetos de engenharia e dos contatos necessários para as obras locais, que se resumiam na colocação dos cabos de energia para os ônibus. Não sei se conhecem o sistema: os ônibus funcionam como os bondes, só que não sobre trilhos. Movem-se pela eletricidade que vem dos cabos aéreos estendidos sobre as ruas, e sob os quais os veículos deslizam. Esses cabos eram chumbados nas paredes dos prédios vizinhos, o que às vezes gerava problemas, como vou contar daqui a pouco.

Nossa equipe era pequena: Domenico, um engenheiro italiano já velho, baixo, magro, experiente naquele trabalho, era o chefe do escritório. Eu, quase engenheiro, era seu segundo. Depois havia um espanhol, o Nieto, que era contador, Danilo, o desenhista, Francisco, auxiliar de escritório, além de um encarregado do almoxarifado, um motorista e um porteiro cujos nomes a memória me nega.

E Jandira, a secretária. Ah! A Jandira… Um capricho da natureza. Mulata clara e de cabelos lisos, 1 metro e 90 de pura sensualidade, corpo digno de uma estátua, belo rosto oval e uma dentadura ofuscante de tão branca e perfeita. Uma presença perturbadora naquele ambiente de trabalho. Brasileira, mas filha de um português bigodudo, daqueles tradicionais mesmo, e de uma negra retinta, era um acabado produto de três continentes. Seus pais tinham um pequeno bar no bairro da Saúde, e moravam num “cabeça de porco” em Copacabana.

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Jorgelina

Para quem não sabe, este era o nome que se dava aos prédios de muitos e pequenos apartamentos na Zona Sul do Rio. Jandira morava com eles, e estava noiva de outro português, este da elite da colônia: dono de três ou quatro padarias em Copacabana e Ipanema, tinha um carro Chevrolet, um luxo para a época, e morava no Leblon.

O rico portuga era zeloso da noiva, que levava de carro para o trabalho, ao meio-dia, e buscava de volta, às 6 e meia da tarde. Também pudera: Jandira devia ser responsável por muitos torcicolos quando andava por Copacabana, pois todos se voltavam quando ela passava. Com tanta cobiça, melhor escoltá-la sempre.

Nós não deixávamos passar uma piada de português, de que ela também ria, ainda que por educação. De nossa parte, ia uma boa dose de inveja do noivo, pois Jandira, ciente de seus dotes, não deixava nenhuma brecha, nem para um galanteio, para os marmanjos do escritório. Mas tratava muito bem a todos.

Um belo dia veio ao Brasil, para inspecionar os trabalhos, outro engenheiro italiano. Ao contrário de Domenico, era jovem, alto, praticante de esportes de inverno, ex-piloto da Força Aérea Italiana e solteiro. Filho de um dos donos da empresa, além de tudo. Chamava-se Marcelo e lembrava o ator xará, o Mastroiani. Hospedou-se no Hotel Copacabana Palace, hotel à época (e hoje também) muito luxuoso. Nosso escritório – esqueci-me de dizer – ficava na Avenida Princesa Isabel, na saída do Túnel Novo, perto da praia e do Copacabana Pálace.

Marcelo, um boa praça por sinal, ia todas as semanas a São Paulo, ao escritório da empresa, mas ficava mesmo a maior parte do tempo no Rio. Sempre hospedado no Copa­cabana Pálace, gostava de vir para o escritório e voltar para o hotel a pé. Estava certo: era perto pela Avenida Nossa Senhora de Co­pa­cabana, e pela Avenida Atlântica, um pouco menos, mas a caminhada a beira-mar era agradável.

Dois episódios fizeram com que Marcelo me tomasse como amigo. Certa feita o porteiro do prédio interfonou ao segundo andar, apavorado, dizendo que um homem armado estava subindo as escadas, para matar todo mundo. É um maluco, dizia. Todos correram para os fundos, onde havia uma copa, Marcelo inclusive. Enquanto se trancavam lá, aguardei em minha prancheta. Já conhecia o escândalo dos cariocas, principalmente quando viam uma arma.

O cidadão, de fato, entrou bufando na sala. Eu o conhecia. Era um ex-policial da guarda especial de Getúlio Vargas, dono de um apartamento onde havíamos colocado chumbadores para suporte dos cabos. O empreiteiro, ao tracionar os cabos, para que chegassem no lugar, havia exagerado na tensão, e a parede do apartamento havia desabado. Consegui sossegá-lo, prometendo todos os reparos e uma indenização, embora nem tivesse alçada para isso. Mas Marcelo, como todos os outros, ficou aliviado, quando o policial se retirou. Admirou minha calma, embora dissesse que eu era “mezzo pazzo” (meio louco) por não ter corrido também.

Outro dia, no Aeroporto Santos Dumont, onde havia ido deixá-lo para a viagem a São Paulo, consegui imobilizar, com meus aprendizados de jiu-jitsu, um descuidista que ia levando sua pasta, colocada no chão, enquanto ele marcava a passagem. Não foi nenhum trabalho de Hércules. O malandro era do tipo subnutrido, e estava desarmado. Mas para Marcelo foi um feito, até porque dinheiro e passaporte estavam na maleta. Mas confirmou: eu era “mezzo pazzo”.

Soube muita coisa de sua vida nas idas e vindas para o aeroporto, onde eu o deixava ou buscava, nas viagens a São Paulo. Marcelo detestava a maneira meio amalucada com que o motorista da empresa dirigia e sempre me pedia para tomar o carro e levá-lo ou buscá-lo. Era muito falante e adorava contar suas aventuras amorosas ou esportivas na Europa.

Mas a que ele não contaria, eu descobri por mim mesmo, e não aconteceu na Europa. Os olhos são janelas para a alma, no dizer de Edgar Allan Poe. Nós, os interioranos, mais retraídos, sabemos disso melhor que ninguém, e aprendemos a ler no olhar das pessoas. Os matutos, mestres em fazê-lo, desviam o olhar, se encarados intensamente, pois temem revelar olhando o que estão pensando.

No escritório da empresa eu havia, com essa perspicácia que a vivência cabocla nos dá, percebido uma novidade, nos olhares de Jandira e Marcelo. Se as primeiras focagens de Marcelo sobre Jandira eram as mesmas dos outros homens do escritório, onde brilhava um fogo admiração e cobiça, agora esses olhares eram mais dóceis, digamos assim. E Jandira, que olimpicamente ignorava nossas encaradas, eu por vezes a surpreendia trocando com Marcelo um olhar indefinível. Lânguido, talvez. Tem coisa aí, pensei comigo.

Um dia, Domenico fora a São Paulo, onde se encontrava também Marcelo. Voltariam só no dia seguinte, e eu estava encarregado do escritório. Jandira, como sempre, chegara ao meio-dia, trazida pelo noivo, e fazia seu trabalho de datilografia, sem encarar ninguém. Mas me pareceu um pouco nervosa, olhando constantemente o relógio. Ali pela 1 e meia, chegou até a minha mesa e disse-me que precisava sair. Tinha dentista marcado para as 2 horas e voltaria pelas 4. Brinquei, dizendo que com aquela dentadura nada tinha a fazer no dentista, o que a fez ruborizar-se. Perguntei se queria que chamássemos um táxi, mas dispensou, dizendo que era perto o consultório.

Pela janela, vi quando enveredou pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no seu caminhar felino, sempre acompanhada pelos olhares masculinos. Voltou pelo mesmo caminho, bem depois das 4 horas, com o olhar etéreo de sempre, embora me parecesse naquele dia um pouco mais sonhador. Perguntei se doera muito o tratamento, e a resposta foi um também ruborizado: “Nem um pouco”.

Pelas 5 horas, para minha surpresa, vejo Marcelo caminhando pela Avenida Princesa Isabel, vindo certamente do hotel, ele que julgávamos em São Paulo. Chegou risonho, cumprimentando efusivamente a todos, inclusive a “signorina Jan­dira”, que respondeu discretamente, desviando o olhar, coisa que eu, nunca separado de minhas raízes matutas, bem percebi. Dedi­quei-me à minha prancheta até o final do expediente, quando saíram todos os funcionários, inclusive Jandira, levada pelo noivo no seu reluzente Chevrolet. Ficamos só Marcelo, que trauteava alegre uma ária italiana, e eu. Olhei-o e desviou o olhar.

Era a hora de dar o troco do apelido de “mezzo pazzo”.

– “Dottore Marcelo, o senhor veio de São Paulo e não me pediu que fosse, como sempre, buscá-lo no aeroporto”.

Balbuciou uma desculpa qualquer, olhando-me desconfiado.

Emendei: “Dottore, posso ser meio louco, mas não sou nem um pouco burro”.

Apenas sorriu um largo sorriso vitorioso, machista e latino.