Quem hoje vai de Goiânia à cidade de São Luís de Montes Belos, na região denominada, em homenagem às belas matas do passado, de Mato Grosso Goiano, demora na viagem cerca de 80 minutos. Pois bem. A estória é do início da década de 1960, quando Arthur da Cunha Bastos Neto (o Tusa) e Carlos Alberto Vieira Coelho (o Carlinhos), jovens amigos inseparáveis, ambos de saudosa memória e que começavam a vida como fazendeiros no município de São Luiz. Geralmente, iam juntos, não só para poupar as camionetes, como para ter companhia na longa viagem.

Longa viagem? Isso mesmo. Nesses 60 anos muita coisa mudou. “Antigamente, nem em sonhos existiam tantas pontes sobre os rios nem asfalto nas estradas”, diz o canoro Sérgio Reis, em sua marcante “Mágoa de Boiadeiro”. A viagem, que hoje dura 1h20, então demandava um dia inteiro. Sair de Goiânia antes do nascer do Sol, chegar a São Luís escurecendo. Isto na seca. Nas águas, imprevisão total. Podia-se inclusive não chegar. Asfalto, nem um palmo. Estradinhas vicinais, mata-burros precários, passagens de vau, muitas curvas, uma atrás da outra. Várias porteiras para abrir.

Na seca, poeira, muita poeira. Sem ar-condicionado nas picapes, que ainda não existia em veículos (ao menos no Brasil), era escolher: vidros baixados, poeira; vidros fechados, calor. Sem contar o perigo de uma batida, pois um carro à frente levantava tanto pó que impedia a visão de quem vinha em sentido contrário.

Na estação das chuvas, lama, atoleiros, mata-burros caídos, vaus que não davam passagem. Nem uma nem duas vezes, Tusa ou Carlinhos (ou os dois) foram obrigados a dormir na cabine da camionete, atolados, e sem bois de carro por perto (tratores eram raros) para arrastá-los. Mas vamos à estória.

Um dos fazendeiros mais tradicionais da região era o pai de Tusa, Lahire (ou “seu” Zico de Bastos), desbravador daquele sertão, dono de uma das melhores fazendas e de uma das maiores e mais confortáveis sedes da região. Ponto obrigatório de passagem para Tusa e Carlinhos quando em demanda de suas fazendas próximas.

O velho Zico e a mulher, Dona Tereza, eram hospitaleiros. E Zico tinha um vasto conhecimento, adquirido na universidade da vida e do trabalho, sobre pastagens, veterinária bovina, engorda de gado e mercado de carne. Um entendido. Não havia televisão. Internet nem era sonho, ainda. Mas ele se informava pelo rádio, ouvindo, quando a estática permitia (em geral à noite ou nas primeiras horas da manhã), as estações do Rio e São Paulo. E tinha o largo conhecimento da prática. Era fonte de orientação e conselho para os jovens fazendeiros.  

Um dos empregados mais antigos da sua sede era o Dãozinho, cujos nome e sobrenome nunca fiquei sabendo. Mineiro do Triângulo, de idade indefinida (tanto poderia ter quarenta como sessenta anos), era magro e saudável – e paciente, como todo bom mineiro. Fumava um cigarrinho de palha que fazia demoradamente, com exagerado esmero, principalmente quando estava conversando, pois gostava muito de dois dedos de prosa, mormente com quem vinha da cidade. Apreciava se inteirar das novidades.

Com chapéu de palha sempre na cabeça, astuto, como costumam ser os roceiros, a ponto de enganar muito sabido da cidade, Dãozinho tinha uma característica: não contrariava o interlocutor. Mineiramente, para não parecer desagradável, nunca desmentia ninguém. Jamais teimava. Tusa e Carlinhos, brincalhões, já haviam percebido esse comportamento e compraziam-se em deixar o pobre peão em “saia justa”.

– Hoje chove, Dãozinho. – Dizia Tusa, olhando o céu azul do mês de julho.

– Capaiz. Ano passado deu uma chuvada mêis de Júio. – Respondia o matuto.

– Que isso, Dãozinho! Não tem uma nuvem no céu. – Dizia Carlinhos.

– Tá certo, seu Carlim. Tem nuve não. Acho difirce mêmo chuvê. – Desdizia Dãozinho.

Doutra feita:

– A roça de milho está uma beleza, não é, Dãozinho? – Falava Carlinhos.

– Bunita. Uma fartura! – respondia.

– Não está não. – Dizia Tusa – Olha que o milho não tem quase boneca, está meio murcho.

– É mêmo! Capaiz carecer comprar nos vizim miiu até pra mode fazê pamonha! – concordava Dãozinho.

E o ano de 1960 ficou na história das chuvas em Goiás. Poucos registros existem de ano tão molhado. Enchentes, roças perdidas, estradas acabadas, pontes (a maioria, nessa época, era de madeira) rodadas. Em fins de fevereiro, Carlinhos e Tusa chegavam à casa do Seu Zico depois de dois dias de viagem, desde Goiânia. A camionete e os dois rapazes vermelhos de barro. Tinham atolado umas três ou quatro vezes, e numa delas, perto de Firminópolis, tinham pernoitado. Mas estavam na idade em que tudo é animação. Tusa então disse a Carlinhos:

– Hoje vou fazer o Dãozinho discordar de mim.

– Duvido. O que você vai falar?

– Você vai ver.

Banho tomado, sentados na varanda, aguardavam o jantar e conversavam com o Seu Zico. Preço da arroba do boi, novas espécies de capim para pastagens, produtos veterinários recém-lançados, coisas assim. Foi quando chegou Dãozinho. Sentou-se.

– Boa noite, Dãozinho – disseram Tusa e Carlinhos.

– Banoite. Banoite. – respondeu Dãozinho.

– Como vai a família? – perguntou Carlinhos

– Famiage boa, graças a Deus – respondeu Dãozinho, tirando o chapéu de palha, em respeito ao Criador.

– Bom de chuva, não é, Dãozinho?

– Bão, graças a Deus – respondeu Dãozinho, tirando outra vez o chapéu.

Então Tusa, piscando para Carlinhos, disparou:

– Dãozinho, vi hoje uma coisa esquisita.

– Mêmo, seu Tusa? Qui foi?

– Chegando aqui na divisa da fazenda, vi que o Rio São Domingos estava correndo ao contrário. De baixo para cima.

Dãozinho “assuntou”. Desconfiado, olhou para Carlinhos. Que nem piscou. Depois para Seu Zico, que tudo observava, sisudo. Encarou Tusa nos olhos.

E no seu olhar brilhou uma centelha de matreirice e zombaria, antes de ripostar:

– É, seu Tusa, nas vorta de lua ele tem dessas treta, mêmo!

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