“Cheiro de Biblioteca”, livro que Salatiel Pedrosa Soares Correia publicou em 2015 (Editora Synergia, 373 páginas), é uma navegação por fatos, personagens e livros (os ensaios foram publicados, em sua maioria, no Jornal Opção). Mais sobre livros, pois cada um de seus 32 capítulos faz referência a pelo menos uma publicação de renome, embora não se trate de uma coletânea de resenhas. Mas cada um deles tem algo de resenha, como tem algo de crônica, pois o autor junta aos comentários sobre os livros que o impressionaram alusões de suas experiências pessoais ou profissionais, bem como de suas viagens correlatas aos assuntos. Obras e personagens que influenciam nossa época é o subtítulo do livro dividido em três partes: a primeira abrange dez capítulos com o título de Política e Economia, outra dezessete capítulos que o autor intitula Biografias Comentadas e os últimos cinco denomina Literatura. Nenhum deles desmerece a leitura.

Salatiel Pedrosa, engenheiro: mestre pela Unicamp | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

O título do livro é uma homenagem que Salatiel presta ao escritor e poeta Jorge Luis Borges, o fenomenal argentino da literatura fantástica, nome mundial, um dos injustiçados que não receberam o Nobel de Literatura, embora sobejamente merecido. Borges, revela Samuel, quando já cego e não mais podendo ler os livros, razão de sua vida, comparecia às livrarias e bibliotecas, ainda que apenas para sentir o aroma.

A título de amostra grátis, faço comentário de um capítulo de cada uma das três partes. Pois não faço aqui também uma resenha, o que seria difícil dado o caráter multifacetado da obra. É contemporânea, mas leva o leitor a uma variedade de temas, lugares, indagações e pessoas, cada qual com seu fascínio próprio. Salatiel não é apenas escritor, é também historiador, e muito voltado para a história econômica. Em “Cheiro de Biblioteca”, de certa forma, historia uma época — a nossa.

Na primeira parte de seu livro, como foi dito, são dez os temas abordados, todos do maior interesse, como por exemplo, o que abre o livro, “Por que a China é tão forte?” inspirado pelo famoso livro de Henry Kissinger, “Sobre a China”. Mas prefiro comentar outro capítulo: “Guerra do Paraguai: será sempre maldita. Mas o Brasil não é vilão”. Salatiel escreve esse capítulo com base nos livros (em especial “Maldita Guerra”) do historiador paulista Francisco Fernando Doratioto, um estudioso do que foi o maior conflito armado brasileiro.

Desfilam no resumo as principais figuras envolvidas: Francisco Solano López, Elisia Alicia Lynch, Caxias, D. Pedro II, o Conde d’Eu, e até a bela Pancha Garmendia, a paraguaia que repeliu as investidas amorosas do ditador Solano López. Segundo Salatiel, López seria o Hitler da América do Sul.

Isso me faz lembrar um livro excelente sobre o mesmo tema: “O Napoleão do Prata”, dos italianos Manlio Canconi e Ivan Boris. Boris e Canconi, aliás, exaltam ainda uma figura paraguaia deveras respeitada por sua combatividade, e menos conhecida: o general Bernardino Caballero, valente oficial paraguaio que deu continuidade aos combates mesmo após a morte de Solano López, foi feito prisioneiro de guerra e libertado por ordem do imperador brasileiro, que tinha muito respeito por ele. Caballero mais tarde presidiu o Paraguai.

Hitler da América do Sul, ou Napoleão do Prata, tanto faz. Solano López levou seu povo a uma guerra desastrosa, que ainda pesa sobre o país vizinho, século e meio depois, como mostra Salatiel.

Biografias de Osvaldo Aranha e Getúlio Vargas

Na segunda parte de seu livro, Salatiel comenta biografias de figuras as mais diversas, sejam políticos brasileiros, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso ou o admirável Osvaldo Aranha. Comenta os políticos Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt e Arafat, os economistas Schumpeter e Raúl Prebish e também Einstein.

Ainda que preferisse falar de Osvaldo Aranha, deixo um comentário sobre Fernando Henrique, pois vivi pessoalmente o episódio do convite a ele feito pelo presidente Itamar Franco para o Ministério da Fazenda (hoje Economia), convite responsável por seu renome, e vejo que a história tem sido madrasta com Itamar, no retratar sua contribuição à estabilização monetária no Brasil.

Tive no Senado Federal uma convivência bastante próxima com Itamar Franco e uma não tão próxima com Fernando Henrique Cardoso. Extremamente vaidoso, Fernando Henrique sempre almejou ocupar o Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty. Chegou a ensaiar a aceitação do convite que lhe fez Fernando Collor para esse cargo, mas não o fez por oposição de Mário Covas. Se tivesse aceitado, FHC jamais seria presidente, pois Collor já estava à beira do impeachment. Impedido Collor, assumiu a Presidência seu vice, justamente Itamar Franco, que nomeou Fernando Henrique para seu sonhado Itamaraty.

Itamar era um cidadão bastante lúcido, muito correto, e que sabia das limitações de seu governo: curto, enfrentando uma inflação desmesurada, herança de planos econômicos desastrados, pilotados por economistas de segunda categoria, como o Plano Cruzado (de Dílson Funaro), Plano Bresser (de Bresser Pereira) e os Planos Collor (de Zélia Cardoso de Mello). Resolveu marcar seu governo pela estabilização econômica, entregar sua execução a Fernando Henrique, por quem tinha estima, já sabendo que faria dele seu sucessor, se atingisse a meta de vencer a inflação.

Itamar ligou para Fernando Henrique, que estava em missão no exterior e fez o convite. Mas Fernando Henrique relutou em aceitar. Gostava das honrarias e viagens do Ministério das Relações Exteriores e pediu prazo para a resposta. Estive com ele na volta dessa viagem, quando já se aprestava a dar a resposta a Itamar, se aceitaria o Ministério da Fazenda. Cheguei a ponderar com ele que o sucesso na Economia abriria as portas (como abriu) para sua chegada à Presidência. Itamar, aliás, já havia feito isso, e havia dito a ele: reúna uma equipe competente, que elabore um plano viável, realmente exequível, e terá o apoio de todas as pastas de meu governo. Terei feito algo útil ao país e estarei satisfeito como presidente se chegarmos lá. E você terá se credenciado como meu sucessor. Assim foi feito.

FHC reuniu uma equipe de bons economistas ligados à PUC-Rio, com Pérsio Arida e André Lara de Rezende à frente, e implantou, com inteira cobertura de Itamar, o plano bem-sucedido. E chegou à Presidência. Algo com que Itamar não contava: FHC chamou a si, inteiramente, a ideia, a elaboração e a implantação do Plano. Quando na Presidência, sorrateiramente, sempre deu a entender que Itamar não tivera qualquer participação na implantação das medidas de estabilização. Ficou com todos os créditos, sempre fazendo crer que fora ele e não Itamar o pai da ideia e de todas as providências. Estive com Itamar pouco antes de sua morte, quando voltou ao Senado, eleito por Minas Gerais. Estava profundamente revoltado com a ingratidão (e a malandragem) de Fernando Henrique, e assim morreu, pouco depois. 

A terceira parte do “Cheiro de Biblioteca”, com o título de Literatura, consta, como disse acima, de cinco capítulos e muitas proveitosas — até apaixonantes — viagens pela literatura atual: Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Tomasi di Lampedusa e até pela subliteratura de Paulo Coelho. Não perca, leitor, o capítulo sobre a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana, hoje quase esquecida, mas que foi marcante na minha geração, como modelo de abuso político e atraso latino-americano. O retrato pintado pelo autor goiano com base no livro “A Festa do Bode”, de Vargas Llosa, enlaça, pela linguagem e pelo significado da narrativa, e avisa, sobre as ditaduras. Aviso tantas vezes descurado, ou mesmo esquecido.

“Cheiro de Biblioteca” é um livro, enfim, que prende, entretém, ensina e previne.