Livro conta uma história do sandinismo, a doença crônica da Nicarágua

16 setembro 2017 às 11h13

COMPARTILHAR
Apesar de omissões, livro de Sergio Ramirez, “Adiós Muchachos”, revela as entranhas da ditadura de Daniel Ortega

Limitada ao norte com a problemática Honduras e ao sul com a civilizada Costa Rica, a Nicarágua, com seus 6 milhões e pouco de habitantes, é o exemplo de que uma situação já ruim sempre pode piorar. Desde a independência da Espanha, em 1821, o país viveu sucessivas crises e intervenções, principalmente dos EUA. Vive em crise ainda.
A partir de 1936, ficou quase vinte anos sob a ditadura de Anastásio “Tacho” Somoza, assassinado em 1955. Depois outras duas décadas sob a ditadura de seu filho Anastásio “Tachito” Somoza, deposto em 1979, e morto no ano seguinte pelos ditos “sandinistas”, em seu exílio no Paraguai. Os sandinistas são um grupo guerrilheiro nicaraguense, de inspiração marxista e com apoio cubano, surgido durante a ditadura de “Tachito”, ativo ainda hoje. Inspira-se no lendário guerrilheiro antiamericano Augusto César Sandino (1895-1934).
Após o fim da ditadura dos Somoza, deposta por uma frente guerrilheira eclética, de que os sandinistas faziam parte, a Nicarágua experimentou a ditadura marxista destes, que afastaram os grupos democráticos que combateram “Tachito” a seu lado. Assumiram o governo com a “presidência” de Daniel Ortega, estatizaram a economia e impuseram uma ditadura à moda cubana (os “assessores” cubanos pululavam então na Nicarágua). Enfrentaram uma oposição que ia desde os grupos mais moderados até os armados chamados Contra, apoiados pelos EUA.
A situação de guerra durou até 1989, quando os sandinistas, que perdiam terreno, resolveram fazer eleições, na crença de que as venceriam facilmente e se legitimariam no poder.
Surpreendentemente, venceu a eleição a moderada Violeta Chamorro — o povo estava cansado da guerra e dos desmandos sandinistas.
Violeta Chamorro foi substituída por Arnoldo Alemán, eleito em 1997 e depois Enrique Bolaños, eleito em 2002.
Em 2007, voltou ao governo a Frente Sandinista, com o mesmo Daniel Ortega, eleito na onda bolivariana, que não mais apeou do poder. Modificou a constituição e promoveu sucessivas e suspeitas eleições. Segue a Nicarágua o caminho venezuelano, sem tirar nem por.
Com exceção do pequeno interregno de 1990 a 2007, nos governos Chamorro, Alemán e Bolaños, quando se tentou respirar ares democráticos, apesar da permanente sabotagem da oposição sandinista, a vida dos nicaraguenses tem sido muito tumultuada e difícil. Na verdade, o movimento sandinista ocupou o cenário político do país desde os anos 1980, crescendo à medida que a nação se revoltava contra a ditadura somozista.
Foi publicado há pouco tempo em português o livro “Adiós Muchachos” (Record, 350 páginas, tradução de Eric Nepomuceno), do escritor (e sandinista dissidente) Sergio Ramírez, que conta sua versão da história sandinista. O prefácio é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Sergio Ramírez foi uma das figuras de proa do sandinismo, embora nunca tenha empunhado uma arma, seja contra Somoza, seja contra a guerrilha Contra.
Intelectual, escritor de novelas, com algum trânsito nos meios culturais europeus, Sergio Ramírez veio a ser vice-presidente da Nicarágua de 1985 a 1990, como companheiro de chapa de Daniel Ortega. O prefácio de Fernando Henrique é inócuo. Não é favor e nem contra o sandinismo, e quase afirma que o comunismo não deu certo ainda mas vai dar um dia.
O livro é de um dissidente ameno, mas um tanto crítico. Aponta os erros principais do movimento, mas cala-se sobre outros. Não envereda pelo anticomunismo, como é praxe entre os dissidentes ex-marxistas latino-americanos. Procura fazer um relato histórico, e de certa forma o consegue, principalmente pelos pequenos — e muitas vezes curiosos — detalhes de experiências próprias, mormente os encontros com autoridades estrangeiras. Sua audiência com Margaret Thatcher, tentando justificar a inclinação marxista de seu movimento é interessantíssima. Jimmy Carter, a despeito da tolerância que tinha para com os sandinistas, surge no livro como sempre foi — uma figura meio ingênua, quase boboca.
Sergio Ramírez fala de Fidel Castro com admiração, mas contida. Não deixa de ridicularizar seus companheiros que o tinham como semideus, de quem copiavam o comportamento, os gestos, as palavras. Mas se cala quanto às vicissitudes do povo cubano. Conta da busca de apoio junto a Muammar Khadafi, quando, em vez de conseguir armas, recebeu a cobrança de algumas contas antigas, dívidas da Nicarágua para com a Líbia. Mostra como a Frente Sandinista foi sustentada pelo líder panamenho Omar Torrijos e pelo presidente venezuelano Carlos André Perez até a derrubada de Somoza e depois da queda deste, por Cuba e pela União Soviética. Até que na Perestroika, com o comunismo falindo, cessou a ajuda do mundo vermelho.
O primeiro-ministro grego, Papandreu, em 1984, segundo Ramírez, desviou dez mil fuzis de assalto, da fábrica que existia na Grécia para abastecer a Otan, para as mãos dos sandinistas.
Sergio Ramírez conta com detalhes a participação da Igreja Católica na guerra nicaraguense. Seu ramo filo-comunista, o da Teologia da Libertação, apoiou incondicionalmente o sandinismo, com alguns padres até pegando em armas, como foi o caso dos irmãos Ernesto e Fernando Cardenal, e de Miguel D’Escoto, que foram ministros do governo sandinista, mesmo contra a vontade do papa.
A figura do arcebispo de Manágua, o cardeal Miguel Obando y Bravo, é bem descrita no livro. Uma das figuras mais respeitadas da Nicarágua, quer pelos sandinistas, quer pelos democratas, Obando sempre teve um papel de equilíbrio na conturbada região. Conservador, nunca se aproveitou do arcebispado para críticas aos espevitados da Teologia da Libertação. Deixava isso para a Cúria Romana, e assim mantinha a equidistância e a autoridade. Em momentos críticos, fez-se ouvir pelos dois lados. É até hoje uma autoridade acima das arrelias e paixões.
O livro de Sergio Ramírez é útil não só para quem se interessa pela Nicarágua, mas para todos que tenham curiosidade pelo que se passou na América Latina durante a Guerra Fria e pelo que se passa agora, com os descalabros do bolivarianismo.
Há omissões na história contada em Adiós Muchachos. Estive na Nicarágua por duas vezes, no aceso das suas lutas internas. Fui observador do Senado na campanha eleitoral vencida por Violeta Chamorro, em 1989 e estive em sua posse, em 1990. Tive contato pessoal com as principais figuras do sandinismo e da oposição a ele. Ouvi o arcebispo Obando y Bravo, que me fez um detalhado relato da situação da Nicarágua naqueles anos de 1980.

Posso afirmar que faltam no livro as críticas mais severas que merecem os sandinistas, a começar por Daniel Ortega, uma figura despida de escrúpulos. Um presidente que por anos violentou a própria enteada, Zoilamérica Murillo, conforme denúncias feitas pela própria quando adulta, sempre abafadas pelo governo.
Não fez também Ramirez qualquer reparo à primeira-dama, Rosário Murillo, hoje vice-presidente do marido, sempre uma eminência parda, que acobertou a pedofilia de Ortega, com prejuízo da própria filha, para não perder o poder, de que sempre desfrutou, dado a enorme influência sobre o marido.
Lembro-me de tê-la visto em uma solenidade em Manágua, e ter perguntado ao embaixador brasileiro Sérgio Duarte quem era aquela senhora exageradamente maquiada, com uma profusão enorme de colares, pulseiras e brincos, óculos extravagantes, ostentando uma micro-saia menor que as então usadas pelas nossas adolescentes, e ter sabido que se tratava da então primeira-dama do país.
Sergio Ramírez omite o ato baixado pelo ministro do interior de Ortega, o comunista radical Tomás Borge, poucos dias antes da posse de Violeta Chamorro, fazendo a doação das melhores residências de Manágua, que haviam sido desapropriadas, para os chefes mais notórios do sandinismo, inclusive o próprio Tomás Borge. Não menciona a perseguição aos índios Misquitos, que o sandinismo tentou fazer abandonar seus ritos tradicionais para torná-los comunistas, e que, rebelados, foram reprimidos à bala, tendo aderido aos Contra. Não mencionou que o mais notório guerrilheiro da luta contra Somoza, o lendário Comandante Zero, Éden Pastora (ainda vivo, hoje), foi afastado pelos sandinistas, após a deposição do ditador, por não ser comunista, e acabou também por aderir aos Contra. Mas, mesmo com as omissões, “Adiós Muchachos” conta uma história do sandinismo, doença crônica da Nicarágua.