Beleza e vigor da poesia de Luís Vaz de Camões resistem ao tempo. Ela é eterna

23 outubro 2022 às 00h00

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Há alguns meses, visitando um jornalista amigo, e prestes a empreender uma viagem de trabalho a Portugal, perguntei a ele se desejava algo da terra lusitana.
— Sim. Traga-me um livro de sonetos do Camões — disse.
Bela encomenda, pensei comigo. Pois Luís Vaz de Camões (1524?-1579), universalmente conhecido por seu poema épico renascentista “Os Lusíadas”, publicado em Lisboa em 1572, foi também autor de cerca de duas centenas de sonetos da mais bela lavra, que constituem apreciável riqueza da língua portuguesa. E é curioso que uma alma turbulenta, como Camões, pudesse buscar em seu interior uma inspiração tão profunda para escrever o que escreveu. Turrão, boêmio, soldado, viajante, sem fortuna, autoexilado por mais de uma vez, deficiente visual, nem por isso deixou de ser o expoente das letras portuguesas. Se o leitor desejar conhecer de Camões uma imagem o mais próximo possível da realidade, pois boa parte dela se perdeu nas vagas de séculos de distância, leia a obra de João Morgado, “O Livro do Império”, um excepcional romance histórico biográfico do também excepcional poeta.

Relembremos, leitor, um desses famosos sonetos de amor, inspirado por uma passagem bíblica e tão bem pensado por Camões, que hoje, cinco séculos depois de escrito, tem ainda o poder de embalar a paixão de um qualquer pertinaz enamorado que tem dificuldades em conquistar sua amada:
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela
Mas não servia ao pai, servia a ela
E a ela só por prêmio pretendia
Os dias na esperança de um só dia
Passava contentando-se com vê-la
Porém o pai, usando de cautela,
Em vez de Raquel lhe dava Lia
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora negada assim sua pastora
Como se não a tivera merecida,
Começa a servir outros sete anos
Dizendo: — Mais servira se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida

Ou este outro, tão atual, que pode ser declamado por um qualquer jovem que experimente sua primeira paixão inexplicável:
Busque, Amor, novas artes, novo engenho,
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças.
Que mal me tirará o que não tenho.
Olhai que de esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido lenho.
Mas conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal que mata, e não se vê.
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por que

Ou este outro, para finalizar, tentando definir, como alguma vez na vida fizemos todos nós, o que é o Amor:
Amor é um fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
É um não querer mais que bem querer
É um andar solitário entre a gente
É nunca contentar-se de contente
É um cuidar que se ganha em se perder
É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É ter, com quem nos mata, lealdade
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Camões tem um reinado de quinhentos anos nas letras portuguesas, e muitos são os autores lusitanos de mérito, desde o trovadorismo do século XII, passando pelo humanismo de Gil Vicente, o renascimento (com o próprio Camões), o barroco (com o padre Antônio Vieira), o neoclássico (com Bocage e o padre José Agostinho de Macedo), o romantismo (com Camilo Castelo Branco, Almeida Garret, Henrique Lopes de Mendonça, Júlio Dantas), e ainda pelo naturalismo, pelo simbolismo, pelo modernismo de Fernando Pessoa e chegando até os dias atuais, com expressões como o prêmio Nobel de Literatura José Saramago, Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes (tido em Portugal como mais merecedor do Nobel que Saramago), Miguel Torga e João Morgado. Em todas essas fases, desde o renascimento, Camões se fez presente nas discussões literárias. Duzentos anos após sua morte, o padre e escritor José Agostinho de Macêdo resolveu fazer uma crítica de “Os Lusíadas” e escrever um poema épico concorrente (que levou o título de Oriente), com o que só conseguiu ser combatido nas publicações da época, principalmente por seu inimigo, o polêmico poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, que demoliu a ele e seu Oriente com uns simples versinhos amplamente divulgados:
Ao Parnaso quer subir
Novo rival de Camões
E das loucas pretensões
As musas se põem a rir
Apolo, sem se afligir
Destarte diz ao casmurro:
Pode subir, que não o empurro
Nem vem me causar abalo
Eu cá sustento um cavalo
Sustentarei mais um burro
Shakespeare, em sua peça “Júlio César”, cria uma fala de Marco Antônio, junto de Cesar apunhalado: “O mal que os homens fazem, a eles sobrevive. O bem que fizeram, com seus ossos se enterra”. O próprio Shakespeare, com a ajuda de Camões, desmente esse dito. A obra literária, e em particular a obra poética, é um bem que quem escreve faz aos homens. Os ossos de Shakespeare foram enterrados há quatro séculos, e os de Camões há meio milênio. O bem de sua escrita permanece.