É de Sigmund Freud uma frase que resume um bom naco da psique humana: “Quando Paulo me fala de Pedro, passo a saber mais sobre Pedro do que sobre Paulo”. De uma forma visual – porque qualquer um, logo ao ouvir a frase, vê a cena com seus dois personagens se apresentar na mente –, o pai da psicanálise ensina o quanto é comum projetar em outra pessoa aquilo que se tem dentro de si.

Ao que consta, Freud não afirmou isso para alguma circunstância em particular. Portanto, não há nada de errado em aplicar a tese à política. E, na política, a partir disso, analisar o comportamento dos mais poderosos a partir de seus discursos e de suas práticas.

Para confirmar a pertinência do postulado freudiano, talvez o caso mais emblemático em nossa história tupiniquim de poder tenha sido o de Fernando Collor em 1989, na disputa pela Presidência na primeira eleição ao cargo depois de 29 anos.

Sua campanha, especialmente no segundo turno, buscou infundir pânico à população se o PT chegasse ao governo, espalhando que o partido instituiria o comunismo e confiscaria o patrimônio das pessoas.

Collor ganhou a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e tomou posse em 15 de março de 1990. No dia seguinte, anunciou o Plano Brasil Novo (que na realidade ficou conhecido – “merecidamente” – como Plano Collor), o qual confiscou a poupança e, portanto, praticamente todas as economias da maior parte dos brasileiros. Estima-se que tenha sido confiscado pelo governo federal o equivalente a US$ 100 bilhões, ou 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do País. Collor fez aquilo que disse que seu adversário faria. Na prática, foi o Pedro que falava de Paulo na historieta freudiana.

Jair Bolsonaro (PL) chegou ao poder servido como uma espécie de Collor pós-PT, com uma cobertura de revival da ditadura. Assim como o ex-governador de Alagoas – alguém de quem, aliás, o capitão da reserva se aproximou bastante nos últimos tempos, por afinidade eleitoral de parte a parte –, um “caçador de marajás” que se tornou um presidente alvo de impeachment, o atual ocupante da cadeira principal do Palácio do Planalto tem um histórico de malquerenças e acusações contra seus rivais políticos, a quem vê como inimigos viscerais.

Foi por causa deles que Bolsonaro nasceu, cresceu e – pelo menos até aqui – sobreviveu, sempre lhes jogando a pecha de “comunistas” e atiçando setores radicais da extrema-direita, os quais foram se avolumando em seu entorno com o passar dos anos.

E, quando o deputado federal exaltador da ditadura sugeriu o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o Congresso considerou a declaração como coisa de maluco; quando falou em dar golpe e fechar o mesmo Congresso, acharam seus colegas que era só uma bravata isolada; quando louvou o torturador “coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff”, ao proferir seu voto pela abertura do processo de impeachment da presidente petista, essas palavras caíram na vala comum da “liberdade de expressão”. E foi com essa ampla condescendência que aquele “doidinho de bairro” do baixo clero, como o julgavam alguns parlamentares arrogantes, tão poderosos quanto negligentes, se tornou presidente da República.

Muitos desavisados – alguns desse mesmo conjunto de políticos que sempre o minimizaram como ameaça – apostaram que Bolsonaro se enquadraria ao assumir o posto máximo da Nação. Boa parte deles, que queriam ver o PT longe ainda que o preço fosse a eleição de um radical despreparado para o cargo, até apertaram 17 na hora do voto.

Hoje, como presidente, cada vez mais isolado pelos próprios atos insanos que cometeu durante todo o mandato, o capitão da reserva aplica exatamente a mesma cartilha que aprendeu e receitou durante toda a vida. Os “comunistas” precisam ser combatidos – até literalmente, se necessário. Pior: não são necessários muitos atributos para entrar na lista de detratação bolsonarista: se para isso antes tinha de ser petista, de esquerda ou pelo menos um liberal progressista, ultimamente basta criticar o governo. Banqueiro e empresário que assinem carta pela democracia e pelo Estado de Direito já passam automaticamente a integrar o rol dos vermelhinhos, segundo a cartilha dos “conservadores”.

Da mesma forma que Collor, Bolsonaro acusa os outros daquilo que faz ou pretende fazer. E não há nada mais próximo do que o presidente acusa de ser “comunismo” do que seu próprio comportamento e, mais do que isso, suas decisões.

O presidente tem na Venezuela seu principal trunfo para amedrontar os brasileiros com o fantasma do comunismo. Ocorre que, como presidente, ele tem tentado funcionar como um Hugo Chávez de sinal trocado: como o finado coronel venezuelano – a quem no passado Bolsonaro disse admirar –, por aqui há um evidente aparelhamento das instituições e uma tentativa de cooptação dos demais Poderes com todas as artimanhas possíveis. Isso se viu no orçamento secreto para o Congresso, no desrespeito à lista tríplice para a Procuradoria-Geral da República (PGR) e também nos requisitos para escolher ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Foi o próprio presidente da República quem disse que hoje tem “20%” da Corte – referindo-se a Kassio Nunes Marques e André Mendonça, os dois magistrados que nomeou. Falou isso como se não entendesse a Constituição e sua separação de Poderes – ou pior, como se, entendendo-a, também a desprezasse. Também em relação ao Supremo, outra pauta a qual é simpático é o aumento do número de ministros. Ainda em campanha, Bolsonaro queria subir de 11 para 21 o total da Casa, porque seria “uma maneira de colocar dez isentos lá dentro”. Foi exatamente isso que Chávez fez em 2003, subindo de 20 para 32 a quantidade de juízes da Corte Suprema venezuelana.

Mais uma semelhança com o colega do norte da América do Sul? Chávez construiu uma milícia de paramilitares para defender o regime. Bolsonaro, a cada dia, diz que é preciso defender a liberdade, ainda que em uma guerra e colocando em jogo a própria vida. Deixa cada vez mais óbvio que seu armamentismo não tem nada a ver – ou não tem só a ver – com defesa do patrimônio ou da família: ele quer gente armada nas ruas para lutar para que ele continue no poder, a despeito de urnas e eleições.

Outra característica marcante dos países de fato comunistas é o personalismo com que se trata os governantes. De Mao Tsé-Tung a Josef Stálin, passando por Fidel Castro e chegando a Kim Jong-Un, todos veneravam ou veneram seu “grande líder”. Na verdade, um traço de regimes autoritários tanto à direita quanto à esquerda, mas que Bolsonaro faz questão de cultivar.

Em troca de todas as benesses do autoritarismo, as quais denuncia haver nos países socialistas, como o Pedro que ataca Paulo de nossa frase freudiana, Jair Bolsonaro promete entregar as pautas conservadoras de costume, notadamente as que envolvem questões identitárias. Nisso, assemelha-se muito a outro famoso autoritário do mundo contemporâneo: Vladimir Putin, o presidente – e “czar em exercício” – da Rússia e ex-agente da KGB, a polícia secreta da comunista União Soviética.

Como diz o ditado bem brasileiro – mas que talvez Freud aprovasse –, o peixe morre pela boca. Sim, durante estes anos de governo, o “mito” está enfiando goela abaixo dos brasileiros doses homeopáticas do que ele próprio chama de “comunismo”.