A inoportuna viagem de Jair Bolsonaro ao país de Putin se explica e se encaixa nas peças do jogo eleitoral local

Carlos Bolsonaro ao lado do pai, Jair, em reunião com o presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, em Moscou | Foto: Reprodução

Uma lenda sobre o poder, eternizada pelo romano Cícero, conta que o rei Dionísio, de Siracusa, resolveu dar a um bajulador da corte, Dâmocles, a oportunidade de ficar um dia em seu lugar. Usufruiria de tudo: poderia dar ordens, teria as amantes que quisesse, fartura de comida servida em talheres de ouro e prata e todas as demais prerrogativas de um soberano. Dâmocles aceitou, obviamente. Só que logo o rei interino percebeu um detalhe literalmente vital: no alto do trono que passou a ocupar, fora instalada uma afiada espada, presa apenas por um fio do pelo da crina de um cavalo.

A guerra fria é como a espada de Dâmocles e o parágrafo introdutório foi para explicar essa sensação a quem não tem idade para tê-la vivenciado. Entender esse conceito diante do que agora ocorre entre Rússia e Ucrânia – na verdade, o inimigo real é a Otan – é algo para quem já é um adulto com quatro décadas ou mais no RG. Quem nasceu dos anos 80 em diante não experimentou a sensação de viver em um mundo dividido geopoliticamente entre duas superpotências nucleares, com uma 3ª Guerra em estado latente. Era a humanidade inteira sentada no lugar do rei Dionísio.

Diante desse tipo de situação delicada na conjuntura mundial, o Brasil sempre teve uma postura diplomática exemplar. Até anos atrás, o Itamaraty, diga-se, era uma das instituições nacionais mais respeitadas no mundo inteiro, exatamente pela habilidade com que sabia lidar com as tensões e os interesses de países e blocos em períodos extremamente complexos.

Por isso, chanceleres, embaixadores e diplomatas de todo o planeta se encheram de estupefação quando a Presidência da República confirmou a visita ao presidente russo, Vladimir Putin, em meio ao ápice do perigo de uma invasão da Ucrânia. Uma atitude aparentemente injustificável do ponto de vista das relações exteriores, mas na qual gente como o ex-chanceler Celso Amorim – que comandou o Itamaraty durante os oito anos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à frente do governo – até tentava buscava pontos positivos para entendê-la, como fez em um debate do canal GloboNews no domingo, 13. “Sou altamente crítico da política externa do governo Bolsonaro e obviamente não é o melhor momento para ir, mas não condeno a viagem [à Rússia]”, disse.

Fato é que a pauta da missão nunca esteve muito clara – como, de resto, tudo no atual governo carece de transparência. A repórteres, Jair Bolsonaro (PL) chegou a dizer que o Brasil “depende, em grande parte, de fertilizantes da Rússia e da Bielorússia”, dando a entender que essa seria uma das pauta.

A ausência da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, causava estranheza. Da mesma forma, para tratar de temas econômicos, poderia ter viajado também o titular da Economia, Paulo Guedes. Qualquer um dos dois teria mais utilidade na discussão de uma agenda assim do que o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), investigado no processo das fake news como o cabeça do chamado “gabinete do ódio”.

Na comitiva presidencial, havia Carlos e mais quatro ministros. O único não militar era o chanceler, Carlos Alberto Franco França. De resto, três generais: Braga Netto (Defesa), Luiz Eduardo Ramos (Governo) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). Em uma coletiva de imprensa após um dos encontros, França informou à imprensa que haviam discutido parcerias estratégicas entre os países envolvendo as áreas de pesquisa e de tecnologia militar.

Declaração enigmática
Voltando no tempo, ao passar pelo cercadinho na semana anterior à viagem, Bolsonaro disse algumas palavras enigmáticas/proféticas: “Nos próximos dias vai acontecer algo que vai nos salvar”. A declaração, na íntegra:

“Qual a diferença de uma ditadura feita pelas armas, como a gente vê em Cuba, Venezuela, em outros países, e uma ditadura que vem pelas canetas? Qual a diferença? Nenhuma. Vocês sabem que isso está acontecendo no Brasil. Acredito em Deus, mas nos próximos dias vai acontecer algo que vai nos salvar no Brasil. Tenho certeza disso.”

Nos “próximos dias”, Bolsonaro e sua comitiva foram à Rússia em meio ao turbilhão de tensões, desprezando qualquer prudência diplomática, como vimos. Mas qual seria a urgência da viagem? Os fertilizantes? Também, mas “a Rússia é uma referência mundial no desenvolvimento tecnológico, sobretudo no âmbito da Defesa”, responderia lá o chanceler França à imprensa.

Tecnologia pode mesmo ser uma palavra-chave aqui. Nos últimos anos, os russos têm sido mesmo referência tecnológica, por exemplo, em ataques cibernéticos direcionados. Um desses ataques mais conhecidos ocorreu durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos, em 2016. Investigações comprovaram, “com grande confiança”, que o governo russo interferiu no processo, favorecendo o republicano Donald Trump em detrimento da democrata Hillary Clinton.

A ordem para uma “campanha de influência” partiu, segundo a inteligência dos EUA, diretamente de Vladimir Putin, visando corroer o processo democrático. Para tanto, foram criadas milhares de contas falsas, robôs russos que semearam a discórdia nas redes sociais, espalharam fake news e erodiram a confiança do eleitorado. Mais: a investigação estadunidense chegou à conclusão de que serviços de inteligência russos piratearam contas de e-mail do comitê democrata e jogaram os conteúdos no WikiLeaks.

Uma peça importante em toda a estratégia de Trump rumo à presidência foi Steve Bannon, outra referência, mas em estratégia mundial da comunicação da extrema-direita, com contato direto e frequente, diga-se, com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que acompanhou Bolsonaro na visita ao então presidente dos EUA, em 2020, quando estavam à mesa com eles também os “gurus” Bannon e Olavo de Carvalho, este morto em janeiro.

Agora, em outra mesa, na própria Rússia, quem se sentou ao lado de Bolsonaro para discutir “pautas estratégicas” foi Carlos Bolsonaro. Na reunião com o presidente da Duma – estrutura legislativa equivalente à Câmara dos Deputados brasileira –, Vyacheslav Volodin, era ele quem estava ao lado do presidente. Uma foto do encontro, a que ilustra esta coluna, foi emblemática: Carlos ao lado direito do pai; na ponta da mesa, Braga Netto; fora da mesa, os outros dois ministros – Ramos em pé, encostado à parede, e Heleno sentado ao fundo, com a cabeça baixa, talvez mexendo no celular.

Juntando todas as peças do tabuleiro para pensar nesse jogo que foi jogado no país do xadrez, observam-se muitos militares, pouca pauta e nenhuma urgência real que não seja buscar juntar forças para uma “parceria” Rússia-Brasil durante as eleições. Conspiratório demais? Os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não acharam – pelo contrário, entenderam rapidamente a viagem e seu transcorrer como uma ameaça clara ao processo de outubro e reagiram para toda a imprensa ouvir – especialmente Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.

Até outubro, muita coisa vai rolar. As fake news de 2018, como a mamadeira de piroca e o kit gay, já são coisa do passado. Mas vêm novidades por aí. Pelo jeito, nada boas para a democracia brasileira, que neste momento aguarda também do aval das Forças Armadas às urnas. Bolsonaro já pôs todo o processo em descrédito sem ajuda externa. Imagina-se o que virá, então, combinando com os russos. Enquanto ele trava sua guerra fria particular com TSE e STF desde o início de seu mandato, estamos os brasileiros todos sentados no trono de Dionísio. Acima, a espada de Dâmocles pendurada por um fio.