“Patriotas” sob sol e chuva: a cereja do bolo de um governo malfadado

04 dezembro 2022 às 11h11

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Recordes de desmatamento; desmonte de estruturas de fiscalização ambiental; escândalos no Ministério da Educação; orçamento da União entregue à gula dos deputados; interferência nas polícias; relação abusiva com as Forças Armadas; aparelhamento da Procuradoria-Geral da República (PGR); multiplicação descontrolada das armas no seio da população; avanço da intolerância política; destruição das políticas públicas para as minorias; estouro do teto de gastos; descumprimento da meta inflacionária; irresponsabilidade fiscal com os Estados; falta de transparência com cartões corporativos; sigilos de cem anos; uso da máquina governamental para fins eleitorais; promoção de manifestações golpistas desde os primeiros meses de governo; ataques incessantes ao sistema eleitoral; evocação de fraudes (nunca comprovadas) nas urnas eletrônicas; sucateamento de recursos para as universidades e para pesquisas em geral.
Um parágrafo muito além do tamanho padrão normal escrito com apenas algumas das constatações do que ocorreu em quatro anos de desgoverno Bolsonaro. E, se o leitor reparar bem, vai perceber que nele nem se falou de Covid-19. Então, vamos ao próximo, dedicado recordar alguns dos fatos do período mais trágico da gestão que desencaminhou a Nação.
Menosprezo ao potencial danoso do vírus recém-descoberto; embate com as recomendações sanitárias iniciais, do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta – as mesmas da Organização Mundial de Saúde (OMS); ataques à política de isolamento social; enfrentamento com os governos estaduais por causa do fechamento temporário do comércio; promoção de aglomerações em eventos políticos em meio ao aumento de casos e mortes; desprezo à máscara como prevenção à contaminação; incentivo ao uso e à indicação médica de remédios e tratamentos sem comprovação científica; declarações desumanas em meio ao aumento do número de mortes e à dor das famílias das vítimas; demissão de dois ministros médicos que prezaram a ciência; nomeação de um general para a aplicação da cartilha negacionista do governo; política ostensiva de desacreditar as vacinas, que seriam “experimentais”; atraso na compra dos imunizantes, inclusive ignorando mais de uma centena de e-mails da farmacêutica Pfizer; irregularidades na aquisição de vacina e suspeita de negociação de propina, como descoberto pela CPI da Pandemia; negligência com cargas de oxigênio para o Amazonas; adoção de aplicativo para induzir pacientes a usar o chamado tratamento precoce; oposição flagrante à campanha de vacinação infantil contra a Covid-19.
A pandemia deixou 700 mil mortos. O Brasil teve quatro vezes mais vítimas do que a média mundial. Foi uma imensa tragédia dentro de outra enorme, que foi o desgoverno de Jair Bolsonaro (PL). Bastante coisa ainda haveria para relatar no primeiro parágrafo. Também sobre o caos da pandemia, da mesma forma. Muitas das mazelas ainda estão ocultas, justamente porque a única competência que teve o atual governo foi no quesito falta de transparência. Mesmo com as dificuldades encontradas pela equipe de transição para acesso a dados, já se sabe que o buraco é muito mais profundo.
Bolsonaro chega a sua antiapoteose no poder com mais um feito ruim: transformou apoiadores em uma seita que se reúne não em igrejas, mas diante de quartéis
Agora, Bolsonaro chega a sua antiapoteose no poder com mais um feito ruim inigualável na história brasileira: transformou seus apoiadores em uma seita dividida em células que se reúnem não em igrejas, mas diante de quartéis.
Há mais de um mês, multidões de autointitulados “patriotas” se espalham por todas as unidades federativas do País em busca de um socorro muito específico: orientadas por algo que não está registrado em nenhuma lei – menos ainda na Constituição –, essas pessoas acreditam que, se pressionarem às portas das áreas militarizadas, as Forças Armadas atenderão ao clamor e farão a vontade do “povo” – um “povo” bem específico, de forma a se apropriarem do termo que representaria o conjunto da Nação.
Mas qual é a “vontade” do “povo”? É a que se choca frontalmente com a vontade do povo, esta sem aspas: a de que, em 30 de outubro de 2022, o eleitorado brasileiro foi às urnas e elegeu, com 50,9% dos votos válidos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a sucessão de Bolsonaro.
Em um primeiro momento, logo depois do resultado oficial, houve bloqueio de rodovias em todos os Estados, um movimento indubitavelmente articulado – justamente porque mostrou a sistematização dessa estratégia, e as investigações devem chegar a esse fato –, mas ao qual se juntaram espontaneamente milhares de eleitores descontentes com o que as urnas mostraram. Mais do que isso, a aquiescência da Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi chocante: em alguns vídeos, agentes públicos de segurança mostram-se não apenas cordiais com os manifestantes, mas solidários com a causa. A PRF gentil com os “patriotas” foi a mesma que havia feito operação padrão no domingo de eleição, especialmente no Nordeste – principal base de Lula –, parando ônibus e outros veículos com eleitores que queriam votar.
Esse momento de tensão, em que o tráfego de pessoas, produção e mercadorias foi parado por motivos políticos, ficou para trás, em grande parte. Há, porém, resistências em Mato Grosso e Rondônia, principalmente. No município de Cacoal (RO), na quarta-feira, 30, o estresse mostrou-se fora do limite: um caminhoneiro queria passar e os manifestantes o impediam. Ele avançou sobre o acampamento e as pessoas que ali estavam, ferindo gravemente pelo menos uma.
É sinal de um descontrole que afeta ambos os lados. Mas só um está 24 horas a serviço de uma ideia. Os militantes “patriotas” acreditam tomar sol e chuva dia após dia por uma “causa maior”: a sobrevivência da Nação ao “comunismo”. Veem Lula como um tipo de anticristo, o qual, após instalar seu “reinado”, implantará a fome, a miséria, a promiscuidade, a homossexualidade, a pedofilia, a corrupção, o narcotráfico, o roubo etc. como políticas públicas.
Tratam Lula como se ele não tivesse governado o Brasil por oito anos, com índices e conquistas que o País jamais havia alcançado: consumo em alta, inclusive para os mais pobres; superávits recordes na balança comercial; quitação da dívida externa; grau de investimento nas classificações de riscos feitas pelo mercado; e, entre outras, o posto de 6ª economia do mundo.
Ao mesmo tempo em que resistem, esses “patriotas” oram aos céus – o componente religioso é fortíssimo – e criam afinidades e afetividades entre si. Muitos vão desistindo, mas os que insistem sentem-se cada vez mais unidos entre si. Formam-se laços de amizade, contatos são registrados em seus smartphones e os grupos de WhatsApp se reforçam. Está montada aí, independentemente do sucesso da atual missão, uma estrutura para futuras guerras.
Bolsonaro muito ajudaria se simplesmente reconhecesse a derrota nas urnas e falasse para as pessoas que o apoiam e se submetem a tamanho sacrifício por uma causa perdida: “Fizemos o que podíamos, muito obrigado a todos vocês, agora vão para casa”. Sabendo, porém, que o que elas querem ouvir é exatamente o contrário – a intervenção das Forças Armadas, com ordem por parte do presidente (o que chamam de “eu autorizo”) – ele se abstém, por vaidade ou pusilanimidade.
Como relatado lá no começo do texto, Bolsonaro errou em quase tudo durante seus quatro difíceis anos de mandato. Não seria no fim que acertaria alguma coisa.