O inquilino do Planalto se move inutilmente para virar o dono da cadeira, mas a cada solavanco que protagoniza mostra que pode ser tão nocivo quanto uma pandemia

Como diz uma máxima do capitalismo, crises são ocasiões de grandes oportunidades para quem com elas sabe lidar. O Brasil não precisaria de outra crise que não a da pandemia para encarar um grandíssimo desafio. Aliás, não poderia se dar ao luxo de erigir outras prioridades ao largo da urgência sanitária.

Um adversário dessa monta, com a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) – que, embora contestado, é robusto, com ótima capilaridade e elogiado mundo afora –, seria o suficiente para qualquer presidente buscar mostrar serviço. Bem sucedido no combate ao coronavírus, então, Jair Bolsonaro teria no colo a reeleição que busca a todo custo desde o dia em que pôs a faixa presidencial. Incom­preensivelmente, em nenhum momento essa foi sua intenção, como viríamos a saber nós e o mundo inteiro, ter o vírus como inimigo. Ao contrário.

Na semana “comemorativa” dos 57 anos do “movimento de 1964” – como esta gestão federal insiste em considerar o golpe cívico-militar que depôs João Goulart e instaurou a ditadura –, o Brasil bateu recordes de mortes diárias e de média móvel de óbitos pela Covid-19. Não há leitos disponíveis nos hospitais, a fila de espera nacional por UTI ultrapassa 6 mil pacientes e oxigênio, insumos e medicamentos para intubação estão no fim.

Um governante em sã consciência não teria outra preocupação. Pois nessa mesma semana, Bolsonaro esteve muito mais ocupado em reagir ao “estado de xeque” em que foi colocado pelos presidentes de Câmara e Senado, especialmente Arthur Lira (PP-AL), que falou em “remédios amargos e até fatais” se o Planalto não entrasse na linha. Em outras palavras, o deputado disse que o impeachment é logo ali.

Ernesto Araújo, agora ex-ministro de Bolsonaro: dupla desfeita tarde demais | Roque de Sá / Agência Senado

Se ele não pensa em pandemia nem na rotina normal, imagine quando acuado. Na esteira de demitir o inexplicável ministro das Relações/Alucinações Exteriores, Ernesto Araújo, entregando-o ao Centrão, aproveitou para testar sua força com os militares. Demitiu o ministro da Defesa, que foi trocado por se negar a cooptar o Exército a trabalhar politicamente para o (des)governo de Jair Bolsonaro. Fernando Azevedo e Silva já havia feito mais movimentos estranhos ao posto do que funcionalmente deveria, mas seu chefe queria ir além.

No enigmático mundo paralelo do presidente da República, chamar as Forças Armadas a sair de seu papel constitucional para lhe ladear palanque contra supostos adversários– no caso, governadores (quase todos) e prefeitos que implantaram, a alto custo político, restrições ao comércio e à circulaçãopara conter casos e mortes por Covid-19 – é apenas uma tarefa normal de reação da “gente de bem” a quem estaria “esticando a corda”. E o que é esticar a corda, na visão de Bolsonaro? Insistir em medidas para evitar a propagação do vírus e, assim, reduzir contágios, internações e mortes.

Aventura golpista
O presidente, então, descobriu que o “meu Exército” era delírio com grande dose de “wishful thinking”. Ao forçar a saída de Edson Pujol, o chefe da maior das três forças militares, Bolsonaro ganhou de brinde a entrega dos cargos de comando também na Marinha e na Aeronáutica. Sinal claro que de não embarcariam em sua aventura descaradamente golpista.

Porém, ato contínuo, seu líder na Câmara dos Deputados, o Major Vítor Hugo, do PSL e eleito por Goiás – embora sem raízes no Estado – na carona dos votos do Delegado Waldir, entrou em cena. Apresentou um projeto de lei absurdo e tentou acelerar ao máximo sua votação: era a mudança na interpretação do que seria uma decretação de Mobilização Nacional (exclusiva para momentos de conflitos bélicos com outra Nação), para que, a pretexto de combater o coronavírus, o chefe do Executivo ganhasse poder absoluto sobre servidores públicos civis e militares. Inclusive as polícias estaduais. Era a tentativa de legalizar um golpe usando como justificativa um comando sobre a pandemia que nunca quis assumir não colou.

Bolsonaro é assim: precisa fabricar crises, uma atrás da outra, para que não tenha de governar, coisa que não quer e que, mesmo se quisesse, não demonstrou ter capacidade alguma até o momento. Desde sua posse, contam-se nos dedos das mãos as semanas transcorridas sem pelo menos um sobressaltovindo de Brasília. As cortinas de fumaça não são para aprovar projetos questionáveis ou impopulares – embora essas “boiadas” possam até passar, como efeito colateral –, mas para movimentar o cenário político com polêmicas enquanto o presidente continua a fazer o de sempre: nada durante os dias úteis e aglomerações aos sábados e domingos.

Voltando ao começo do texto, curiosamente, a Covid-19 é a única crise de que ele não quer cuidar. Pelo contrário, a despeito de todas as advertências da ciência e dos próprios políticos, Bolsonaro trabalha sempre para blindar a pandemia de quem quer combatê-la. É praticamente seu sócio, mandando, de seu lugar privilegiado de poder, contrainformações e mentiras para que seus seguidores espalhem. Se pode atrapalhar, pra que ajudar?

Nesta semana, novamente, o presidente da República fez de besta os outros Poderes e demais instituições. Na quarta-feira houve um encontro entre o já citado Arthur Lira mais o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Na pauta, a unificação nacional dos esforços entre governadores, prefeitos, Parlamento e governo federal para o combate à pandemia. Com pregação de uso de máscaras, de isolamento e distanciamento social e tudo o mais. Que lindo seria se fosse, mas não é.

É que meia hora depois estava lá Jair pregando contra um lockdown que só ele viu até hoje e falando que governadores tiram o “ir e vir” dos cidadãos de uma forma mais grave que um estado de sítio. E sentenciou: “A fome mata mais do que o vírus!”. Realmente, todo dia no Brasil devem estar morrendo de 3 mil a 4 mil pessoas sem ter o que comer, mas elas disfarçam muito bem com aquele jeito asfixiante e intubado de que é por Covid.

Talvez a maior referência da diplomacia política, Nicolau Maquiavel já escrevia meio milênio atrás: “Nunca se deve deixar prosseguir uma crise para escapar a uma guerra, mesmo porque dela não se foge, mas apenas se adia para desvantagem própria.”

Bolsonaro leu Ustra, não Maquiavel. Há aí um grande abismo intelectual e moral. E o Brasil? Pobre Brasil, continua no limbo entre a morte do velho sistema e o surgimento de algo novo, como diria outro pensador, Antonio Gramsci, segundo o qual “nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”. Até se sabe quando, continuaremos a conviver com a pandemia de Covid e o pandemônio de Bolsonaro.