Embora uma quantidade enorme de brasileiros considere a democracia um “item opcional” – o que se demonstrou na assustadora votação de Jair Bolsonaro (PL), não obstante todas as temeridades contra as instituições que ele cometera durante seu desgoverno –, uma das grandes motivações do apoio e do voto para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi exatamente o entendimento de que ele seria a chance de tornar o País a seu curso normal, abandonando a perigosíssima trilha do extremismo.

Junte-se a isso o fato de o petista, a despeito de seus detratores o tacharem de “radical”, nunca ter tomado de fato quaisquer medidas extremas na economia ou na política em dois mandatos presidenciais e o Brasil passou a ter – como, aliás, tem –, com o início do governo Lula 3, uma oportunidade de retomada de seu desenvolvimento socioeconômico, estagnado há pelo menos dez anos.

Nesta semana, a nova gestão completa cem dias de Palácio do Planalto. Com altos e baixos, como qualquer governante, Lula administra hoje um País com dificuldades diferentes daquelas que enfrentou ao assumir o mesmo cargo vinte anos atrás, então como um novato na função. Agora, há um mundo à beira do colapso ambiental; após uma pandemia que matou milhões pelo mundo e 700 mil apenas no Brasil, além de retrair a economia; com uma nova guerra fria ganhando corpo; e uma revolução tecnológica baseada na corrida pela inteligência artificial, de consequências ainda incertas.

Ironicamente, neste nem tão admirável mundo novo, o veterano político foi introduzido da forma mais arcaica: numa tarde de domingo, os negacionistas da democracia que exigiam uma intervenção militar para que o novo governo não assumisse tomaram as rédeas da própria loucura e tentaram um golpe de Estado, invadindo as sedes dos três Poderes.

E foi já aí, com exatamente uma semana desde sua posse, sem dúvida o ponto mais alto do desempenho de Lula: a reação imediata à intentona de 8 de janeiro. Mesmo fora de Brasília – ele estava visitando Araraquara (SP), que havia sido atingida fortemente por uma tempestade –, conversou com o ministro da Justiça, Flávio Dino, e bateu o martelo em decretar intervenção federal, mas apenas na segurança pública do Distrito Federal. Na manhã do dia seguinte, o governador Ibaneis Rocha estaria afastado do cargo por Alexandre de Moraes, a polícia desmontava o acampamento em frente ao quartel de Brasília e prendia os golpistas.

A experiência do petista contou bastante no episódio: colocando a responsabilidade pela segurança do Distrito Federal nas mãos de um interventor civil – o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli –, optou pelo primeiro “degrau” da escalada de medidas de repressão ao golpe. Como ele mesmo ressaltou após o evento golpista, decretar intervenção militar seria assinar atestado de que não tinha condições de governar e tornar-se, no máximo, um “pato manco” – expressão usada nos Estado Unidos (“lame duck”, em inglês) para um governante sem poder na prática – com sete dias de mandato.

No fim da segunda-feira, depois de reunir no Palácio do Planalto governadores de todos os Estados, o presidente puxou uma marcha com eles e os comandantes dos três Poderes, atravessando a praça até o Supremo Tribunal Federal (STF). Uma ação objetiva (a intervenção na segurança pública do DF) e uma ação simbólica (a reunião de todas as maiores autoridades do País para rechaçar o golpismo. Talvez outro governante menos maduro não tivesse a proatividade necessária nem o carisma suficiente para juntar forças e o destino da Nação ficaria em xeque. Sem dúvida, a figura de Lula, não obstante a forte divisão ideológica – que ainda prossegue –, foi fundamental para evitar maiores consequências institucionais.

Ainda em relação a questões de estresse institucional, ele acertou também na pronta demissão do general Júlio Cesar de Arruda, que resistiu a recuar na nomeação do tenente-coronel Mauro Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e envolvido em um processo sobre caixa 2, para o estratégico Batalhão de Ações e Comandos, em Goiânia.

Na política social, o anúncio da recriação dos programas Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos – extintos ou deformados com o bolsonarismo no poder – foi um alento importante para seu eleitorado, maior na parcela mais carente da população brasileira.

No plano internacional, Lula agendou visitas com os três principais parceiros comerciais: Argentina, Estados Unidos e China, para onde a viagem oficial foi adiada por motivos de saúde – Lula teve uma pneumonia leve que requereu cuidados.

Para os rumos do Brasil que precisa sair do atoleiro econômico, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com seu “novo arcabouço fiscal”, foi peça essencial para tirar qualquer expectativa de medidas radicais do PT no governo. Pelo contrário: a nova âncora fiscal, com pesos e contrapesos, consegue ser keynesiana sem parecer que seja. Até a entidade mercado, sempre reticente a Lula e a tudo que não considere liberal, não demonstrou reação negativa.

Tensão
Os momentos mais tensos para Lula nestes cem dias envolveram suas falas. Uma controversa e outra desastrosa. A primeira diz respeito ao bate-boca público que iniciou com o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, sobre a taxa básica de juros, a Selic, que desde agosto de 2022 segue em 13,75% ao ano, colocando o Brasil como o país de maior juro real do mundo (7,38%). Há dois aspectos embutidos no mesmo confronto: um é a disputa pela redução ou não da taxa, em que o petista tem o apoio de grande parte do empresariado e mesmo de banqueiros; outro é a contestação, por Lula, da autonomia do BC, aprovada no governo Bolsonaro e que é referendada pelo mercado e pela mídia hegemônica. A queda de braço segue, ainda, sem previsão de vencedor.

O ponto mais desastroso de Lula, com toda a certeza, foi a inconfidência sobre seus sentimentos, quando na cadeia, em relação a Sergio Moro (Podemos). O então juiz que o havia condenado hoje é senador da República eleito pelo Paraná. Em entrevista ao Brasil 247, talvez se sentindo mais à vontade por falar a um portal “amigo” (de militância na esquerda), o petista confidenciou que, naquele momento, achava só ficaria bem quando “fodesse” com “esse Moro”.

No dia seguinte, houve a Operação Sequaz, que desbaratou um esquema ligado a uma organização criminosa para sequestrar e até matar autoridades, entre elas o ex-juiz. Completando a tríade de desastres, o presidente declarou que desconfiava que a operação, comandada pela Polícia Federal e elogiada por seu ministro da Justiça, talvez fosse “armação do Moro”.

Nenhuma lei importante para o governo foi aprovada até o momento, mas, pelo próprio calendário do poder em Brasília, isso não é incomum. Há muito a negociar com um Congresso que nunca esteve tão conservador e empoderado. Mais do que sempre, Lula vai precisar gastar todo seu talento de articulador para aprovar reformar e ganhar governabilidade.