A zona cinzenta com o derretimento dos índices do presidente virou o ponto de esperança para quem quer ser opção contra esquerda e extrema-direita. Mas não é tarefa fácil

“Política é como nuvem. Você olha, ela está de um jeito. Olha de novo, e ela já mudou.” A frase é do político mineiro Magalhães Pinto, que governou Minas Gerais de 1961 a 1966 e hoje dá nome ao Mineirão, o principal estádio de Belo Horizonte.  

Magalhães Pinto morreu em 1996, mas a frase segue tão viva quanto se ele a dissesse hoje. É da essência da política essa volatilidade que dá margem à metáfora, que pode ser entendida também com outro contexto, do chanceler e unificador da Alemanha, Otto von Bismarck: “A política é a arte do possível”, disse o nobre prussiano.

O preâmbulo dos parágrafos iniciais é para deixar óbvio que a recém-divulgada pesquisa Datafolha – o qual, a despeito dos ataques recebidos, especialmente de bolsonaristas, continua a ter a maior credibilidade entre os institutos que fazem esse trabalho – reflete tão somente um determinado momento no caminho eleitoral para o Planalto em 2022. Momento: uma pandemia que já passa de um ano e matou meio milhão de brasileiros (jogando a subnotificação para baixo, é bom dizer), vacinação incerta, alto índice de desemprego, uma economia sem comando, governo atual, alvo de suas ações e inações, enredado por uma CPI no Congresso e um ex-presidente “descondenado” e livre para concorrer a seu antigo posto.

 

O Datafolha mostra Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com grande vantagem para Jair Bolsonaro (sem partido) nas intenções de voto tanto no primeiro turno (41% a 23%) como no segundo (55% a 32%). Junto ao cenário eleitoral, vem também a maior reprovação do mandato do atual inquilino do Planalto: o presidente tem 24% de ótimo/bom e 45% de ruim/péssimo na avaliação de desempenho como governante. Respectivamente, são o menor e o maior índices desde que tomou posse, em janeiro de 2019. A rejeição nas urnas é também recorde: 54% não votariam nele de jeito nenhum em 2022.

O atual cenário abre o flanco para uma curiosa possibilidade: e se Bolsonaro continuar a derreter nas intenções de voto? Ele, num cenário extremo, se tornaria um José Sarney de 1989 ou um Michel Temer de 2016, presidentes cuja rejeição os deixaram “radioativos” de tal modo que nem os próprios candidatos de seu partido (era o mesmo para ambos, o PMDB/MDB) os queriam por perto no palanque?

Não. No caso do “mito” é bem diferente. Repetir Sarney/Temer é algo, senão impossível, bem improvável que aconteça. É que nem Sarney nem Temer tinham em quem se apoiar. À época das eleições quando estavam à frente do poder, eram absolutamente impopulares – não por coincidência, ambos tinham sido vices de suas chapas.

Com Jair, é diferente. Ele tem uma militância que por ele luta, ainda que seu séquito – o qual, este sim, ele poderia chamar de “meu exército” (assim, com letras minúsculas) quando quisesse – esteja diminuindo de tamanho, ao mesmo tempo em que sintomaticamente aumenta o próprio barulho para parecer maior do que tem ficado. No meio de uma pandemia em que a oposição se resguarda de aglomerações e assiste da varanda ao derretimento do arquirrival, quem não tem medo de aglomerações aproveita o palco.

Na cabeça de Bolsonaro, não há outra hipótese que não seja continuar presidente – pelo menos – até 2026. Sentir que isso está escapando por seus dedos o faz subir o tom, dar declarações golpistas e irresponsáveis e a se render aos políticos-empresa, aqueles que negociam (na verdade, a palavra certa é “alugam”) seu apoio por determinado preço, independentemente de ideologia. Junte-se a isso a complicação cada vez maior causada pelo avanço da CPI, inclusive para sua família, e temos uma série de movimentos tempestuosos.

Brincando com os números
Pensando na continuidade do ciclo democrático, voltemos ao quadro de intenções de voto no primeiro turno. Nele, as porcentagens da pesquisa são: 41% (Lula), 23% (Bolsonaro), 7% (Sérgio Moro – sem partido), 6% (Ciro Gomes – PDT), 4% (Luciano Huck – sem partido), 3% (João Doria – PSDB), 2% (Luiz Henrique Mandetta – DEM) e 2% (João Amoêdo – Novo).

Agora só os números porcentuais, sem os nomes: 41, 23, 7, 6, 4, 3, 2 e 2. Somando-se, então, todos os demais em relação ao primeiro, o total seria 47% a 41%.

Ora, pelos dados, há muito mais competitividade entre o todo restante (Bolsonaro e demais) em relação ao líder do que uma disputa equilibrada pela ponta da tabela (Lula x Bolsonaro), certo? Em outras palavras, se as eleições fossem hoje, pelo exposto na pesquisa o que estaria em discussão não seria quem apoiaria quem num segundo turno, mas se haveria segundo turno.

Isso pode ser chamado de “polarização”? Com muita condescendência, sim – se fosse num polo Lula e noutro polo os demais, entre eles o presidente da República.

Mas há mais a perceber: se há um nítido descolamento de Lula em relação aos demais, incluindo Bolsonaro, há também o mesmo descolamento deste para os outros menos lembrados. Lula está folgado na liderança, Bolsonaro também tem grande vantagem como 2º colocado.

O problema é que o viés do presidente é de queda. E quando mais Bolsonaro cai, maior a chance de Lula ganhar em um primeiro turno. Para voltar a polarizar com o PT, o presidente teria de provar para eleitores do pelotão de coadjuvantes que ele é a única opção para “salvar o país da esquerda”. Ora, não foi isso foi o que ocorreu em 2018? Se, sem ser conhecido, Bolsonaro conseguiu aglutinar essa força, por que governando, com o poder na mão, não consegue? Óbvio: porque ele vem demonstrando ser totalmente incapaz para o cargo.

Cria-se, nessa zona cinzenta, o ponto de esperança para quem é ao mesmo tempo antipetista e antibolsonarista. Para que isso se viabilize, o terceiro bloco precisa, se deseja ser alternativa ao líder e ao vice-líder, criar desde já um nome que se mostre forte o bastante para enfrentar Lula, aparentemente consolidado como favorito. Para isso, duas coisas complicadíssimas: 1) convencer quem não é bolsonarista raiz, mas ainda está com ele por conta do antipetismo, de que Bolsonaro não é mais a melhor opção para derrotar Lula e o projeto da esquerda; 2) conseguir desgastar o petista, que já passou por todas as provas de fogo possíveis a um político, inclusive prisão por corrupção (ainda que agora com as sentenças anuladas), de modo que Lula não herde eleitores frustrados de um Bolsonaro em derretimento.

Ironicamente, o antipetismo que elegeu Bolsonaro é o mesmo que agora poderia derrubá-lo. O atalho para alguém do pelotão do “centro” disputar com chances de derrotar Lula é que o presidente atual se torne carta fora do baralho. Eleitoralmente, um impeachment via CPI da Pandemia seria, portanto, um presente dos céus para essa turma. E um presente de grego para os candidatos da extrema-direita e da esquerda.

Falta combinar com os russos. Ou com as nuvens. Mas a política segue sendo a arte do possível.