Fernando Henrique Cardoso (PSDB) era presidente em mandato único, mas encurtou primeira gestão para impedir chegada do PT ao Planalto

No meio político, fez certo barulho o artigo “Reeleição e crises”, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), publicado na noite de sábado, 5, nos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo. O texto opinativo tem 14 parágrafos, mas o que importa mesmo são os quatro últimos trechos do artigo de FHC.

Até o 10º parágrafo, o artigo é praticamente dispensável, até pela análise equivocada de Fernando Henrique sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, a quem o ex-presidente praticamente isenta de todos os erros na política monetária até aqui. Não podemos ignorar, o que FHC também não perde de vista, a crise que a pandemia causaria nas finanças brasileiras, como confirmou a queda de 9,7% no Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestres de 2020.

Mas toda a argumentação do tucano se constrói para focar no que interessa apenas no 11º parágrafo, quando Fernando Henrique diz “cabe aqui um ‘mea culpa‘”. A partir daqui, FHC discute o instituto da reeleição, criado pelo tucano em 1995 e aprovado pelo Congresso Nacional em 1997. Até então, o mandato no Executivo durava cinco anos e não abria espaço para uma nova eleição seguida ao fim da gestão.

Aceitou?

“Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição”, alega FHC no artigo. O que não é verdade. Na sequência, no parágrafo seguinte, Fernando Henrique afirma parte do que o levou a propor a reeleição, com os mandatos encurtados para quatro anos: “Fui acusado de “haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória… do Lula”.

Curioso o fato de o tucano não querer discutir a denúncia, inclusive de dois parlamentares que renunciaram aos mandatos quando o suposto esquema de compra dos votos dos deputados e senadores veio a público. Outro trecho do artigo de FHC chama atenção. “Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade”.

O modelo norte-americano, de fato, é o mais interessante. Está aqui a única frase do artigo de Fernando Henrique Cardoso com a qual concordo integralmente. Mas, em seguida, o tucano diz que a existência da reeleição faz com que o governante trabalhe dentro do possível ou do impossível para que seja reeleito depois de quatro anos. FHC esqueceu de comentar que criou o instituto, ao mudar a Constituição Federal por meio de uma emenda, em benefício próprio.

Benefício próprio

Seria mais honesto se FHC tivesse trabalhado pela aprovação da possibilidade de reeleição se não usasse a nova eleição para, ao invés de cinco anos, ficar oito anos no Palácio do Planalto. “Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de quatro anos é pouco para ‘fazer algo'”, alega o tucano, que foi eleito em 1994 para ocupar por cinco anos a cadeira de presidente da República. Veja que o discurso não bate.

Meio tarde o ex-presidente querer fazer um meia-culpa incompleto para propor que voltemos ao mandato único de cinco anos sem possibilidade de disputar reeleição. Há 25 anos, quando apresentou a proposta de criar a reeleição e encurtar cada mandato para quatro anos, por que não aventou a possibilidade de criar uma cláusula de barreira para presidentes, como existe nos Estados Unidos, para onde confessou que olhou?

“Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos”, aponta FHC no artigo. Por lá, o presidente reeleito não pode mais disputar o cargo. Para citar os casos mais recentes, Bill Clinton, George W. Bush e Barrack Obama foram reeleitos e, por isso, não podem mais entrar na corrida eleitoral para a Casa Branca.

23 anos depois

23 anos depois da aprovação da reeleição que impediu o petista Luiz Inácio Lula da Silva da provável chegada ao Palácio do Planalto em 2000 – vale ressaltar que, mesmo na liderança das pesquisas pré-eleitorais, ninguém tem como responder se de fato Lula seria eleito pelos brasileiros em 1999 -, FHC propõe o debate da volta ao mandato de cinco anos sem direito a disputar a próxima eleição.

Quando o tucano afirma que “de pouco vale desmentir” a acusação de que teria comprado parlamentares para aprovar a reeleição, os jornalistas Elio Gaspari e Palmério Dória são enfáticos ao apontar que o que ocorreu foi um crime. Os registros da época apontam que o então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, arquivou a denúncia e não quis investigar o esquema de pagamento de centenas de milhares de reais a deputados. Brindeiro ficou conhecido como “engavetador-geral da República”, principalmente pelas suspeitas que envolvem a reeleição no Brasil.

Elio Gaspari escreveu no texto “FHC reconheceu a ruína que criou“, publicado na Folha de S.Paulo na terça-feira, 8, que o ato do ex-presidente de propor e aprovar a reeleição “foi mais que um erro, foi um crime e ele [Fernando Henrique] sabia disso desde a primeira hora, há 25 anos”. No artigo, o tucano defende, além do fim da reeleição e a volta do mandato de cinco anos, as eleições distritais. Todas essas possibilidades foram descartadas ou não andaram no Congresso quando houve a minirreforma eleitoral de 2016.

Fim das coligações proporcionais

Uma das mudanças para a eleição proporcional, de deputado estadual, deputado federal e vereador, entra em vigor no pleito de 2020. É o fim das coligações partidárias para as cadeiras do Legislativo municipal, estadual e Câmara dos Deputados. As chapas de vereadores serão puras. O que isso significa? Apenas candidatos do mesmo partido em cada chapa. Ou seja, a discussão já foi vencida ou abandonada pelo Congresso.

Não seria prudente mudar, novamente, a regra para agradar o criador da reeleição, que usou do instituto para se beneficiar eleitoralmente, o que agora acusa todo ocupante de cargo eletivo no Executivo de fazer. Estaria FHC a advogar contra uma possível reeleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 2022?

“Caso contrário, volto ao tema, o ministro da Economia, por mais que queira ser racional, terá de fazer a vontade do presidente.” Já no final do artigo, FHC tenta justificar o que disse nos parágrafos anteriores ao meia-culpa incompleto, que Paulo Guedes não terá o que fazer, mesmo que aponte para o rumo correto para conter o aumento do gasto público.

Justificativa econômica

“Este trombou com a crise, pela qual não é responsável. Não importa, vai pagar o preço: tudo o que era seu sonho, cortar gastos, por exemplo, vira pesadelo, terá de autorizá-los. E pior: como é economista, sabe que a dívida interna cresce depressa, e sem existir mais a alternativa da inflação, que tornava aparentemente possível fazer o que os presidentes querem – atender a todos ou à maioria e ganhar a reeleição. Só resta o falatório vazio. Este cansa e é ineficaz num Congresso que, no geral, também quer gastar e igualmente pensa nas eleições.”

Havia dito, no início da coluna, que toda a argumentação de FHC é vazia. Aqui justifico o que afirmei. É sim sem propósito, porque as alegações apresentadas de que Guedes será obrigado a atender ao ímpeto da reeleição de Bolsonaro, com a necessidade de gastar ainda mais no pós-pandemia, existe porque o próprio ex-presidente criou a reeleição. Pela interpretação do tucano, faltou explicar que, se essa realidade existe, o grande culpado é Fernando Henrique, que desvalorizou o real para manter no poder por mais três anos.

“Acabar com o instituto da reeleição e, quem sabe, propor uma forma mais ‘distritalizada’ de voto são mudanças a serem feitas. Esperemos…” Outro ponto curioso no artigo de FHC é justamente a esperança depositada em uma política mais coerente. Qual? A que o tucano não fez? O jornalista Reinaldo Azevedo descreve que a reeleição foi ruim para Fernando Henrique, Lula da Silva, Dilma Rousseff e fez mal ao País.

Casuísmo

Já o também jornalista Edurado Oinegue alega que não é hora de mudar a regra, mas sim corrigir as falhas no sistema que já existe, sem alterações no modelo. Vejo como modelo ideal o norte-americano, com impedimento ao reeleito de disputar outra eleição para presidente, o que impediria FHC, Dilma e Lula de serem candidatos ao Palácio do Planalto uma terceira vez. Mas não é essa a regra no Brasil, por isso mesmo não vejo necessidade de discutir o assunto.

Sugiro a FHC que volte a trabalhar nas bases do PSDB, já que pretende ajudar a melhorar o processo eleitoral. Porque assistimos diariamente a ala considerada intelectual dos tucanos ser atropelada pelo modelo do governador João Doria de fazer política partidária, que não respeita aliados, filiados e atropela quem tentar impedir seus planos. Fernando Henrique precisa ser respeitado por ter ocupado a cadeira de presidente da República eleito duas vezes, mas ideias pautadas pelo casuísmo não merecem nem discussão.

“Não há o que a faça parar, muito menos um ajuste fiscal, por mais necessário que seja. E tudo o que o presidente fizer será visto pelas mídias, como é natural, como atos preparatórios da reeleição. Sejam ou não.” Por mais que as palavras de FHC pareçam ter sentido, tudo deixa de ter nexo quando olhamos para o que ocorreu no primeiro mandato do tucano para permanecer no poder.

Oportunidade eleitoral

Fernando Henrique se igualou no artigo ao pronunciamento de Lula na segunda-feira, 7, quando o petista disse que usou a quarentena para pensar nos erros que cometeu, mas logo mudou de assunto. É uma meia-culpa sem autocrítica. Parece sincera, mas é só o momento a se mostrar como uma oportunidade eleitoral, para si ou seu grupo.