Ninguém na República poderia escrever uma biografia em dois tomos, ambos, até o momento, com o mesmo final épico: uma situação difícil, a ascensão, tropeços nesse caminho e uma vitória gloriosa como fecho. Apenas Luiz Inácio Lula da Silva tem esse privilégio.

Primeiramente, é preciso dizer que o primeiro volume já seria por si só enredo de filme – como aliás se tornou, embora com viés hagiográfico, com “Lula, o Filho do Brasil” (2009), dirigido por Fábio Barreto com base no livro homônimo de Denise Paraná. O homem que passou fome quando pequeno, foi forjado nas negociações do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, fundou um partido e, depois de uma sequência de desanimadoras derrotas, se tornou, mais do que presidente por duas vezes, uma lenda viva da política nacional.

Barreto – que, após um acidente no fim do ano dessa filmagem, ficou praticamente dez anos em coma até morrer, em 2019, aos 62 anos – nunca imaginaria que o “gran finale” do último longa-metragem que faria, na verdade, só contaria até a metade da história. O que veio a partir do governo Dilma Rousseff, a sucessora que Lula bancou – e que se deu mal exatamente por não fazer o jogo da política que seu padrinho sabe tão bem –, foi uma sequência de “plot twisters” da vida real.

Primeiro, em março de 2016 o ex-presidente foi impedido de ser ministro por uma manobra em conjunto de um juiz – o lavajatista, ex-ministro e hoje senador eleito Sergio Moro (UB-PR) – e um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, a partir de um áudio vazado irregularmente pelo próprio Moro. Menos de dois depois, Dilma foi afastada da Presidência por um processo de impeachment que se revelaria ser injusto e sem base legal.

Depois, com base apenas em delações premiadas e um processo com altas doses de lawfare – o que ficaria evidenciado, em 2019, pelo vazamento de extensos diálogos entre procuradores e o próprio Sergio Moro via Telegram, no caso que ficou conhecido como Vaza Jato –, Lula foi condenado a mais de nove anos de prisão. Não resistiu, não tentou fugir. Foi para a custódia do Estado e lá aguardou por justiça. Foram 580 dias em um cômodo da Polícia Federal de Curitiba, até que o STF decidisse retomar o que está na Constituição: não há reclusão sem trânsito em julgado e condenação em segunda instância não era motivo para isso. Depois veio o reconhecimento de que Moro nem deveria ter pego o processo do petista, o que causou a nulidade de suas sentenças. Teve mais: em seguida, sua suspeição como juiz foi afirmada pelo pleno do tribunal. O hoje senador entrou para a história do Judiciário como parcial, um magistrado com lado.

Lula ficou livre, não só como cidadão, mas como homem público. Pôde concorrer às eleições presidenciais e venceu o pleito contra alguém que tentava a reeleição, um fato inédito na República – e isso em uma luta totalmente desigual, davídica, contra uma máquina governamental deslealmente (e ilegalmente) usada pelo adversário. A história fica mais bonita quando se vê que, para derrotar aquele que colocava em risco a democracia, o petista uniu de esquerdistas convictos a ultraliberais que até então lhe torciam o nariz. Uma frente ampla e necessária.

Do canto da cela para a cadeira de presidente da República. Um novo roteiro de filme. Muito mais: um novo mandato para poder reconstruir, além de um País destroçado, também a própria trajetória. Sim, porque o enredo não se fecha com a abertura das urnas.

Pelo contrário: as nações do mundo querem o Brasil de volta ao convívio depois de se autoexilar como pária por quatro anos. Mesmo sem tomar posse, Lula foi uma das principais estrelas da COP27, a cúpula sobre mudanças climáticas que ocorre no Egito. Para os líderes mundiais, ele já é o presidente de fato do Brasil.

Lula tem tudo nas mãos para fazer um governo de excelência. Só não pode atravessar a rua para pisar na casca de banana. Infelizmente, foi o que fez ao entrar em um avião particular para viajar até a reunião no norte da África. Já não importa se o transporte foi cortesia, carona ou fretado. Não houve transparência na comunicação e esse é o ponto.

Lula precisa se portar como uma mulher de César do Brasil do século 21. Não vai lhe bastar ser honesto: terá de parecer honesto o tempo todo

Sim, é verdade que a imprensa hegemônica “vigia” Lula e o PT muito mais de perto do que fazia com Fernando Henrique e seu PSDB, por exemplo. Assim como é verdade que desistiu de cobrar do atual presidente o que ele jamais entregaria e passou a tratar aberrações diárias como fatalismos, porque causadas um governo distópico que não deve ser levado a sério.

Por ter uma margem minúscula para erros enquanto há uma multidão de extremistas sedenta de sangue, o petista precisa se portar como uma mulher de César do Brasil do século 21. Não vai lhe bastar ser honesto: terá de parecer honesto o tempo todo. Pior – ou mais desafiador ainda: precisará de uma equipe de governo que assim proceda também, porque qualquer denúncia será vista com lupa pela oposição (e pela imprensa). Isso se contar apenas a ala leal de opositores e jornalistas.

É preciso fazer essa separação porque para a direita derrotada, bolsonarista, não será necessário nada de real: as fake news – que em dez dias já inventaram pelo menos três doenças graves e um clone de dez dedos para Lula – serão um imenso obstáculo a derrotar dia após dia. Lula e equipe serão Sísifo no trabalho diário de levar a pedra ao cume e vê-la rolar para repetir a tarefa no dia seguinte.

Errar todo mundo erra e todo mundo vai errar. Lula e equipe, inclusive. Mas é preciso que, diante de tropeços, haja sempre boa vontade em explicar o que terá ocorrido e muito dinamismo para esclarecer – se for o caso, abrir investigação prontamente. O futuro governo precisa ser o oposto do atual: sai o sigilo de cem anos, entra a transparência de 48 meses.

Obviamente, a economia precisa caminhar bem e essa parte nunca foi problema durante os oito anos em que o petista já esteve no Planalto. O cenário mundial é incerto e até sombrio, diante das guerras de fato e de blefes, bem como mudanças climáticas cada vez mais aparentes. Ainda que tudo não vá 100%, Lula pode ter (e terá) um grande crédito se conseguir apresentar um governo cristalino. Deveria ser – e talvez seja –, para ele, uma questão de honra. Alguém que ficou na cadeia por tanto tempo em um processo tão estapafúrdio sabe o que significa ter o nome limpo. Talvez, muito mais de que uma revanche contra algozes que viraram políticos, seja isso que Lula queira. Seria muito altivo de sua parte, como tem sido até aqui sua condução desde que foi proclamado eleito. Não pode é, de novo, brincar de pegar jatinho sem explicar como. É coisa pouca diante de 700 mil mortes em uma pandemia, mas não deixa de ser uma cobrança justa dentro de um Estado que, pretendemos, volte a ser democrático de Direito.