Liberalismo do governo Bolsonaro esbarra no autoritarismo inflado por rede de mentiras
01 dezembro 2019 às 00h00
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Descontentes com o freio no crescimento econômico durante o primeiro governo Dilma, população aderiu ao discurso do contra tudo que veio a partir da redemocratização: MDB, PSDB e PT
“Peço desculpas, as mais sentidas e as mais humildes, aos brasileiros que passaram por constrangimentos, traumas, medos, incertezas e dramas pessoais com o bloqueio do dinheiro. Lamento que tenha acontecido. Hoje, não faria de novo.” Este era o ex-presidente cassado e senador Fernando Collor (Pros-AL) em uma entrevista à Rádio Senado em março de 2010. Collor, o caçador de marajás, como se vendia na campanha presidencial de 1989 pelo PRN, acusou o adversário de segundo turno, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, de uma ameaça de confisco à poupança do povo brasileiro.
Como vemos pelo início do texto desta coluna, Collor foi quem confiscou o dinheiro que o brasileiro tinha no banco. Eleito na primeira eleição após a redemocratização, o caçador de marajás adotou, no início de seu governo, uma medida chamada “empréstimo compulsório”, que deixou os correntistas com apenas 50 mil cruzados, o que equivalia a R$ 6 mil, em suas contas corrente ou poupança. O dia do anúncio do confisco foi 16 de março de 1990.
Collor propagou que foi injustiçado ao sofrer ao ser destituído do cargo por meio de um impeachment no Congresso em 29 de dezembro de 1992. “A minha queda começou na Avenida Paulista, com a insatisfação dos que perderam suas reservas de mercado, seus privilégios.” Na entrevista de 2010 à Rádio Senado, o ex-presidente pelo Partido da Renovação Nacional, que em 2000 muda de nome para Partido Trabalhista Cristão (PTC), diz que acusou o petista de querer confiscar a poupança do brasileiro para se esquivar de um problema eleitoral.
Ao ser indagado por afirmar na campanha que garantiria a preservação da poupança, o senador nega. “Eu nunca afirmei isso. Ao contrário, em um dos debates eu disse que o meu adversário é que iria confiscar as poupanças, justamente para evitar que a pergunta me fosse feita.” Assim como Collor jogou eleitoralmente com a narrativa da ameaça vinda do adversário Lula, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) soube se vender como a resposta para tudo que teria dado errado no País desde o fim da ditadura militar.
De Collor a Bolsonaro
Além de Collor, passaram pelo Palácio do Planalto o MDB com Itamar Franco e Michel Temer, o PSDB com duas gestões de Fernando Henrique Cardoso e o PT com dois governos Lula e cinco anos e quatro meses de Dilma Rousseff. Bolsonaro – ou sua campanha – incorporou precisamente a insatisfação de uma parcela considerável dos brasileiros com o freio no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e o fim da ascensão financeira de classes sociais até 2013.
Em entrevista recente à Folha, o critico literário Roberto Schwarz foi quem conseguiu construir uma interessante análise do governo Bolsonaro até aqui. Chamado pelo austríaco de neoatraso, a gestão apresenta tudo de ruim que o golpe militar de 1964 representa para o Brasil. E é preciso destacar que Bolsonaro disse repetidas vezes na campanha que os governos socialistas e comunistas do PT levariam o Brasil ao mesmo rumo da Venezuela, que hoje é controlada por uma ditadura cada vez mais indefensável e inaceitável.
Mas cabe aqui destacar uma definição que alas do próprio PT criticam as gestões Lula e Dilma no plano econômico, naquilo que chamam da tentativa equivocada de conciliação de classes. Schwarz define os governos tucanos e petistas como “um programa francamente pró-capital” que teria mobilizado “o fundo regressivo da sociedade brasileira, descontente” com a situação vinda de administrações liberais. Por mais que até o programa de tentativa de fundação do novo partido de Bolsonaro, o Aliança pelo Brasil, pregue que sua eleição teria livrado o País de um destino ditatorial comunista, nem PSDB, MDB ou PT deram qualquer demonstração que seja de mudar o rumo liberal de nossa economia.
“Essa revanche histórica da extrema direita evidencia falhas políticas do PSDB e PT”, destaca o crítico na entrevista. E diz que “há bastante em comum entre a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018 e o golpe de 1964”. E critica o mercado, a mesma Faria Lima à qual Collor atribui sua queda, como “mentores do capital” que “fizeram um cálculo cínico e arriscado” ao endossarem a candidatura bolsonarista. Um movimento definido por Schwarz como algo que “não é novo”.
Bandeira anticorrupção
Como diz o professor Wilson Ferreira da Cunha na entrevista da edição 2.315 do Jornal Opção, ao escolher o ex-juiz Sergio Moro para ministro da Justiça e da Segurança Pública, o presidente Bolsonaro mantém ao seu lado a bandeira do combate à corrupção. Não só pela importância da atuação de Moro como magistrado na primeira instância nas ações penais oriundas da Operação Lava Jato, mas por representar, até então, um antídoto populista à figura do “grande ladrão” Lula para grande parte dos brasileiros.
A aposta de Bolsonaro em Moro no governo é a construção messiânica ou mitológica de herói nacional. Tanto que no evento de lançamento de seu novo partido, o presidente da República voltou a ser chamado de mito por seus apoiadores mais fieis. E junta-se a isso o que o crítico literário diz sobre “o dinheiro necessário a novos avanços” ter desaparecido na gestão petista de Dilma. “A sequência de superações que durante algum tempo deu a sensação de que o País decolava rumo ao primeiro mundo pode ter chegado ao seu limite, respeitadas as balizas da ordem atual.”
Para Schwarz, o cenário econômico fez com que a avaliação pública tenha transformado “aprovação em rejeição num passe de mágica, aliás, assustador”. “A solução modernista-passadista, que permitia ao capitalismo atualizar-se e à sociedade continuar gozando da sua desigualdade de sempre.”Mas o crítico diz na entrevista que o “neoatraso do bolsonarismo, igualmente escandaloso, é de outro tipo e está longe de ser dessueto”. “A deslaicização da política, a teologia da prosperidade, as armas de fogo na vida civil, o ataque aos radares nas estradas, o ódio aos trabalhadores organizados etc não são velharias nem são de outro tempo”.
E, para Schwarz, o presidente da República é do grupo dos antissociais, “mas que nasceram no terreno da sociedade contemporânea, no vácuo deixado pela falência do Estado”. O risco, para o crítico, é que, no futuro, os “ultrapassados seríamos nós, os esclarecidos”. Aqui o entrevistado relaciona Bolsonaro como representante da “intervenção autoritária e religiosa que se prepara agora”.
E conclui a entrevista com uma citação do historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro para explicar a falta de importância que eleitores do presidente e o próprio Bolsonaro não dão à questão da desigualdade de renda no Brasil: “A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada, a saúde”.
Vale destacar o trecho que Schwarz cita sobre um grupo que se isola no poder e cria um mundo próprio, como vemos nas bolhas dos apoiadores incondicionais, aqueles que não aceitam críticas, nem mesmo o próprio governo, que não enxerga ou não pretende assumir os erros. “O atual presidente saiu vitorioso com um discurso de defesa da ditadura militar e hostil às políticas sociais e identitárias dos antecessores. Essa revanche histórica de extrema direita evidencia falhas políticas do PSDB e do PT.”
E não é só isso. Quando o poder não modera o governante, algo que não aconteceria mesmo, vemos ministros, como Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Paulo Guedes (Economia), citarem com naturalidade o AI-5. E tentar naturalizar as citações e lembranças ao Ato Institucional número 5, de 1968, é transformar em aceitável que um rompimento com a democracia e os direitos individuais e coletivos voltem a rondar o País.
Antes que alguém acuse Roberto Schwarz de ser um falastrão sem conteúdo para tal leitura do Brasil, vale lembrar que o graduado em Ciências Sociais pela USP, mestre em Literatura Comparada em Yale e doutor pela Universidade de Paris III (Sorbonne), além de ser um dos críticos literários que mais soube analisar a realidade da época das obras e autores que destrinchou.