Leda Nagle, Alexandre Garcia e Augusto Nunes: “jornalismo da pós-verdade” como meio de sobrevivência
25 abril 2021 às 00h00
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Profissionais veteranos da imprensa, com trajetória bem-sucedida, passaram a usar o prestígio que têm para desinformar e hoje integram a tropa de choque da comunicação bolsonarista
Na segunda-feira, 19, Leda Nagle, de 70 anos, foi o centro das atenções do Twitter, o maior celeiro de polêmicas políticas entre as redes sociais. Depois de uma carreira bem-sucedida, em que se destacou principalmente como apresentadora do Jornal Hoje, na Rede Globo, na maior parte dos anos 80, a veterana jornalista ganhou espaço em redes menores e na EBC, a estatal do governo federal, durante o governo Dilma Rousseff.
Hoje, tem um canal no YouTube em que apresenta um programa chamado “Clube da Notícia”, dedicado a membros (pessoas que pagam uma espécie de mensalidade para ter acesso a conteúdos exclusivos). Detalhe importante para o que vem a seguir: nos últimos tempos, passou a ser reconhecida também como um dos esteios do bolsonarismo nos meios de comunicação.
“Notícia”, entre aspas, não é bom sinal. Em um momento da live em seu canal no sábado, 17, a apresentadora leu dois tuítes (como são chamadas as postagens da plataforma Twitter), os quais deveriam ter despertado algum tipo de alerta em uma jornalista experiente e que quisesse honrar o princípio número um da profissão: alcançar a verdade dos fatos, produzindo notícias e não “notícias”.
Afinal, as mensagens em questão no Twitter estavam no que se supunha ser o perfil de ninguém menos do que o delegado-chefe da Polícia Federal, Paulo Maiurino, e denunciavam uma conspiração entre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Com que finalidade? Matar o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Ora, nenhum repórter iniciante falaria isso ao microfone ou acionaria seu chefe de redação sem antes tomar o cuidado de verificar se a “bomba” vinha de fato da conta do delegado na rede social.
Leda Nagle pulou essa parte. Leu os tuítes ao vivo para, certamente, milhares de pessoas (o canal tem 1,06 milhões de inscritos, embora membros sejam minoria desse total) como se isso fosse uma notícia absurda, mas não do ponto de vista de algo inverossímil: sem contestar a “informação” (STF e Lula planejam matar o presidente), se mostrou chocada com o conteúdo e se limitou a dizer, depois de uma exclamação religiosa: “Eu realmente não sei o que fazer, estou assustada com isso tudo. Porque isso não é política, né? Isso é tudo, menos política”.
Ela se formou em Jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e começou como repórter da TV Globo em 1973. Já acumula, desde então, 48 anos de redação, mais de 20 deles à frente do programa “Sem Censura”, da estatal TV Brasil. Cair em fake news de primeiro grau nessa altura da carreira, convenhamos, não pode ser aceitável.
É muito difícil acreditar que realmente Leda não tenha ideia do que acabara de fazer ao ler aqueles tuítes. Talvez confiasse no sigilo do grupo, por ser uma live privada. Os pedidos de desculpas que ela publicou na segunda-feira, garantindo que o trecho divulgado foi extraído por um membro do canal antes que ela pudesse conferir a veracidade da “informação” (ressaltando que a jornalista só fez o comunicado após a repercussão negativa, quase 48 horas após o repasse da “informação” por ela), foram patéticos.
Curiosamente, na sessão aberta do “Clube da Notícia”, na segunda-feira, 19, a apresentadora se “convenceu” de que não deveria ter pedido desculpas, após ler o comentário de um fã: “Regra número 1 da guerra cultural contra a patrulha ideológica: não peça desculpas. Seus aliados não precisam. Seus inimigos não aceitarão.” Ela aceitou a ideia: “Gostei viu, Bruno, obrigada! Não vou pedir desculpas, não, porque não fiz de má-fé. Não achei bacana a pessoa ter vazado isso, era um grupo fechado.”
Mas Leda Nagle faz parte de um outro clube: o dos jornalistas de renome nacional e carreira consagrada que abriram mão da ética e do patrimônio profissional para se tornar celebridades do mundo de “informações alternativas” criado pelo bolsonarismo. Uma espécie de “jornalismo freestyle”.
Experiência e desinformação
É o caso de outro ex-global, o octogenário Alexandre Garcia, que também aderiu de corpo e alma à tropa de choque da imprensa governista. Porta-voz do último presidente da ditadura militar, o general João Baptista Figueiredo, conservador e de direita, o ex-apresentador dos principais telejornais da Rede Globo era uma exceção no meio profissional, formado por maioria de gente liberal e/ou de esquerda.
Desde o início do governo Bolsonaro, Garcia tornou-se defensor de toda e qualquer medida adotada pela gestão. Chegou ao ápice quando, já contratado pela CNN Brasil, passou a apoiar na TV a adoção de métodos e remédios sem comprovação científica (como a ivermectina) e ataques a medidas restritivas, além da fazer uso da propagação de dados sem fontes reconhecidas. Em dezembro, disse também que a revolta da população de Manaus ao “lockdown” era uma “vitória da liberdade”. Não soube de sua avaliação sobre a carnificina sanitária que vitimou a cidade no mês seguinte.
Augusto Nunes, de 71 anos, é outro nome consagrado que integra a bancada do pós-jornalismo. Diretor de redação de alguns dos maiores veículos de comunicação do País, hoje ele está no comando da TV Record e na Rádio Jovem Pan. Nunes foi um dos “criadores” da candidatura à Presidência do então governador de Alagoas Fernando Collor, quando fez uma entrevista para o “Jornal do Brasil, lançando ao País “o caçador de marajás”.
Na última década, tornou-se um dos maiores militantes antipetistas da imprensa. No microfone da Jovem Pan – o principal abrigo do ideário bolsonarista na imprensa tradicional –, ele se prestou ao papel de confundir a audiência sobre a destinação dos repasses federais aos Estados e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a condução da pandemia pelas esferas de governo, propagando a mentira de que Bolsonaro não podia mais fazer nada. “Ele não administrou a pandemia porque não podia”, afirmou em um dos programas. Mas o nível de adesão ao bolsonarismo se mede mesmo de forma inequívoca quando Augusto Nunes resolve chamar o coronavírus de “vírus chinês”.
O que levou profissionais de tanta reputação a mancharem a biografia? Ideologia? Dinheiro? Lavagem cerebral? Talvez um pouco de tudo. O fato é que são nomes de peso que, no momento, servem a um propósito que vai bem além do que a simples mistura de opinião, adesão política e assessoria de imprensa: eles passaram a usar o prestígio que têm para desinformar. Pelo que um dia representaram, é uma tragédia para a profissão.