Considerar que uma pessoa que dirige um carro em alta velocidade, sabe que está acima do permitido na via e tira a vida de quem atravessa uma rua não teve a intenção de matar é um convite à impunidade e mais mortes

Mãe grávida de quatro meses e filha de 4 anos atravessavam Avenida Independência quando motorista atingiu as duas com o carro em velocidade entre 94 e 104 km/h na véspera do ano novo em Goiânia | Foto: Reprodução

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Dirigi por 11 anos. Resolvi desistir da motocicleta e do carro para me aventurar na vida do pedestre. Por economia e uma vida mais saudável. Para conhecer a cidade melhor. E foi assim que, por volta de 14h30 de sexta-feira, 24, cheguei ao cruzamento da Avenida T-4 com a Rua T-61, no Setor Bueno, e aguardei até o semáforo ficar vermelho para atravessar a via mais rápida.

Esperei o motorista do carro branco que vinha pela pista da esquerda no sentido Avenida T-63/Avenida T-10 parar para começar a atravessar na faixa de pedestre. Já no meio da travessia, tomei um susto, parei, e percebi um movimento muito veloz de um objeto cinza que quase me atingiu. Era um condutor em um veículo cinza, que havia acelerado na pista da direita da T-4 depois de ver o sinal fechado, ignorou minha presença e furou o cruzamento em alta velocidade.

Bati palmas para o motorista que, dentro de seu veículo com vidros escuros, nem sei se viu meu gesto que parabenizava a bela conduta do condutor que acabara de furar um cruzamento em que o semáforo estava fechado em alta velocidade e quase atingiu um pedestre no meio da faixa. Demorei uns 15 minutos para processa tudo que havia acabado de ocorrer.

O mais triste é que não foi a primeira vez em que um condutor quase me atingiu com seu veículo enquanto atravessava uma rua ou avenida em diferentes setores de Goiânia na faixa de pedestre. Tanto depois de sinalizar com a mão em locais nos quais não existem semáforos ou após o sinal dos carros fechar. Na situação em que me senti mais seguro, o motorista achou de bom tom bater o farol alto para ver se eu desobstruía a via para que seu carro, um bem no qual ele investiu dinheiro, tivesse garantido o direito de ir e vir.

Eu fiquei com o susto. Meiriany Ester Luiz Cotrim, que tinha 27 anos e estava grávida de cinco meses, e a filha Ana Vitória Luiz da Silva, que morreu aos 4 anos, não tiveram a mesma sorte. As duas foram atingidas por uma motorista que dirigia seu carro na Avenida Independência a uma velocidade periciada entre 94 e 104 quilômetros por hora (km/h). A velocidade máxima permitida naquela via? 60 km/h.

No caso que é investigado pela Delegacia Especializada em Investigação de Crimes de Trânsito de Goiânia (Dict), a delegada Nilda Andrade tem em mãos imagens de câmeras de segurança da avenida e o laudo da perícia realizada pela Polícia Técnico-Científica. A constatação é de que o sinal estava aberto para a condutora e as vítimas atravessavam a Independência a três metros da faixa de pedestre na tarde de 31 de dezembro de 2019.

Se o atropelamento fosse na faixa, seria considerado como um agravante, o que poderia aumentar a pena por homicídio culposo em um terço da punição prevista, que é de “detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”, de acordo com o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A situação está prevista no capítulo XIX, que trata dos crimes de trânsito.

Sim. Está previsto no CTB que uma morte causada em um atropelamento é um crime de trânsito, não apenas uma infração. O problema é que limitar a punição a homicídio culposo é muito pouco. Ainda mais quando se trata de uma junção de fatores causados pela escolha do motorista de infringir a lei.

No máximo, a condutora que matou mãe grávida e filha de 4 anos será indiciada por duplo homicídio culposo, quando que comete o crime é culpado, mas não tinha a intenção de assassinar. Mas é preciso que o Congresso Nacional modifique a previsão em casos de atropelamentos em que o crime é cometido por decisão do condutor de cometer uma infração de trânsito.

Eu fiquei com o susto. Meiriany Ester Luiz Cotrim, que tinha 27 anos e estava grávida de cinco meses, e a filha Ana Vitória Luiz da Silva, que morreu aos 4 anos, não tiveram a mesma sorte | Foto: Divulgação/PC-GO

Não se trata de um caso excepcional em que um pedestre entra de repente na frente do motorista. A situação citada aqui é de uma escolha do condutor em ignorar a legislação de trânsito e se beneficiar da infração. Se eu tivesse sido atropelado na faixa de pedestre, o caso seria de homicídio culposo com o agravante do local em que o homicídio culposo teria ocorrido: “Reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

O condutor que não obedece a legislação e acha que tudo bem acelerar acima do permitido e furar o semáforo para não perder tempo tem de ser tratado como ele é: um criminoso. Não se trata de alguém que cometeu uma infração por distração ou por um erro ao volante. As pessoas se equivocam. É algo natural. Não é o caso de quem fura um sinal propositalmente, ainda mais com um pedestre a atravessar na faixa.

Não podemos entender um motorista que decide desrespeitar as leis de trânsito em benefício próprio, que ignora a lógica de coletividade e respeito aos menos protegidos nas ruas e avenidas, como alguém que não teve a intenção de matar ao atropelar um pedestre nessas condições. Se o condutor teve a intenção de furar o sinal onde há uma pessoa na faixa, a pessoa que esta no controle do veículo precisa ser compreendida como alguém que agiu com dolo e teve a intenção de matar.

Infelizmente, a sensação de punição iminente é o único fator que faz muitos motoristas respeitarem o CTB. Então é preciso endurecer o Código de Trânsito Brasileiro para que sejam reduzidos os atropelamentos e os responsáveis tenham a punição devida. Reclamarão de indústria da multa? É o discurso fácil e vazio de quem não respeita a convivência em sociedade e só pensa no próprio umbigo.

O ideal seria que tivéssemos fotossensores e videomonitoramento do trânsito em todas as esquinas da cidade. Vão alegar falta de privacidade? Eu sinto muito se você fala ao celular, digita na tela do smartphone enquanto dirige, entra na contramão para não ter que dar a volta no quarteirão na hora de chegar em casa ou se você não gosta de usar o sinto de segurança.

Aí, amigo, o problema é seu. Eu quero ter meu direito de viver respeitado. Acho que ele vale mais do que a sua falácia de direito de ir e vir. E só para não esquecer: o veículo foi você que comprou, mas a rua não é extensão do seu bem ou propriedade privada.

A rua é de todos, tão minha quanto sua. E quem diz isso não sou eu, é o CTB que você resolveu ignora ao furar o sinal e tentar me transformar na Meiriany Ester Luiz Cotrim e na Ana Vitória Luiz da Silva da vez: “Respeitadas as normas de circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres” (CTB, artigo 29, inciso XII, parágrafo 2º).

Mas se você ficou na dúvida quanto à palavra incolumidade, não custa nada desenhar. Incolumidade diz respeito à condição ou qualidade de incólume, que deve estar seguro, isento de dano ou perigo, protegido. É por isso que, ao decidir furar um sinal vermelho em alta velocidade enquanto um pedestre atravessa na faixa, você deveria ser julgado por homicídio culposo agravado pelo local em que a pessoa que caminhava estava no momento da colisão, porque você teve a intenção de atingir a pessoa ao ignorar todas as leis de trânsito possíveis naquele momento.

Foi uma luta de muitos anos para caracterizar e modificar o CTB para incluir homicídio culposo no caso de morte que envolva motorista embriagado. Atropelamento é o próximo caso que precisa incluir a mesma previsão penal ao autor do crime.