Entre eleições, traições e grandes desafios, uma curta, mas recheada carreira política que será lembrada nos livros das próximas décadas

João Doria acompanha a aplicação da primeira dose da vacina Coronavac, na enfermeira Mônica Calazans | Foto: Divulgação / Governo de SP

Em uma semana tensa para as instituições brasileiras, como tem sido a rotina desde que Jair Bolsonaro (PL) assumiu a Presidência – notadamente após o começo da pandemia e mais ainda à medida em que se aproximam as eleições –, um fato político passou, senão despercebido, de forma bastante discreta em relação ao que talvez merecesse ter como destaque: o anúncio do ex-governador paulista João Doria (PSDB) de que está encerrando sua carreira política.

Para os padrões convencionais do meio, foi uma trajetória meteórica de ascensão e queda, iniciada tardiamente e terminada de modo precoce. Doria despertou paixões diversas: atraiu apoiadores, pisou na cabeça de correligionários e conquistou multidões de inimigos.

Não à toa, a rejeição a seu nome nas pesquisas eleitorais, como pré-candidato tucano ao Planalto, foi sempre altíssima. O político usou de todas as armas de que dispunha para galgar o mais rapidamente a escada longa e pesada do Olimpo da política e isso tem seu preço.

À frente de mandatos, Doria ficou pouco mais de quatro anos e meio: esteve um ano e três meses (de 1º de janeiro de 2017 a 6 de abril de 2018) à frente da Prefeitura de São Paulo, após vencer o pleito em primeiro turno, derrotando inclusive o petista Fernando Haddad, então candidato à reeleição. Dois anos depois, elegeu-se governador do Estado e ficou no cargo de 1º de janeiro de 2019 a 1º de abril deste ano, renunciando para ser o candidato a presidente do PSDB a partir de julho, como o partido havia estabelecido em prévias realizadas em novembro do ano passado.

Doria já chegou à política pelas altas esferas, catapultado pelo sucesso como empresário. Entre suas empresas e associações, destaca-se o Grupo de Líderes Empresariais (Lide), que reúne mais de 1,6 mil empresas nacionais e multinacionais – 52% do PIB privado do País, segundo o próprio site. O objetivo da organização é “promover e incentivar as relações empresariais e sensibilizar o apoio privado para educação, sustentabilidade e programas sociais”. Na prática, por organizar debates, seminários e fóruns com participação de políticos e outras autoridades, a Lide se tornou também uma entidade de forte influência sobre os rumos do destino nacional.

Mas não é só de apoio do poder econômico que se faz o sucesso nos palácios. É muito conveniente ter um bom padrinho para fazer o caminho ficar mais curto e plano. Esse foi o papel desempenhado por Geraldo Alckmin entre 2015 e 2016. Para que seu pupilo vencesse as prévias e fosse o candidato a prefeito da maior metrópole americana, o então governador de São Paulo fez o que pôde – e talvez até o que não deveria, o que gerou protestos dos concorrentes à disputa. Andrea Matarazzo e Ricardo Tripoli não tiveram chance e o primeiro deixou imediatamente o partido. Doria já virava, ali, o pivô da primeira das grandes crises da derrocada da ala paulista do PSDB.

Nas eleições, ganhou em primeiro turno com 53% dos votos válidos, algo humilhante para o PT e especialmente o prefeito Haddad, que teve 16%, sendo a opção de apenas um sexto dos eleitores da cidade que governava. Era já o reflexo do antipetismo que dominaria os próximos anos e a eleição presidencial seguinte.

Doria soube como poucos navegar nesse sentimento anti-PT. E, na ânsia de subir rapidamente a rampa da política, se desvencilhou do cargo em 2019 já almejando a cadeira principal do Palácio dos Bandeirantes, a qual Alckmin deixaria para buscar a do Planalto.

Seria natural, pois, uma parceria Alckmin-Doria. Não foi bem o que ocorreu na sequência. Mesmo com uma aliança gigantesca, composta por nove partidos, e mais do que o dobro do tempo de rádio e TV na propaganda eleitoral, o presidenciável tucano atolou. Sua candidatura, bem como a de outros políticos antipetistas tradicionais, foi engolido pelo efeito Aécio Neves – o tucano que por pouco não venceu Dilma Rousseff (PT) em 2014 e em seguida puxou uma oposição virulenta ao segundo mandato da petista, mas acabou flagrado em um escândalo de propina gravado em áudio pelo empresário Joesley Batista.

Para se livrar do PT, as energias se concentravam, então, em um deputado improdutivo, com sete mandatos no baixo clero da Câmara, mas que tinha se tornado midiático por participar de programas de TV com declarações de extrema-direita. Com seu faro para negócios, João Doria resolveu “esquecer” o companheiro Alckmin e, com o dom que sempre teve para publicidade, engendrou uma bem-sucedida campanha “Bolsodoria”. Ela ficou explícita no segundo turno das eleições, mas já dava sinais de que ocorria quatro meses antes do primeiro, quando se percebeu que os votos de Doria estavam mais “canalizados” para o “mito” do que para o aliado.

No segundo turno de 2018, vestindo com garra e sorriso largo a camisa amarela com o neologismo propagandístico e não precisar mais, então, disfarçar abraços e afagos com Bolsonaro, ambos foram eleitos. Ambos odiando o PT e a esquerda em geral, ambos odiados pelos petistas e esquerdistas em unanimidade.

Mas a história reservaria um plot twist nessa amizade conveniente entre dois ditos “liberais na economia e conservadores nos costumes”: a pandemia os colocou em campos não só opostos, mas inimigos entre si. Enquanto Bolsonaro defendia insanamente a continuidade da vida normal, com isolamento só para idosos e vulneráveis, Doria estava com equipe multidisciplinar do mais alto nível e apostando todas as fichas no Instituto Butantan, referência em produção de imunizantes. Fechou uma parceria com a empresa chinesa Sinovac para a produção da Coronavac.

À frente do Estado considerado a “locomotiva” do País e com toda a estrutura tecnológica disponível para realmente conduzir uma reação positiva à crise sanitária, Doria foi escolhido como alvo principal na guerra particular de Bolsonaro contra a ciência e os Poderes constituídos, notadamente os governadores e o Supremo Tribunal Federal (STF), aos quais tentou sempre passar a culpa por, segundo a própria interpretação da decisão judicial, estar de mãos atadas para tomar alguma medida sobre a pandemia.

Era uma batalha entre a cloroquina e a vacina na qual, porém, o governador não tinha uma massa para defendê-lo. É que, ao buscar o eleitor radicalizado de direita para bombar o “Bolsodoria”, ele perdeu qualquer chance de um tratado de paz com a esquerda – a qual, pelo menos, em parte agradeceu de forma silenciosa a colaboração com a vacina.

Ao criticar o presidente – na verdade, já como um contra-ataque do que vinha sendo alvo –, o governador atraiu a fúria de quem um dia o apoiaram: os bolsonaristas de São Paulo. Eles formaram, nas redes e mesmo nas ruas, um batalhão anti-Doria com todas as armas que poderiam levantar: fake news, ameaças diretas e intimidações nível 5ª série, como o bullying com a forma com que ele se vestia: “Calcinha Apertada”, “Calça Atolada”, “Agripino” e outras formas de atingir a imagem, notadamente apelando para ataques nada sutis à masculinidade, como bem convém ao “conservadorismo de churrasqueira”.

O fato é que João Doria mantinha sob sua batuta um governo não muito diferente do que seu antecessor Alckmin havia conduzido, em virtudes e defeitos. Apesar das críticas sobre o “fecha-tudo” da pandemia e a resposta-ladainha dos bolsonaristas para as acusações a Bolsonaro a respeito da crise econômica – vista por eles como consequência do “fique em casa, a economia a gente vê depois” –, João Doria conseguiu elevar os números do PIB paulista bem acima aos da média nacional.

Deixou um legado importante para o tema da segurança pública: a implantação de câmeras nas fardas dos policiais, o que reduziu a letalidade – tanto do lado dos civis como dos próprios profissionais – em abordagens e operações da Polícia Militar paulista. O exemplo está sendo seguido também pelo Rio de Janeiro.

A produção ágil da “vacina chinesa do Doria”, como um dia Bolsonaro menosprezou, foi fundamental para pressionar o governo federal a não retardar ainda mais a compra de imunizantes, como vinha fazendo até o fim de 2020. Não obstante seus interesses – e um deles era, sim, se destacar na corrida da vacina para se lançar à Presidência –, o fato é que João Doria vai ter de ser sempre lembrado como o político que agilizou a proteção à população brasileira na fase mais dura da pandemia e evitou certamente, com a “básica” Coronavac, que o número de mortes de brasileiros tivesse chegado ultrapassado a casa do milhão.

Diante de um cenário já adverso, eleitoralmente falando, insistiu em participar das prévias do PSDB tendo Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, como adversário principal. Ganhou, mas foi uma vitória de Pirro. Sem apoio e sem qualquer perspectiva de puxar a tal “terceira via”, renunciou à pré-candidatura.

Nesta semana, outro anúncio nas redes sociais, desta vez comunicando o fim da curta carreira política, veio sóbrio e digno: “A partir do próximo mês, retomo minhas atividades na iniciativa privada. Deixo a vida pública com senso de dever cumprido. Pelos meus erros, peço desculpas. Pelos meus acertos, cumpri minha obrigação.” Entre eleições, traições e grandes desafios, uma curta, mas recheada carreira política que será lembrada pela história.