Elite empresarial brasileira e o poder: é golpe atrás de golpe
28 agosto 2022 às 00h00
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Na semana passada, completou-se um ano que esta coluna publicou o artigo “Eles só querem liberdade para serem autoritários” (edição 2406). À época, a pergunta que pairava – inclusive como introdução para o texto – era: é possível que o sistema democrático seja tão democrático a ponto de deixar os intolerantes dele abusarem para o aniquilarem?
Em meio aos preparativos para os mais golpistas dos atos golpistas – sempre disfarçados de manifestações “pacíficas” de apoio ao governo –, em 7 de setembro de 2021, discutíamos ali a repercussão da prisão de Roberto Jefferson, então o presidente nacional do PTB e que hoje mantém uma candidatura à Presidência fadada à impugnação.
Jefferson, que já havia sido condenado e também preso por corrupção pelo mensalão, se tornara um bolsonarista radical e fazia ameaças explícitas e continuadas ao Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente ao ministro Alexandre de Moraes. Com seu encarceramento, Jair Bolsonaro (PL) tomou as dores do apoiador e abriu guerra franca contra Moraes e também seu colega Luís Roberto Barroso na escalada final para o evento de semanas adiante: queria porque queria o impeachment de ambos os ministros por “jogarem fora das quatro linhas da Constituição”, e o exemplo disso seria a prisão de Roberto Jefferson, que, segundo o presidente, havia apenas feito uso de sua “liberdade de expressão”.
Liberdade de expressão? Será? Para dar ideia do nível de agressividade do discurso do petebista: ele repetidamente aparecia empunhando armas e, ao mesmo tempo, soltando palavras de ordem, claramente incitando militantes à mesma atitude, “para defender nossa liberdade”.
Pois na semana passada, o mesmo Alexandre de Moraes acatou pedido da Polícia Federal para uma operação de busca e apreensão em endereços de oito empresários bolsonaristas que dias antes haviam sido pegos em diálogos nada republicanos em um grupo de WhatsApp. Um infiltrado conseguiu printar mensagens várias mensagens de teor golpistas, que, vazadas, foram parar na coluna de Guilherme Amado, do portal Metrópoles. Um tremendo furo jornalístico.
Pelo menos oito empresários se tornaram alvos da operação, e é bom registrar para a posteridade o nome de cada um. Seguem, em ordem alfabética: Afrânio Barreira Filho, da rede de restaurantes Coco Bambu; Ivan Wrobel, da W3 Engenharia (construtora de imóveis de alto padrão); José Isaac Peres, do grupo Multiplan (administradora de shoppings); José Koury, dono do Shopping Barra World; Luciano Hang, da rede de lojas Havan; Luiz André Tissot, da Sierra (fábrica de móveis de luxo); Marco Aurélio Raymundo, o “Morongo”, dono da Mormaii, grife de moda surfe; e Meyer Joseph Nigri, da Tecnisa (construtora).
O grupo “WhatsApp Empresários & Política” havia sido criado no ano passado. Pelo que se depreendeu da coleta de mensagens – as quais foram o motivo do pedido feito pela PF ao STF –, a turma tinha o costume de defender golpe de Estado, duvidar da lisura das eleições e atacar o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Claro, milhares de outros grupos espalhados pelo Brasil devem fazer o mesmo que o seleto octeto investigado. O bolsonarismo às vezes até nega (sem tanta veemência) que vive da expectativa de um golpe, em que seu líder tomará o poder e finalmente colocará o País “nos eixos” – seja lá o que achem que sejam esses “eixos”. O “eu autorizo” escrito e gritado nas manifestações da extrema-direita é a mensagem dúbia mais clara para essa questão.
A questão é que uma coisa é um grupo desse tipo formado na Rua dos Bobos, número Zero; outra coisa, bem diferente, é um grupo com empresários da elite financeira nacional e com ligações diretas com o poder constituído.
Muito além de suas preferências como militante, o “Veio da Havan” roda os Estados de norte a sul na cola de Bolsonaro – às vezes de forma literal mesmo, como na carona de moto, em foto que virou meme. Mais: falando à nata dos empresários paulistas, o presidente disse, cheio de si, que havia mandado trocar o comando do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) após seus técnicos atrapalharem atrasarem a obra de mais uma loja de Hang que estava sendo erguida em um sítio arqueológico.
Já Meyer Nigri é chamado de “amigo” pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, e foi um dos que avalizaram sua escolha, pelo presidente, para o cargo máximo do Ministério Público Federal (MPF). Aras é o mesmo que se indignou por não ter sido avisado com antecedência da operação determinada por Alexandre de Moraes contra seu amigo Nigri e os outros sete.
Por essas e outras é que, como consequência da ação planejada pela PF e autorizada pelo ministro, alguns analistas estão prevendo um esvaziamento dos atos novamente promovidos pelo presidente para um dia 7 de setembro. É que a operação sobre os oito empresários, ainda que não encontre nas quebras de sigilo nenhuma ligação financeira com o evento bolsonarista, vai certamente servir como uma ducha de água fria a quem esteja com o intuito de bancá-los.
Foi o que ocorreu no ano passado, às vésperas da mesma data, quando relatos deram conta de que Alexandre de Moraes, usando o serviço de inteligência do Poder Judiciário, recebeu informações de que haviam contas pelas quais estavam sendo financiadas caravanas e outras formas de mobilização para os atos antidemocráticos. O ministro determinou o bloqueio dos canais financeiros e secou a torneira dos recursos para viabilizar a ida ou estadia de um bom contingente de bolsonaristas, principalmente para Brasília.
Mais uma vez é preciso dizer: liberdade de expressão não é liberdade para cometer crimes com o que diz. Para fixar melhor a ideia, uma projeção chocante: imagine como vista a “liberdade de expressão” se o conteúdo das mensagens disse respeito a opiniões positivas sobre a pedofilia, por exemplo.
Luciano Hang se defendeu dizendo que foi tratado como bandido; outros empresários falaram que são democratas e que as mensagens teriam sido retiradas do contexto. Seguem dois exemplos de frases extraídas das conversações: “Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo.” (José Koury) “O golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo. [Em] 2019 teríamos ganhado outros 10 anos a mais.” (André Tissot)
Como diz o ditado, para quem sabe ler – e quer fazer uso dessa habilidade –, um pingo é letra. Tirem suas próprias conclusões.